Moro lá perto. Perto de uma casa caiada de branco e listada de azul. Moro logo ao lado do profundo oceano. Lá onde as velhas ainda choram em coro. Onde os miudos brincam com bolas de couro. Onde o pão cresce no forno, onde a luta amassa a terra, onde os filhos aprendem a palavra: guerra. Moro lá perto mas já não vivo lá dentro. Parti e acampei na fronteira. Onde não sou guerreira nem estrangeira. Naquela linha onde alguém é...ninguém. Não se sabe ao certo quantos somos mas todos os dias chegam mais manos vindos de todos os cantos. Á noite ecoamos palavras de livros que escaparam ás queimadas e deambulamos pelos montes, por isso nos chamam: os monstros! Também há quem diga que somos fantasmas, sombras de gente daquelas terras, gente que arrumou a tralha e partiu. Como eu.
Não tinha muita coisa, a maior parte eram livros e escritos meus. Esses acabei por lança-los á fogueira também, não os livros, os escritos. Eram meras exorcizações minhas, sem qualquer valor literário. É preciso dar lugar ao novo. Ficar preso ao que já se fez empobrece o espírito criativo. Talvez por isso tanta gente tenha feito o mesmo. Mas não deixamos para trás só palavras, deixamos casas, objectos, vizinhos, amigos, família e memória...muita memória. Quem aqui acaba de chegar nunca traz um sorriso no rosto. Traz muita mágoa e desgosto. É doloroso romper com o passado e partir em direcção a nada. É doloroso abandonar uma identidade por muito amortizada que ela esteja. Dói encarar um rosto vazio e partir apenas com as mãos nos bolsos, arrumadas e guardadas para fazer não sabemos o quê amanhã. Mas dotados de muita coragem, todos os dias aparecem mais, vindos de todos os cantos do mundo, manas e manos de todas as formas e jeitos. A nossa rotina é simples, dormimos de dia nos pinhais, abrigados do sol tórrido que absorve as quatro estações do ano. E de noite, deambulamos à procura de respostas, e de comida, deixando ratoeiras para os animais da floresta e redes para o peixe no mar. Muitas vezes caminhamos juntos em silêncio, conectados pelas palavras que temos ca dentro e que nunca se calam. Todos carregamos este fardo e alguns de nós não sabem o seu próposito. Preferem ignorar a vontade da palavra que vem de dentro. Mas ela não se cala, de noite ou de dia, ela transcende o nosso pensamento e cria raízes nos nossos cérebros. Somos diferentes mas cada vez mais. Amanhã provavelmente seremos todos iguais e nesse dia talvez a palavra se cale e dê por terminado o seu propósito. Tenho fé de que logo no dia seguinte a palavra se metamorfoseasse em algo diferente e que um a um fosse colhendo novamente cada um de entre qualquer um. Mas é só uma fé, já mais acima daquela que me move neste momento na procura das minhas respostas ao lado de todos eles.
Assim, depois de terem passado não sei quantas noites e dias, hoje, posso dizer que: Moro Aqui. Mas a pergunta que insiste em resposta em mim neste momento é esta: Qual é a diferença? Qual é a diferença entre a vida lá dentro e a vida aqui na fronteira? E será que para além destes limites, há outra vida diferente? Eu sei que estou a fazer as perguntas erradas e que é por isso que não encontro as respostas certas. Eu sei que a pergunta que eu deveria fazer é esta: Qual é a diferença em mim? Aqui, lá perto, lá dentro ou lá longe, não importa. Eu sei. Só não estou pronta para a resposta. Ainda Não.