quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Chamar por Mim

M. dança sem coerência no varão da sala grande. Ao fundo um homem dos seus quarenta anos fuma charuto e observa-a. Não sabe porquê mas sente uma vontade imensa de chorar. Há algum tempo que isto lhe acontece. Na presença de mulheres atraentes, na hora de se envolver com elas, ao invés de ser invadido por ondas de prazer, chora, chora como uma criança. Sem razão..sem saber porquê. Todas as suas últimas noites de encontros têm acabado em momentos de aconchego e em palavras de alento. Começou a aperceber-se de ver nelas a sua mãe. Falecida há muitos anos, quando era ainda criança. Sempre fora um bom amante, homem de carícias e palavras bonitas. Desencantando de si mesmo, sente uma espiral sugar-lhe pelos pés tudo o que em si conhecia antes. Como se o chão o engolisse de vergonha por ser incapaz de ser homem.

O. fuma sem pausa na mesa do canto da sala grande. No centro uma mulher ainda jovem dança sem grande coerência. É a sua noite de estreia. Enquanto procura um ponto focal que a absorva da vergonha do seu corpo quase despido, deixa que o seu pensamento parta para trás. Quando ainda era menina e brincava aos casados. Vestia e despia as suas bonecas, cozinhava e sonhava com meninos bonitos e beijos proibidos. Ninguém lhe disse que seria assim. Que por obra de falta de oportunidades e de um vício que lhe fechou todas as outras portas, hoje seria bailarina de varão. Não chora. Não sabe o que é chorar desde criança. Não sente nada a não ser vergonha, vergonha por ser mulher, por ser esta mulher.

Quando o olhar dos dois se cruza.

Como se olhos falassem só por si. E AS LÁGRIMAS DE O. PASSAM PARA OS OLHOS DE M. E A VERGONHA DE AMBOS É DILUÍDA pela troca de saliva. Numa palavra...vamos! - Deixa-me só despedir do R. ! - pede-lhe M.

R. que durante todo o tempo esteve sempre atrás do balcão. Que tem explorado mulheres jovens e abusado da carência dos homens. Na caixa registadora vão somando facturas de vidas que não têm mais preço. Já o pai era o proprietário deste antro e ele, por nenhuma razão especial ou porque cresceu neste meio, pareceu-lhe tão natural dar continuidade ao negócio como observar tudo com a supervisão de quem pretende manter tudo tal e qual como está. Noite após noite, que a harmonia seja rentável para ele. Desde criança que vê a mulher como um fim para pagar contas e o homem como um ser fraco capaz de gastar o que tem e o que não tem em vícios nocturnos. Mas há já algum tempo que tem sentido estranheza no peito. Uma angústia sem nome que não consegue calar com nenhuma mulher ou bebida. Quando conheceu M. foi apenas mais uma, que passaria a ser sua propriedade. E quanto a O. seria apenas mais um cliente. Mas hoje, atrás do seu balcão, enquanto M. dançava e O. chorava sentiu algo diferente invadir-lhe o pensamento e o corpo. Uma ansiedade sem nome que o transportou para o tempo em que era menino e brincava com pistolas e carrinhos da polícia. Do tempo em que viu a primeira mulher a ser negócio para o pai, a mãe.

- Vou-me embora, desculpa, não sirvo para isto! - E M. e O. nem olharam para trás.

Três tiros. Nem uma lágrima de quem reportou isto. Mas no caminho para casa T. procura no bolso pelo pacote de cigarros que apenas usa em dias de grande espera. Há vinte anos que trabalha como jornalista de crime. Sente-se farto, farto sobretudo de não sentir mais seja o que for. Cada cena que reporta é apenas mais uma. Vive delas, como cão de guarda, sempre à espera do telefonema da esquadra. Pela calçada do Cais, fumando um último cigarro pensa quando será o dia em que será reportado o seu próprio crime. Porquê esperar? Esperar por quem? Não tem mulher, não tem filhos, nem animais. Ninguém o espera em casa.
E no momento em que decide avançar da ponte E. passa de carro.

E. acelera. Está atrasado para a reunião da manhã. Despenteado e com um molho de folhas no banco do passageiro procura pelo número de telefone na ficha do cliente. Aí estava, o número de O. Liga mas ninguém atende. Volta a ligar e ao passar pela ponte vê um homem pendurado do lado de fora do gradeamento. Na pressa de o ajudar trava e o carro de trás bate-lhe. Em queda livre sente o pânico e em poucos segundos recorda que nessa mesma manhã, quando o despertador tocou estava a sonhar com..não teve mais tempo de recordar.

EU. Eu limitei-me a escrever. E escrevo porquê? Há dias em que me sinto cansada de personagens, de vidas e de histórias que não me saem da cabeça. Dias como este em que acordo e quero apenas sair à rua e fumar um cigarro enquanto passeio e elas não param de me atormentar, como slides de fragmentos de sonhos, sonhos que não são meus e que me consomem com as tormentas dos outros. E por quem passo apenas vejo angústia, choro e ausência de vontade de viver. O meu nome é M.O.R.T.E. e por favor, deixem de chamar por mim.

Déjà Senti

Olha, olha o mundo que está lá fora..sente tudo o que há para sentir e deixa que sejas parte dele. Dele. Elemento de Universo paralelo de microship com rápida introdução no coração. E reprodução de muitos de ti. E instalação de fórmulas inorgânicas. E assim, janelas sampleadas de nós virão trazer-nos espelhos de realidades que não vivemos. Caractéres de tamanho de corpo infantil, de baixo valor aqui. Ninguém cuida mais deles. Ninguém quer saber. Dantes era hereditário. Dantes..Alma Mater..agora..Alma CaedereAnda envolve-me mais uma vez. Dá-me este último cólo. Aperta-me, centrifuga-me até ti. Até sermos unas. Unicelular como ovo de avestruz. Anda levanta-te e olha o mundo que está lá fora. Está à tua espera. Cheio de fome e de sede. Qual deles? Como déjà senti..eu não sei em que mundo sentes agora. O teu olhar parece estar sempre focado em algo que não está lá e o teu coração bate tão depressa que se vê do lado de fora. Espiritual, emocional? Parte de ti é felino e a outra parte é apenas inquilino..em mim. Nas horas que viajamos juntos por lugares absurdos. Mixando em Analógico. 
Amor Amorfo

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Na mão de todos Nós


Eu vi nascer um cravo. Cravado no cimento de um prédio, ciumento de outro tempo, arranquei-o e matei-o. E o gesto levou para longe o medo. Tranquilo de ser um segredo, continuei ao meu jeito. Subterrâneo, silencioso. Subcutâneo e cobarde. E o tempo foi mais teimoso. Vigilante da Liberdade. Fui eu quem o plantou para esse propósito? E alimentou e preparou, como um filho? Agora recordo. Contei-lhe histórias, reguei-o com memórias e adubei-o com coragem. Fiz dele a voz da revolução. O orgulho de uma geração. E depois..Agora recordo. O cimento. Tinha no pensamento dar-lhe o eterno. Monumento para que ninguém esquecesse esse tempo. Esse querer maternal que à velocidade de um gesto o matou. Por ele passaram dias distraídos. Pisado, usado e festejado sem afecto. Agora tudo faz sentido. Arranquei-o e replantei-o. E do meu sopro espero que cada semente chegue ao outro. Agora vejo nascerem irmãos. Na beira das estradas, nos jardins e até nas próprias estátuas. Vivos no pensamento de todos nós. Vivos na mão de todos Nós.