terça-feira, 27 de outubro de 2015
é preciso operar a úlcera
nenhum ouvido poderá sentir a aproximação
da loucura rematada
da difícil anatomia da solidão
não foi a queda que nos quebrou a espinha
a máquina que mal funciona
que nem o próprio peso acarta
o ruído sibilante da ausência
houve uma tentativa breve de lhe gritar
da única vez em que te sentiste levitar
do esforço visual
a ilusão do mestre estereotípico
do completo pormenor do físico
no diagrama do grande homem
linhas que ficam para ali ametafísicadas
em si entisicadas
desempenhando sempre figurante
o ponto vibrante do andamento
examinar-lhe a língua assim dobrada
ou pelo menos querendo estar revirada
recomendar-lhe que se agite
como se estivesse à disposição de um ataque
de narrativas asnáticas gargalhantes
tudo tem a sua complexidade
o verbo urge do uníssono: operar!
do amarrotar da folha e engoli-la de gula
pequenos números não fazem soma?
pequenos núcleos têm as células
mas nenhum ouvido poderá sentir a aproximação
...
as úlceras devem ser operadas em segredo,
para não despertarem outras
domingo, 25 de outubro de 2015
linhas espectrais
o homem que nasceu duas vezes
opiando sobre o movimento pacifista
pela arte de radiografar a alma
e o amor como essência coloquial
bailando aerobicamente o pecado
uma cascavel enraivecida morde o lábio
-as formigas podem salvar florestas
o prefixo onde o sobrenatural é natural
o nosso mundo desabrocha
imaginando as montanhas que é capaz de mover
em trajes folclóricos os quadrantes alegóricos
ser pedante e incompreensível
cineasta para acompanhar o movimento do corpo
uma carcaça que em vez de osso
tem sonho
e levantar o trono ausente de ícones
solidamente se instalar aos pés do vazio
a ti entrego, ao asilo da tua vontade, o chão
e foi o homem que paranóico supra-sumo
se encolheu no silêncio do consumo
e esse azul passou a ser azul-piscina
e esse verde passou a ser verde relva
e esse sol passou a ser a estrela central
preso à moldura de estuque
que naturalmente se esbate contra o medo
na borda protectora da consciência
aquela sensação inconcreta
de uma fachada qualquer, parecida com outra
cometas, poeiras, satélites
a mente não passando de uma janela corrida
e essa sensação de talvez noutra vida
a energia que flui devolvendo o preso arbítrio
- e então eu sonhei, o que sonhei?
experimentar o absurdo na ponta dos dedos
esse formigueiro meio vivo meio dormindo
essa ideia que passa lentamente se afasta
e nos dedos no final, não ficar nada
- mas eu sonhei, só não lembro o que sonhei
para dar tempo sem razão
de circular tempo pelos atalhos do acaso
e estranhar mais, muito mais
para além do tempo lacónico
o invisível estará sempre acessível aos nossos olhos
-não sei ao certo quando comecei, quando me comecei
mas eu sei que me sonhei
gentes sumidas sem dar sinal de vida
homens chacais piramidais deambulando na cidade branca
e ao ritmo alucinante de uma máquina de auto-destruição
o cataclismo do processo de nos extinguirmos
como fazendo parte de tudo isto sem método
mas um trevo de quatro folhas é uma mutação
a ânsia animalesca da besta pedestre
cerrando os dentes atravessando a vida
nos dois sentidos
e um monstruoso rinoceronte assimétrico
pode quebrar a rigidez do asfalto: a insolência do ataque
para revolver a terra e regressar ao começo das eras
o homem que nasceu duas vezes
uma deus, outra homem
quinta-feira, 15 de outubro de 2015
língua viva
a densidade vasculhando limiares
sonambulismo na frequência vaga
entradas lexicais das entranhas
nessa depuração das faltas hexílicas
nessa retratação das falhas ortogonais
indigitar o indigente de espírito
exonerar o ingrediente do sacrifício
o paradigma de todas as folhas caídas
secas. contraídas de seiva extinta
assinalando o final da soma vital
do ciclo completo do eixo vertical
a dicotomia da lua, sombras digitais
em toda a extensão de pedaço de céu
aquilo que nos fere como um dardo
se nos apreende quando órgão móvel
numa cavidade bocal sem domínio
o texto enunciado é redoma e exílio
o texto procurado é um papiro celular
o lugar de resistência é anónimo
sinónimo de presença nómada
castrando a delineação convencional
da extensão conhecida por superfície
anamórfico, esse lugar de paixão
pontos de cor numa grelha de dor
fumaloras do coração extinguido
de guarita destinada aos vigias
à margem dos meditativos guias
camminus cegos impulsos certos
o design dessa força generativa
tem a forma de uma língua viva
a poesia é semente futurista
do planeta imaginário
Panaceia-da-glória
são horas de reentender a constância
tão cerrada perturbada mascarada
e insensível a intenções de ressuscitá-lo
do mesmo futuro intemporal
as vicissitudes umbilicais cósmicas
de um estado novo de novo levantado
são horas de ser de estado um homem
pedaço bicho de toda a humanidade
homem nascido livre de verdade
homem de verdade nascido livre
são horas de levantar âncora
a cerimónia do encargo da consciência
dar uso orgânico às asas
e num estalar de dedos estremecer
o apalpar a linha ténue do chão
que nos há-de comer sem fome
inundar as ventas e o corpo inteiro
das grandes lides das venturas
e sumir-se farejando de perto
a ponta oblíqua do inferno
são já horas da pancada grossa
de braços de ferro com a sina
de colocar as esporas e o rosário
de tomar de pulso o sacrifício
e partir para a grande cruzada
chamada vida nossa
são horas de nos matarmos
de se quebrarem as estátuas
de se dominarem os dragões
de se seguir um andamento próprio
de se cantar outro hino com glória
de se enlouquecer de sóbrio
depois de tanto inebriados
do vocábulo cianeto-estado
são horas de nos matarmos
para renascermos como gente
ou são horas de os matarmos
para assumirmos ser gente
quarta-feira, 14 de outubro de 2015
o canto da cotovia - o último
somos descendentes do sonho
sumindo a brancura dos contornos
espiralando uma cotovia madruga
derramando êxtase para o ex céu
donde vim eu?
sinto todos os aspectos possíveis da atmosfera
em termos meteorológicos
o poder de aproximar-me da terra
ser um laboratório aéreo
os grandes turbos que me reduzem a velocidade
até estar quase parado
uma cabine telefónica
algo humanoide do outro lado da linha
sinistro, terrível
gongos chineses em cânone
sobre a temperatura da água os meus dedos fervem
sou tempestade tropical de pavor
aperceber-me da forma dos ossos
agora a olho nu
do auscultador vocábulos interrompidos
alguns dos mais ricos poemas do mundo
tenho a certeza de serem poemas
busco um bloco de apontamentos
atraindo os olhares de todas as tripulações
que já me habitaram
tenho a sensação de estar a ser leiloado
loteado célula a célula
uma sensação demasiado concreta
hão-de instalar-me electricidade
talvez comecem a construir uma cidade
o sobrolho autónomo tremelica
envoltas nos esboços da agonia
sinapses irradiam-se de corrente sanguínea
sinto na boca uma secura pegajosa
hidratar hidratar ...hidra...ar
o santo graal depois da colheita do sal
hei-de ser um oceano sem chão
o papel enrugado
os campos cobertos de sangue
bocados confusos de carne crua
pendurada a cabeça do animal sobre a lua
acabada de nascer
nessa cobertura que não é mais céu
bocados de seres caídos
em acidente de aviação sem destino
cobri-los com serapilheira
quando o crepúsculo se adensa, acender uma fogueira
o alimento do fogo, poema a poema
na hora íngreme da noite
no exacto momento dos ponteiros sobrepostos
ascender a esse ex céu que há-de voltar a ser céu
lá, pigmento a pigmento
colonizar de estrelas o pensamento
estrelas que já foram gente cá dentro
mas a chamada é paga no destino
daqui amarras prendem-me ao fundo
no fundo desse oceano compacto de escuridão
onde as estrelas não brilham
e os pedaços de carne viva
acenam em despedida, a troca
afinal são eles que estão de partida
e a cidade há-de ser construída com estes ossos a descoberto
depois de todos ardidos, os poemas sem destino
hão-de servir as cinzas para surdas madrugadas
onde nem as cotovias espiralizam
mas somos descendentes do sonho
é tudo o que sei sobre mim
segunda-feira, 12 de outubro de 2015
retrato retardado de um crime
o tilintar da narrativa coando
tricotando insaciáveis oscilantes
a compilação laboriosa
de entender a vaga realidade
corpo a corpo as horas incontáveis
numa ideia obcecante
confissões de uma criatura embrionária
recortando a própria tragédia
pingos de chuva em nuvens de zinco
distendo felinamente os músculos
no brusco impulso de se chover
a silhueta de ferozes dentadas observa
tesourando as moscas voando
trocando de roupa através do biombo
na preguiça de um homem retraído
deitado sobre a cama encharcada
o estampido da felicidade desalinho
como um ferro ainda em brasa
cingindo-se à sensação corpórea
comprimia-lhe o coração
-nada sinto no penetrar da densa treva
as ramadas lá fora obstruindo o caminho
no encontro de um ponto tão distante
no lugar mais estranho na hora mais absurda
como a ideia do fundo do corpo
donde se escutam memórias de juras
rumo ao desconhecido
- hás-de ser toda minha
no corredor tristes hospedes nocturnos
passadas vagarosas
de frases completas veladas
que se demoram
- hás-de ser toda minha - murmurava
algo próximo ecos do asfalto
dessa via instinta de íntima compressão
vazam contraídas as bermas
as lágrimas recomeçando a cair
recolhendo da viagem
dores que ninguém pode definir
e a imaginação a galopar
mais longe, tão longe, imparável
correndo de asas nos sapatos
desamparados ao lado da cama
batem as zero badaladas no quarto
pedaços de papel descolando
começam a passear pelos cantos
ideias soltas de tanto
de todos os esboços encurraladas
querendo voar para fora
ideias soltas de fugitivas
o amanho da cabeça malfadada
desmaios dos olhos perdidos no vácuo
o envenenar do espírito de histórias fantásticas
-neste quarto morreu um tipo
crispando o sangue ainda latejante entre as mãos
talvez a lua entre as mãos, se a houvesse
singela como um pedaço de sombra
que abraçamos no desespero da solidão
do mundo irreal, alvéolos de impotência
dentro da cabeça habita uma colmeia
vespas fazendo ninho em teias
para o veneno do mel ser fatal
porque as saídas do desespero têm sabor amargo
da desastrada precipitação das horas inteiras
a ondular esse quarto parasita
donde a leve brisa não é senão sentinela
de uma linha fronteira à janela
calcando decalcando recalcando
as divisões que nos comportam
o mundo deixado na palma da mão
sacudido, o candeeiro escorrendo
o mundo líquido e transparente
do começo de tudo o que pode ser indivíduo
- podias ser minha, toda minha
deixando o biombo ela desliza e regressa
- e para que querias tu uma sombra?
sábado, 10 de outubro de 2015
mariposa adicta
o surdo sonar
afirmando o silêncio dominante
a noite caminhando descalça no oceano
sem o mais breve gesto de revelia
a noite caminhando em direcção à orla
negando-se do rasgar da escuridão
de não se quebrar sequer com a respiração
mas teus dedos transpiram os meus
perturbando a ordem da caixa vazia do peito
as palavras se desencontram na cantilena ensaiada
querendo ler nas manhas as origens
do amainar, a altitude das forças
próximo de um praticável onírico
em uníssono queixos caídos pasmando
suspiros cor de rosa
suspensos no tecto fim de mar
de bocas abertas galgar desencavernando
quem responsável por tanto?
o conteúdo claro cuspido pela manhã
pelo rebentamento das admiráveis ondulações
cordeiros mortíferos de deus
debaixo dos teus e dos meus, versos
querendo pontos de intervalos
saltos em falsos mergulhos
para amanhã sermos um homem morto
mas as palavras afogam-se
para encontrar o reduto, redutor
aparelhos de escuta plantados na lua
as carnes frias da solidão
estraçalhadas pelos cães danados
cães que dormem na praia
as pessoas convivendo como dantes
ninhos de decomposição, a inquietação
o acesso vedado à areia
diabólicos duzentos metros de luz
mais coisa menos coisa
se acordando, devagar, aliviando, respirando
o corpo abandonando a tensão
um único cão agora bebendo o sangue
adunco cada pensamento se ordena
primeiro a hora, depois a data
é tempo de examinar os contornos do dia
o indicador arrancando o olho esquerdo
para atravessar pelo periscópio
a língua azul redobrada bebendo o sal
bicando de cada estrela a sua ausência
dependurar a via-sacra na ocular
o cheiro do canal infernal
rodopiando ainda a ideia de pôr fim à vida
murcha como a roupa encharcada
abandonada no seio da enseada
quinta-feira, 8 de outubro de 2015
este algo que vos deixo
que se misturem todas as línguas de Babel
andando em círculos a ponta do martelo
à procura do fim dos tempos
a conjuntura de lágrimas detendo o instante
fitando o presente, escudo ou cura
devassando o passado, teses de instantes
e partir a comitiva rumo incerto
os olhos da besta bem abertos
virgulando o pensamento a cada arcada
a cada nova prova do enterro
degustando-se a vida por oposta
o conceito há-de ser digno de um corpo
cavando por aí abaixo o organismo
no estado latente enrijecendo-se
a massa alienígena que nos molda
ora de gozo ora de abatimento
tesouras presas a um cordão de cintura
rasgando milimétrico o ventre
e os pés delgados sempre cobertos
longe a cabeça calva das cogitações
ungentos de malva para atrair
o perfeito desequilíbrio das faculdades
-expressões soltas e vagas
deixando em testamento ambíguo
imaginando-se o resto
segunda-feira, 5 de outubro de 2015
o barómetro dos dias do fim
ao alvorecer os remoinhos das margens
examinando sem ser observado
pelos ecos da colina que vai alta
a profundidade da neblina
a uma légua de distância da definição
de cada seu primeiro andar
um cata-vento e três degraus de pedra
os respiradores do submundo
trazendo recordações da terra
a um ritmo familiar
a melancolia de um dia de cinza
o que resta das ruínas?
cabelos postiços e golas de renda
levantando a aridez dos sonhos
implantados nos contornos palpebrais
de todas as consequências possíveis
de um silêncio perturbador
as badaladas do campanário
tornando insuportável o chamamento
de todas as coisas humildes resistentes
abre-se o céu a uma alvura de apetite
projectadas as asas e tendões
a uma animação terrestre cuja íris
se vai habituando em reflexos
e os longos cílios sombreando
um corpo de mármore renascido
as forças combatentes
querendo tarefas importantes
homens de ferro abandonando a estrutura
dos ferimentos recebidos, a cura
as faculdades inventivas
em busca do desconhecido livre
de entre as garatujas, traços súplices
o espírito que reproduz a garotice
parelho de um espelho de sangue frio
enrolando e desenrolando fios
entretendo um destino as minúcias
orações da língua de ritos
ser capaz de descrever
a cólera que escondem as paredes de cal
de vidas recalcadas
a sua continuação abismal
nessa espécie de asilo
habitando por caridade um estado de vazio
tudo autómatos rudimentares
o balanço das ideias cansa e adormece
soldados decapitados de verdade
marchando fantasmagóricos
marchando no imaginário
lacunas cobertas por tampos de mármore
declarando estado de sitio
ao chegar ao paraíso
ser capaz de descrever
de cada seu primeiro andar
como está o tempo lá em baixo
sábado, 3 de outubro de 2015
sangram as mãos danadas
nos aposentos da absorção do espírito
destrinçar, isolar, manejar
através das malhas do raciocínio
deter um grito pavoroso, longo, vibrante
galgando os laços sobrenaturais
passeando de um lado para o outro
na valsa de um faraoco
seria sempre um tiro à queima-roupa
no impossível de forjar o verosímel
trincos e cordéis para o grande estendal da fé
partituras de milagres
que importam as teorias do ressuscitar?
são as horas e as instituições que comandam
e por cima dos canteiros de relva
os mortos já não choram
mas ao vento invoco
sementes pairando sem receptáculo
ossos do ofício do imaginário
amarfanhado o espírito envidraçado
dos pedaços de lentes caídas dos olhos opacos
intrincados
burburinhos de abandono
sacudindo uma ortografia sem dono
a minha pele há muito que foi lida
conclave trotando metafísica
e o passivo linfático que aqui habita
tem ainda qualquer coisa de fantástico
contra o espaldar conservar o equilíbrio
levando à boca de outrem mordente
a língua do perfeito incoerente
e sugadora e abusadora
adubando de artificial mentes mosquiteiras
que nunca lhe faltasse musicalidade
a essa voz demência por canais semicirculares
selvagens perseguem a presa
giroscópios, alucinoscópios
balões levitando sobre cidades fronteiriças
a insolência de uma travessia qualquer
mentalmente nula
numa espécie de rede de pescar à mão
sonhos que se deixam morrer na boca
apaixonadamente séria
gatilhos espirituosos versados
mochos
como se estivessem costurando os mortos
ecos profundos de intimidade
formando um halo completo
encurralando por detrás de um leque ébrio
o ciclope alma vítreo
donde tudo se pode avistar a curto palmo
quando o pensamento rebobina em falso
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