terça-feira, 28 de outubro de 2014

Saudade

Silêncio da saudade medonha. Que palavra esta que nos encesta
Meu Deus, rebentando de saudades tuas! Pelos outros deixar
o nosso bem mais precioso aguardar, para quê? diz-me? para?
Se o maior valor está aqui, longe de pessoas que não se dão,
de famílias que não se entendem, de palavras que não se encontram
Não, aqui!
Aqui comando eu, personagens que vivem vidas que eu desejo
que eu sonho, que eu anseio, que desejo! Minhas!
Ai Deus, estou tão bem sozinha no meu canto
porque insistes que os cantos do mundo têm de ser nossos?
Se eu não preciso de mais nenhum a não ser do meu.
Que se dane a métrica, o verso, o correcto, o destino e
mais o intelecto,
a mim que todas as emoções secassem de vez
para que eu fosse apenas, vez, de palavra a entrar no texto
da maneira que eu quero, à minha maneira, o verso
só meu.
A explodir de amor por ti.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Se tu me esqueceres


-Sabes a que sabe o orvalho? Acaso já o provaste?

I


Calçou as botas e saiu para as cavalariças. Movendo a palha, Timóteo transpirava enérgico iluminado pelos veios de sol que a velha janela empoeirada tresmalhava da manhã. Sentindo a presença dela endireitou-se e retirou o chapéu.
-Minha senhora, a égua está pronta. Vai sair já? - Josefina aperaltando a camisa dentro das calças indagou - Os homens da obra do telhado já chegaram?
-Já sim, estão desde cedo lá em cima. Este Inverno a coisa vai ser diferente, nada de aguaceiros pela casa adentro, vai ver que até vai andar mais calma. 
Procurando pela égua, Anastasis, de porte elegante e possante, uma puro sangue irada, Josefina toca-lhe nas crinas com paixão. Calçando um estribo, sobe-lhe ao lombo e arranca a todo o vapor pelas grandes portadas quase tombando Timóteo que se ri amontoando memórias da velha casa no canto dos anos que lhe moem as costas. Sentou-se no banquito de madeira, bebendo um gole de água fresca do balde. "Desde cachopa que é assim, indomável, com quase trinta anos, não há quem lhe ponha o freio.." e nestes pensamentos num misto de carinho e preocupação pelo futuro da velha casa, deixou-se descansar aturdido de calor. 

Não havia nada que Josefina mais gostasse do que estes passeios pelos campos fora e a ideia de ter de ir à cidade na próxima semana para o casamento do primo incomodava-lhe até ás entranhas dos "fígados". Atravessou o prado da quinta onde as vacas negras acossadas pelos carraceiros ora deitadas ora lentamente ruminando aqui e acolá se indiferenciavam à sua presença. Chegando à vacaria o cheiro do leite em pó dos bezerros deu-lhe fome. Prendeu a égua na argola e seguiu o odor do leite acabado de colher. 
-Minha senhora, vem ao leite fresquinho? Foi agora acabado de ferver. 
Bebeu de uma taça o leite amarelo natado de um só trago e depois de saber se havia novidades por ali, seguiu. Hoje queria chegar à aldeia antes do almoço para saber como estava a evolução do vestido para o casamento na costureira. E carregando nas esporas fez a égua voar pelas terras batidas que estreitas conduziam às primeiras casas. Agarrando-se ao pescoço do animal, sentia-lhe o bater do coração, que tal como o seu, não queria descanso. 
Na porta da costureira deixou o animal e tocou na sineta do murete. Ao obter licença para entrar, descalçou as botas no tapete e cumprimentou a velha curvada de óculos fundidos de garrafão. 
-Bom dia "madame", eu se fosse a si despia-me já toda aí...é um cheiro que não se pode, deixa-me o quarto das provas empestado.
-Sempre bem disposta, D. Gracinda...mas olhe se a deixa mais feliz, ontem tomei um grande banho.
-Esta rapariga é uma desgraça, então acha que é assim que vai arranjar marido? Só se for um badameco qualquer desses sem olfacto e sem tacto. Ande lá, vá, vamos lá a ver se é desta que aprova o vestido. 

No quarto das provas havia duas pequenas camas, acolchoadas de padrões florais e folhos bem passados. Do lado oposto um grande roupeiro espelhado e ao canto uma mesa redonda com a caixa dos alfinetes "torturantes". Josefina despiu-se atrás do biombo e tentou enfiar o vestido pela cabeça, gritando de lá de trás:
- Oh D. Gracinda isto não me passa pela cabeça.
-Pois não menina, então não vê que já tem o fecho colocado na lateral, tem de o abrir e é por baixo que o enfia...bem se vê que esse corpinho não está habituado a roupas dessas, ai que desgraça...o que diria a sua avozinha que tão aprumada era...
-A minha avozinha que Deus a tenha em descanso e a senhora bem sabe que eu tenho mais com que me ocupar naquela quinta imensa...sou só eu e não chego para as rédeas. 

A costureira colocou os últimos alfinetes apertando a zona do peito - Parece mesmo uma Princesa! -  e deu-lhe ordem para despir o vestido. Em tempos outros chegou a trabalhar na velha casa duas vezes por semana, as senhoras eram muitas e havia trabalho para duas. Mas hoje, com o falecimento de umas e a partida de outras, só restava Josefina mofando perdida naquelas paredes infinitas de silêncio. Dispensara todas as empregadas com o último falecimento, o do pai, à excepção daquela que fora também a sua ama, a Maria. Velha e cansada mal dava para cozinhar, limpar e arrumar aquele casarão, porém Josefina não se preocupava com a lida da casa depositando toda a sua atenção na quinta. Interessava-lhe pouco se havia assados para o jantar, se as suas camisas estavam passadas ou se as porcelanas estavam isentas de pó. Queria era saber dos pastos, da saúde das vacas, do escoamento do leite para a cidade e pensava já em expandir o negócio para fora do País. Sabia que alguns dos seus concorrentes das terras altas já o faziam e ela não queria ficar atrás. Todos os anos, partia para a capital, embora lhe desagradando a saída do descanso da quinta, mas partia para a "Grande Conferência Internacional do Leite e dos Produtores Autónomos" a fim de estar atualizada. Aos irmãos nada mais interessava senão as pernas e os peitos rosados da capital e ela, como única mulher solteira e perdida, por aqui ficara e decidira avançar, mantendo o nome e o património do pai. A bem dizer, desde pequena que acompanhava o pai pelos campos a cavalo e não foi preciso tirar nenhum curso para seguir as suas passadas. Foi preciso apenas coragem, muitas destas pessoas que por aqui trabalhavam há anos, estranharam receber ordens de uma mulher, miúda novinha. Mas Josefina de peito erguido, escanzelada e sempre de sorriso aberto, preocupada com as suas vidas, não tardou a conquista-los passando a ser "A nossa Senhora" da Quinta dos Alados. 


II


Pela hora do almoço, assomava finalmente à porta de casa, correndo à cozinha procurando pelo almoço. A velha Maria passava de uma panela para a outra atarefada.
- Não sei que raio de ideia teve a menina de pedir codornizes para o almoço, nunca lhe dá para estas frescuras e eu estou velha já nem consigo ler bem o livro das receitas, olha fica como estiver... 
Josefina apertou-a pela cintura dando-lhe um beijo gordo no rosto.
-Maria, maria. Então foram oferecidas com tanta estima, não vamos deixar estragar. Estão divinas de certeza, já cheiram, vou lavar as mãos, espero por ti na mesa. 
As duas almoçaram lado a lado, há muitos anos que Maria não era tratada como empregada, mesmo no tempo em que o pai era vivo, já se sentava à mesa como parte da família e era servida pelas outras. Josefina tinha-a como uma mãe, porque a sua falecera muito cedo com as febres daqueles tempos, incuráveis. Quando se serviam de café, Maria lembrou:
-Olhe que chegou uma carta para si do seu primo, deve ser sobre o casamento, digo eu - e buscando no móvel da entrada trouxe a carta na mão. Josefina abriu e leu.
-Que desgraça! 
-Que é menina? Que desespero é esse? O seu priminho já não casa?
-Não, pior Maria, casa mais cedo, adiantaram o casamento para a semana porque a mãe da noiva está para morrer. E o vestido que nem está pronto...estava com esperança de ter mais tempo para me mentalizar de ir à cidade...
-Deixe de ser tola. E a outra senhora coitadita, já estava doente há muito tempo, tem-se aguentado para ver a filha casada, como as coisas são... - e deixou-se pensativa olhando as cortinas da janela sem ver. 

Josefina que era de poucas emotividades, habituada desde muito cedo à morte aproveitou a deambulação de Maria, e levando consigo alguma loiça para a cozinha, subiu ao quarto para descansar. Despiu as calças que a apertavam depois daquele manjar dos deuses e atirou-se para cima da cama suspirando de horrores com a perspectiva da viagem.  Todo este drama tinha a sua razão de ser. Quando tinha 18 anos, o pai enviou a filha para a capital para casa de uns tios mais afastados para ser criada como uma senhora e aprender um ofício digno, já que em casa só havia homens e vacas. Naquele tempo era assim. Durante duas semanas, Josefina aguentou a tortura de estar longe da sua casa, dos seus campos, da sua vida como sempre a conhecera. Mas ao fim desse tempo, arrumou a trouxa e fugiu numa noite pela janela do quarto. Fugiu mas zangada com a atitude do pai não veio para casa. Sabia onde os tios guardavam algum dinheiro e roubando-o apanhou um comboio para a Europa. Durante um ano ninguém teve notícias dela, naqueles tempos, tudo isto era um escândalo. Quando regressou o pai temeu que nunca mais a filha arranjasse bom casamento. No entanto, quando esta apareceu à porta da quinta, trazendo a égua consigo, o pai abraçou-a e acolheu-a prometendo nunca mais se separar dela, dando graças a Deus por estar viva. Fora ele quem batizara a égua de Anastasis. 

Josefina viajara como quase uma pedinte, disfarçada de homem pelos países vizinhos. Muitas foram as histórias que trouxe consigo, algumas delas guardadas no segredo da sua memória mas a da égua, é a que mais escondidamente a orgulha. Como ganhou este animal numa aposta num tasco em Sevilha, como quase a tombar-se de álcool ganhou para um homem pesando o quadruplo dela, ela que nem estava habituada a grandes copos. Como depois num acampamento cigano conheceu Manolito e este a ensinara os grandes segredos do animal, de como domar a ira do cavalo e torna-lo num bailarino de toureio. Manolito, o seu único amor até aos dias de hoje. Por lá ficara e ela e Anastasis, retornando a casa como duas foragidas desgraçadas. A égua domada por Josefina mas nenhuma das duas domada pela vida. 
Quando pensa nele, chora sempre um pouco, não queria ter partido mas sabia que mataria o pai com o desgosto da sua ausência. Regressar com ele, um cigano sem terra seria impensável. O casamento do primo era em Sevilha, razão de toda a sua angústia. Sabia que só o encontraria se fosse ao seu encontro, não temia um acaso do destino, temia a sua própria vontade. De tanto intimamente querer estar com ele, mas os anos passaram, que seria feito de Manolito? Estaria o seu acampamento assente em arraiais por terras ainda andaluzes? E este chão agora pertencia-lhe, precisava das suas mãos como o cavalo do freio e bridão. Este era o seu lugar e seria sempre. Do nascer ao morrer, tal como seu pai. 


III

E o dia da véspera do casamento chegara. Com uma mala de mão saiu na Praça de Armas, o comboio atrasou vinte minutos. O primo esperava-a impaciente. Josefina atrapalhada na multidão que se empurrava para se afastar do comboio escutou o seu nome. "Como estava mais velho", pensou ao abraça-lo. Já alguns cabelos cinza malhavam o espesso manto negro que abrilhantado se alinhava até à nuca. 
-Prima, pareces saída de um filme do antigamente! Vais-te surpreender com as modas por aqui. Anda, a Conchita está muito ansiosa. Ajuda-a nos últimos preparos, a mãe está mesmo nas últimas. Vais adorar a casa. Como estão os negócios na quinta? - E assim foram conversando todo o caminho contando as novidades de cada um. 
O carro atravessando as avenidas cheias de movimento e vida e Josefina passando o olhar sobre o passado. Algumas coisas estavam diferentes, sobretudo as pessoas. Tudo parecia mais aberto e arejado e olhando para o fato masculino de cortes direitos nublado que trazia vestido, achou-se de facto, velha. A trinta quilómetros da cidade ficava a aldeia e afastada, depois de travessarem um grande portão, uma grande casa apalaçada de influências árabes. 
Conchita veio à porta brasonada de ferro, de rolos na cabeça e roupão. Feliz por ve-la convidou-a para entrar. Passando por corredores com tapeçarias até ao tecto e jarras do seu tamanho, Josefina estava pasmada com tamanho luxo e nesse momento ocorreu-lhe que o seu vestido era ridiculamente simples para o contexto mas pensou na D. Gracinda e no que lhe dedicara à fraca luz dos anos que os seus olhos viam e viriam a ver e sentiu-se comovida com o mesmo. Sentia dentro de si como um remoinho ou erva daninha, o peito a bater mais depressa e as emoções a surgirem como furnas esbaforidas de anos de selo.  Conchita foi andando e explicando que a casa datava do século XVI e de como a sua família tinha o cunho real espanhol, tudo pormenores que Josefina tinha perdido pelo escasso contacto com o primo e sobretudo, por estar isolada do mundo na sua vacaria paradisíaca. A outra ia falando mas o seu pensamento fugia a todo o momento para Manolito, esta viagem estava a doer-lhe no epicentro da alma. 


IV

Foi durante a cerimónia que a boa da senhora mãe da noiva faleceu. Apenas a madrinha deu pelo fenómeno e na maior das dores de indecisão resolveu esperar pelo fim da cerimónia para dar a notícia aos noivos e restantes convidados. Diz-se quem estava mais de perto, que faleceu sorrindo ao ver a filha entregue e feliz. A filha mal teve tempo de chorar de alegria quando já as lágrimas de despedida da mãe lhe escorriam de uma outra cavidade do coração, bem mais funda, infinita abismal sem regresso. O copo de água prosseguiu por respeito aos convidados mas os noivos partiram logo para lua de mel, adiando-se o funeral por uma semana, ficando evidentemente a senhora já sepultada naquela mesma noite. Sem bem saberem como resolver a situação da forma mais harmoniosa esta foi a que lhes pareceu mais adequada. Claro que a lua de mel foi para a noiva uma lua de fel, mas a distância ajudou-a amenizando-lhe a despedida. 
Josefina ficou na noite do casamento por ali. Naquele casarão imenso, num quarto que duplicava o seu na quinta, tanto em dimensão como em riqueza. Depois do jantar os convidados foram partindo e o jardim foi ficando ao abandono dos adornos meio desfeitos, dos cravos vermelhos murchando, do luar amedrontado pela solidão da cúpula coberta de nuvens.  
Sem sono e sentindo-se impaciente, desceu ao páteo das cavalariças. Tudo estava deserto, como se uma catástrofe tivesse retirado toda a alma humana por magia e os espaços tivessem sido retidos num só frame de espaço físico idílico. Passou pelas várias boxes, os animais estavam serenamente à espera de contacto. Contando-os seriam mais de duas mãos. Josefina espantou-se, não sabia que o primo se dedicava à criação de cavalos, talvez não dedicasse, talvez fosse uma herança do matrimónio e a paixão viesse a acontecer. Os acontecimentos haviam sido tão efémeros que Josefina sentia-se atordoada, sentia falta de Anastasis, de Maria, até da sua lua que era tão mais clara que esta. 
Passou a mão pelas crinas de um potro que parecia chorar e mais de perto viu uma lágrima passar-lhe do olho pelas ossadas macias do rosto. Tão pequeno ainda que de pé as pernas tremiam-lhe. Acariciou-o e o animal pareceu gostar, relinchando com as patitas no ar. Onde estaria a sua mãe?
Quando procurou por um pedaço de palha para lhe dar à boca no lado da porta da boxe sentiu uma presença aproximar-se na porta da cavalariça. Mal iluminada distingiu um homem que caminhava para si com um balde e uma pá. 

-Aquí...Senhora - e estendeu-lhe do balde um pedaço de palha. Josefina estagnou naquela voz que tão antiga guardada estava na longevidade da familiaridade ainda. Levou a mão ao rosto dele, como se os seus olhos não vissem e procurou pelos mesmos traços. Havia alguma queda da passagem dos anos mas não havia dúvida. 
-Todo me lleva a ti, a mí estás destinada...- E beijou-a como se o tempo tivesse voltado atrás, com a mesma paixão de antes, prendendo-a nos braços. Josefina por momentos julgou ter morrido. Mas quando voltou a si, descomposta de emoção afastou-se dizendo-lhe:
-Não me peças mais...Dei-te todo o meu coração na distância dos anos que passaram entre nós. Como queria ter estado a teu lado. Estou viva?
- No es tu destino morir hoy. Mi alma no se contenta con haberla perdido. Sus ojos infinitos... 

Pegando-lhe na mão correu com ela saindo da cavalariça. Passaram o jardim e para lá da casa, apontou no meio dos campos negros uma chama trémula. Era lá que estava o acampamento. Mas Josefina deteve-o.
- Não posso. Não posso, tenho de voltar, é lá que está a minha terra à minha espera. Vem comigo agora! Não há nada que nos impeça...foi mesmo o destino..tu estares a trabalhar aqui e eu aparecer...vem, vamos agora! 
Mas Manolito apontou-lhe novamente a chama ao longe perdida no vale acolhido pelas árvores sombrias - Deja que el viento corra. Escucha su voz, su cuerpo. Pregones de la vida...o déjame en mi serena noche..con mi único fuego mudo - E largou-lhe a mão. 


V

O comboio apitava o adeus. O motorista que a trouxera regressava à aldeia. Não ficaria nem mais um dia naquele lugar. Josefina sentia o peito apertado, como se uma cinta o espartilhasse de dor e a sufocasse até não mais respirar. Na sua cabeça todas as perguntas e nenhuma resposta. Porque não fora ela com ele? Porque não viera ele com ela? O que prendia as pessoas para não serem capazes de escolherem o caminho do outro? A sua vida lá era assim tão importante? O seu acampamento, a sua quinta...lugares, apenas lugares. E por tudo isso, crescia dentro de si um desalento desacreditado desarmado pela ausência de fé e de força. A viagem foi lenta. Josefina teve todo o tempo do mundo para pensar sobre tudo. Vinte anos à espera deste momento para acabar desta forma, tão pobre, tão triste de beleza. Tal uma planície onde nem as vacas pastam, porque nada cresce. Deserto, solidão, vazio. Viajava na carruagem mais triste do mundo. 

A nossa senhora da Quinta dos Alados estava de volta, mais velha, mais triste, mais cansada. Quando Maria a sentiu chegar veio a correr à porta enchendo-a de beijos, mas tudo o que Josefina queria era o conforto da sua cama e a sua almofada para lhe abafar a mágoa. Porém, não teve tempo para tais fanicos. Maria agitada atropelou-se nas palavras:
- Menina, aconteceu uma grande tragédia na sua ausência, sente-se aqui no alpendre que eu quero contar-lhe tudo com calma - mas calma era coisa que lhe faltava, Maria nervosa chorava tentando passar firmeza para dar força à patroa - Houve um grande incêndio na vacaria, conseguiu-se salvar alguns animais mas as máquinas foi tudo à vida, eu queria ligar-lhe para Espanha, contar-lhe mas achei melhor esperar, afinal a menina já estaria de volta no dia seguinte. Foi ontem. Morreram dois homens lá dentro. E não é tudo menina... - mas aqui a voz sumira-se-lhe de todo e as mãos tapavam-lhe a boca como se pudessem impedir de tudo ter acontecido como aconteceu.
-Fala - gritando Josefina - fala tudo de uma vez Maria.
-Anastasis...coitadinha...não sabemos como mas soltou-se e atraída pelas chamas, não sei, entrou por ali a dentro e ninguém a conseguiu salvar, parecia possuída, ai eu nem quero pensar no que aquele animal tinha menina...Não se salvou...talvez ela soubesse o quanto a vacaria era importante para si e quisesse ajuda-la...eu sei lá...ela parecia que falava consigo às vezes...menina como eu lamento - chorando agarrada a Josefina.

Josefina caíra ao chão. Anastasis era uma paixão. Uma extensão da paixão de Manolito, uma parte de si, uma parte de ambos. "Como podia viver sem ela?", agarrou-se à terra húmida e escavando com as unhas,  os dedos enterrando de ódio à terra, o grito da revolta. 


VI


-Sabes a que sabe o orvalho? Acaso já o provaste?

E Manolito abrindo os olhos, respondeu-lhe...
-Lento en mi sombra, los mismos pasos, los mismos días... de amor sin freno, amor mío.


quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Anastasis

vai passando de mão
a primeira folha a arrancam
o lápis se desgastando renovando
afiando-se a si mesmo na rugueza
em cada ponto de riso e tristeza
Começamos sempre pelo fim
Caseando depois rematando
no improviso sem giz
o céu ao longe parecendo feliz
dias decididos e por isso, nossos
mal me quer, bem me quer
é o amarelo do girassol e o verde
das folhas que caem dos ramos
nos despedem ao ver-te caminhas
constelado de beijos de andorinhas


que esse botão tem um só
um lar, um chão
e nesse caderno de mil folhas
caem lágrimas estalando
os dedos de emoção

ressurgindo a cada
nova estação