segunda-feira, 27 de agosto de 2018

O verão mais quente do ano



Agente aqui no campo convive-se.

O Padre? Sim o padre. Faz exorcismos. Mas diz que monta-se nelas. O padre? Sim, o padre. Ai valha-nos deus, como isto está. 
As duas velhas iam no banco de trás. Uma tinha problemas na fala, enrolava a língua, a outra era meio surda. Por este motivo a conversa era facilmente audível na carruagem. 
Éramos uma comunidade de 70 pessoas, hoje são sete. Agora é tudo substituído por máquinas. Oh comadre é fresco. Arrastando os pés a D. Mena entra no estabelecimento voltando com um copo de pé minúsculo de vinho tinto. Senta-se ao nosso lado. Levas as mãos ao cabelo grisalho penteando-o para trás das orelhas, suspira aguardando conversa ou outros afazeres. O ar irrespirável bate nos 47 graus. Há anos que não se apanhava um verão assim. No ano passado isto ardeu tudo, eu por causa do meu marido acamado não quis sair daqui, não foi preciso, mas aqui à volta ardeu tudo. Isso foi aí o fim do mundo. O passadiço está desde Março para ser arranjado, desde Março. Uma vergonha estes políticos. 
Os três galos atravessam a esplanada à beira do comboio sintonizados com o sino da terra. 
As casas no meio do mato, deus me livre. São pessoas que gostam dos ares do meio do mato. Depois queixam-se dos fogos. Na província é tudo assim, a senhora sabe muito bem, olhe além, além pela janela, aquela lá mesmo no meio, credo, eu não queria. 
Ema não quis virar-se para trás até que as sentisse a deixarem o comboio. Preferia imaginar-lhes as fisionomias pela voz, pelos tiques das falas. Para confrontar mais tarde com a imagem real das duas velhas no banco de trás. Talvez nem fossem assim tão velhas. 
O comboio seguia para a frente. 
Para a frente de um qualquer espaço físico e cronológico. Estava atrasado dez minutos. Ema fizera esta viagem no verão dos seus sete anos. Com a mãe. A mãe lia, Ema procurava amigos que semana sim semana não chegavam à barragem. As pessoas são curiosas. Ema ainda hoje era muito curiosa. Andava por ali como se não fosse vista. Sentava-se ao lado das pessoas e escutava as suas conversas, observava as piruetas dos rapazes do mato que mergulhavam como se tivessem guelras. Atirava pedras ao charco que invejava a qualquer outro. Entrava e saía do café como se fosse a sua casa e suspirava. Aquele longo verão de solidão.
Comprei oito iogurtes na feira nova, pelo menos aqueles não me azedam no estômago. Ai eu não sou capaz de comer de manhã. Cada um come as vezes que quiser. Pois é. Estamos a chegar ao Entroncamento. É. O marido da minha irmã é um fura-vidas. Aqui está uma máquina antiga da CP em exposição cá fora. São as máquinas que trabalhavam antigamente em carvão. Aqui está o museu da CP, bem isto antigamente era tudo postos de trabalho. Está tudo aos ratos. 
D. Mena aproximo-se de Ema e do seu namorado. O sol era de um branco doentio num céu abafado. Só se escutavam as cigarras. Vocês querem almoçar amanhã? É que eu só funciono com reservas. Aqui nunca houve menu, há dois pratos à escolha. Eu trabalhei sete anos na Alemanha num restaurante de categoria, sei bem como funcionam. Aqui não funciona assim, tou aqui à quarenta ianos. Sou o terceiro melhor restaurante do país de lampreia. Ema arrepiou-se. Lampreia aquele bicho cobra que tanto lhe fazia impressão. Um dia o pai levara-a a almoçar fora na terra dos primos. Para a menina provar a iguaria. Ema vomitou no prato e os almoços ficaram por aí. O pai partiu para França e dele foi tendo notícias de se estar a dar bem na carpintaria. Casou duas outras vezes e dos irmãos Ema só sabe do seu nome. Eu cá não gosto de cinema, a vida já é um grande filme. Se eu contasse todas as peripécias que eu e o meu marido passamos lá na Alemanha. As pessoas perguntam ah como é que conseguem viver aqui isolados do mundo. Sem as comodidades da cidade. Eu bem vi lá na Alemanha como é que era. As pessoas sempre para trás e para a frente para apanharem os autocarros. Um horror, isso não é viver. A nossa vida dava um filme ah pois dava. Aqui tenho tudo, o meu marido lá em cima acamado, meto-lhe o ar condicionado a 25 graus, mas aqui ontem não se podia estar, 47 graus dava a temperatura ali da televisão. 
O cheiro a pés não lavados continuava no comboio. Não sabia se eram das suas próprias sandálias ou se das velhas do banco de trás. Talvez não fosse dos pés, se calhar elas traziam um cesto com queijos. O tempo começava a ficar mais cinzento à medida que o comboio avançava. 
Olha o túnel, já passei isto tudo a pé com uma rapariga que hoje já lá está coitadita. Esta estrada vai para, agora não me lembra o nome, Santa Margarida é isso. Não sei ele vai parar. Aqui é a ponte. Olha a casa da minha sogra além, daqui consegue-se ver. Ema deixou de ouvir a outra velha, talvez estivesse a dormir. A paisagem complicava-se de um verde emanharado de pântanos e montes que se cobriam de solidão. Poucas eram as casas que se avistavam da janela do comboio e quase todas elas partes de ruínas. Curioso. Esta tinha tantas caixas de correio, já viste? Sim, se calhar passava aqui e as pessoas depois vinham cá buscar. Ele não podia ir a todos os montes. 
Vai dormir? Vá vá. Feche os olhos e descanse. Não faz diferença. Tá a ver olhe aquela casa, depois queixam-se dos fogos. 
O comboio pára. As pessoas saem outras entram. Das janelas os que estão a bordo observam os outros na estação. As pessoas olham-se muito pensava Ema. Procuram nos outros sabe-se lá o quê. Distracção para o tédio de dentro talvez. 
Doce o meu fato de banho? Ah sim estava em cima da cadeira, eu guardei, devo ter guardado. Agora também é tarde e regressa ao livro. Estava lento, denso e aborrecido, como a viagem quando as velhas se calavam. Parecia que o dia estava a cair para a noite mas não era ainda nem meio dia. Se calhar vamos apanhar mau tempo. Não, então não viste nas notícias que estavam lá 47 graus ontem. Ah sim pois foi mas olha o céu, está escuro. Se calhar é trovoada. 
Olhe lá já viu este tempo como anda. Então ontem aquele calor tórrido e hoje parece que vai de trovada. Sta Bárbara bendita que no céu estais descrita. Ai cale-se lá com essa ladaínha mulher, com esta idade e ainda com medo dos trovões. Pois pois, eu é que sei como é que é lá no meio dos montes, depois queixam-se. Olhe lá, pensava que estava a dormir. Também eu. Tudo casas velhas já. É como a gente. Agente havia de ter ido era ao jardim zoológico. Ai as cobras credo. Pois está com medo que elas metam a língua de fora não é? Havia lá uma no quintal, lá onde tínhamos as garrafas de gás. É que elas apanham tudo. Viva. Atão ela metia-se dentro da minha barraca, mas eu meti lá um bocado de remédio e ela desapareceu. Ao fundo do quintal aquilo tá lá tudo, havia de ser limpo. Em frente lá do barracão do Mendes aquilo andaram lá tudo a limpar até é de admirar. Até ao passeio. Aquilo é tudo meu. 
Porque razão as coisas grandes não eram próprias de uma dama dizia o livro. Explicava que as mulheres serviam para inspirar os outros a realizarem coisas grandes, não para as fazerem. O livro retratava 1900. Tinham escrito poemas para retratar esse ponto. A culpa era atribuída a demasiado Beethoven. Para esta mulher, voar fora das normas da sociedade era um acto de respiração. Ema pensou que não ia ser capaz de terminar o livro. Era para além de mais que aborrecido. E arrependia-se agora de o ter trazido para estas férias. Os outros dois, algum haveria de ser mais interessante. Guardou o livro na mala. Estavam quase a chegar, dez minutos atrasado. Arrumou as suas coisas e levantou-se para apanhar as malas em cima dos bancos. Contemplou finalmente as duas velhas. Anda, que estás a fazer, olha que ainda ficamos aqui. Sim, vou, espera estou a ir. Finalmente podia agora dar forma e cor e textura aos seus ouvidos. Tinham as duas óculos. Eram velhas. Pele queimada do sol. Enrugadas. As mãos viajando sobre o peito perto da cruz. 

Imaginei que regressava ao verão da minha infância. Falei-te nisso e agora estás aqui. A minha infância não foi igual a qualquer outra. Tantas foram as vezes que pensei em enviar um postal com as paisagens da minha infância. Não havia a quem o enviar. Só tinha a minha mãe. E a caravana e mais tarde um cão chamado Farrusco que a minha mãe me obrigou a abandonar porque eu não cuidava dele. Nunca soube cuidar de ninguém porque ninguém cuidou de mim. A minha mãe lia. Parava para dormir ou ir à casa de banho. Recordo-me certa vez que nem para isso parou e foi mesmo pelo caminho que fez pernas abaixo. Ela lia porque dizia que a vida não tinha interesse nenhum. Creio e sei-o hoje que a culpa foi do meu pai. A culpa é sempre dos homens. Quando ele partiu ela enlouqueceu. Se calhar já era louca antes, não sei, antes parece que ficou tudo em branco. Nada me lembro para trás da partida do meu pai para França. A bem dizer daí para a frente só mudava a paisagem. Do lado de dentro daquela caravana era tudo igual a si mesmo ou igual a nada. Numa das nossas intermináveis viagens ou durante essa longa viagem que foi a minha infância a minha mãe parou neste mesmo local e eu tomei banho pela primeira vez num rio. Antes era sempre o mar. A fixação pelo azul, essa paisagem cansativa e excessivamente luminosa. Por isso o rio foi amor à primeira vista. Eu tinha sete anos. Acabámos por ficar aqui um mês. Foi o mês mais estável de sempre. Numa dessas tardes de banhos e cigarras a minha mãe olhou para mim e também pela primeira vez olhou-me. Os olhos dela transmitiam pena de mim. Li-lhe por dentro que sentia a minha solidão. 
A nossa vida dava um filme, oh se dava. É por isso que não gosto de cinema.