quarta-feira, 23 de maio de 2018

o profeta anda a pé



um anjo disse-me
desceu as escadas de espírito normal
vogara pela lua
de anotações e saltos de quarto
a fosforescência da queda
nos trabalhos da luz branca
desenhos a lápis
no esforço do sonho perturbante
representando árvores velhas
agachado no reflexo capaz de morder
o próprio lábio
tal vez deitar-me no seu colo
para a habilidade draconiana
pequeno peixe de água doce
no impulso atlante de chegar ao fundo
depois um elevador ou cabo de aço
atravessar  terrenos depressa demais
seguro à linha as mãos frágeis
a linha descendente acabando na ponta mundo
longe de casa tão longe do mapa
saber não morrer na viagem
não poder agarrar uma nuvem
para aterrar de pé
para subir depois caminhante
os pés doridos a pele enrugada
atravessar num estético isolamento
como se andasse de passeio
um anjo disse-me
reconheceu a voz grave da renúncia
vestia cetim preto e gola alta
seda chinesa cachimbo cara branca
lábios carmim para invocar em mim
o princípio do lugar invulgar
aquela coisa que algema que prende
catalisador de sangue fervente
a curta duração
no cubículo das coisas devidas de pé
neurológicas intermitentes cirúrgicas
tão raros para a grande perda
chamara-lhe pavão maldita forma de gesso
o pintor caído de um andaime
a ferida aberta de um prédio
num quarto contíguo à voz metálica
um canto de pranto de malícia
cadeira de baloiço antiga
como um peixe num aquário
o rabo entre as pernas
coral seco de prateleira
sacudindo as moscas o espírito de repouso
no repouso completo das escamas
lâminas de barba a quietude do silêncio
necessitando de um gato
de um telefone que toque
a direcção do pólo
do calor húmido do sexo
anzóis para um passatempo peso
e buracos de um campo de golfe
um anjo disse-me
um bando de codornizes o canto de galos
o mugido do gado o cheiro matutino
a pastagem caleidoscópica
desenrolando-se como uma fita matraqueada
a brisa da madrugada liberta
formigando das chaminés
das maçãs de adão dos pescoços de galinha
anémico globular hipopótamo
quartos de círculo de sol guindaste
o cirurgião de mãos limpas
a tinta já encarnada no casco dos homens
bonecos de absurdo incansável sedativo

um anjo disse-me
fedelho do próprio demo
insecto dos próprios miolos
injecções de poeira catatónica
para andar aos pulos numa corda de violino
para pronunciar dos lábios ao auscultador do mundo
que somos a atracção física
o mistério espantado pelo próprio reflexo
a atitude livre dos loucos
a amortização da hipoteca
numa espécie de idolatria pela terra


sexta-feira, 18 de maio de 2018

pranto da melancolia


À água pedra lascada
o envelhecimento das marés da lua
lobos de um inverno estranho à espreita
árvores caminhando por todos os cantos
olhares em diálogo da linha pungente
da cavidade torácica a máscara cirúrgica
a água periférica dormente
dos impulsos vitais perfusionista
para a técnica de transplante da alma
agonizante
litro fluxo de sangue oxigenado
contrair-se expandir-se
se o novo coração batesse
hipodérmico esponjoso sorumbático
o tórax aberto injectado
para esse bypass de amor
varetas elevadas acima do horizonte
olhar vítreo de ogivas esquiadoras
havia uma fronteira perto da dor
o passo aveludado uma viagem solitária
o fixar das garras no cangalheiro
predador sinistro sibilante
lince do silêncio das clareiras
esse ponto de fuga de anta magnética
navegante arquejante
as patas dianteiras as primeiras casas cómodas
cornucópias de rancor enevoadas
para o latir das trovoadas da recordação indefinida
o sol, a cal, as paredes
constelações redes de janelas abertas de lua minguada
até amanhã que são só lugares
o movimento dura a imagem translúcida
chorões abertos no espaço verde fármaco
a electrocussão polar que nos derrapa a cada segundo
o voo cativo para mastigar o vazio
o ódio implacável no cadafalso da existência
sempre nos meus horizontes
o infame punhal cravado de inflexível maldição
negoceio-me de horas sem narrativa
o antes fortaleza guarnição cárcere
quero sondar cada aparição solar
com a convicção de que estou vivo
calçar os estribos da loucura
o perfume férrico diluído na maresia de pontão
cada embate de chegada e partida
uma ilha de terra e calços humanos
onde estarei sempre de visita
o estúpido remate do coração margem a margem
de noite a respiração lenta das águas
um túmulo de sombras nos cantos do cárcere
os olhos vagamente na luz extinta da lua
nesse movimento de sentir o gélido contacto
dos espectros que andam à mercê da maré
de um sono ligeiríssimo
a luz que preenche as fendas do peito
o sol que rasga a pele e nos devolve ao mundo
escutai a meia noite da hora lendária
erriçarem-se os cabelos da cabeça
na terra dos grandes criminosos
o rumor dos passos já próximos
um homem envolto num grande manto azul
à insónia entregar as palavras
havemos de passar pelos corredores das ruas
servir de mordaças e roupas brancas
até amanhã pela manhã
a água ferramenta das nossas lascas
para nos esculpirmos num só
numa qualquer ideia de cumplicidade
com a íntima paixão da escuridão
havemos de explodir com essa embarcação
que nos empurra margem sim margem não
e trepar por todos os sucalcos do inferno
pelos intrincados corredores do cárcere
escutai a meia noite da hora lendária
a maquete original dos drenos da morte
para o voto solene de morrer para o mundo