Ultimamente tenho devorado livros como quem bebe copos de vinho com uma sede pouco saudável. Tenho visto alguns filmes, antigos, mas o cinema tenho-o sentido como demasiado fácil. O nosso cérebro apenas precisa de ver, ouvir e compreender. Tudo é visual, ou quase tudo. Talvez por isso ler me tem ocupado tanto tempo de prazer. São só palavras e todo o esforço de imaginá-las é meu. Outra das razões que me tem levado a esta clausura é a saturação social em que me encontro. Se analisar o tempo que já perdi com conversas de bar ou de cozinha, o enterro do meu cérebro na futilidade do quotidiano. É como todos os filmes do Woody allen, salvo um ou outro que sai fora do registo social igual ao meu diário, todos eles são de um tédio profundo. Porquê perder tempo com uma realidade que é exactamente igual à que tenho? Repetição do banal, ali escarrapachado e interpretado por actores ainda mais desinteressantes do que aqueles que contracenam comigo diariamente. Chego a pensar que a solidão social deste homem é de tal ordem que no cinema criou a sua realidade e nele vive encalhado há anos. Que outra razão o levaria a ter uma relação amorosa com a própria filha adoptiva? Acaso terá ficado estagnado nos filmes que rodou aos vinte anos? Que importa isso. Na verdade tenho-me sentido para além de desiludida, cansada. E por isso prefiro ler. Cada livro que abro é uma vida nova que começo. E tem um fim assegurado por quem o escreveu. Cuidado e previsto. Planeado. Ao contrário da vida. E não sei se estou a chegar ao meio do meu próprio livro ou se já cheguei ao fim tantas vezes que recomecei a ler com uma amnésia estúpida que me faz sempre achar que o final tem muito de profundo e encantado. Banalidades. É o que somos todos nós com excepção de uns poucos que conseguem passar essa linha. Ainda continuo a achar profundamente desinteressante focar a minha vida num legado apenas familiar. Tu não sabes o que é uma família disse-lhe ele um ano depois de casarem. Não, tenho pensado muito nisso. É provavelmente a coisa mais importante da nossa vida. É provavelmente a única e pura razão de existirmos. Mas, estão então o que têm aqueles que não conseguem pensar dessa forma uma vida inteira? O que procuram eles? Ou que espécie de doença os cega já que a maioria se foca noutras dimensões. Não estou a falar de um emprego bom, um bom ordenado, prestígio social ou reconhecimento pessoal. Não, é alguma coisa diferente disso. É uma necessidade imperiosa de deixar algo mais. Tenho vivido muito sobre a ideia de que quanto menos tens, menos receio tens de perder. Tenho vivido com pouco e cada vez tenho menos. Mas nada disso me assusta. Como diz Buarque, o meu maior receio é perder-me da minha alma. Porque a minha alma é e sempre foi, escrever. E se não me tivessem ensinado a escrever? Todos temos de aprender a escrever. E ninguém me ensinou a escrever mais do que apenas o essencial e necessário. E muito mais existe em mim, demais do que o necessário. E para quê? É melhor eu pensar em ter um filho, ou dois ou três. Talvez a minha alma sossegue. Talvez eles me ensinem a mim a querer nada mais do que o simples amor de mãe. Talvez, quando o primeiro nascer, eu não escreva nem mais uma linha, nunca mais. Talvez me sinta finalmente tranquila. Ou talvez escreva para eles, todos os dias, da mesma forma que escrevo agora. Woody estaria a rir neste momento. Tudo o que acabo de escrever não são mais do que banalidades de uma realidade já mais do que vista e encenada. E pior, sem o registo humorístico que o acompanha sempre. Talvez eu devesse ter saído e ter tido conversas de cozinha, estaria certamente com outra disposição neste momento. Embriagada mente entediada e por isso, feliz. O futuro não depende da sorte, depende das decisões que tomo agora. Não vale a pena andar-me a queixar pelos cantos de falta de sorte que tenho tido. E também não vale a pena negar aquilo que sou. Com o tempo aprenderei a harmonizar tudo isso para que pareça menos incómodo. Até lá, vou abrir mais um livro e recomeçar. É pouco? Não, são só 21.27 e já estou embriagada das minhas próprias palavras. Que Salinger me ofereça uma outra perspectiva. Foi para isso que viveu.