quinta-feira, 17 de outubro de 2019

O abismo da paz


O sol no lugar do oratório
pântanos que se apanham à mão
na tortura do tempo
a voz de outro mundo soerguendo se
como uma redoma de ternura angustiada
os feixes da muralha feridos
as âncoras dos nossos passos desusados
são os olhos de quartzo que desaguam sem pressa
na sonolência de cada manhã
qualquer coisa que cheira a lavanda ou piedade
e o lustre de pingos de lágrima sobre a cabeça
ampara refractando as primeiras horas
de joelhos no chão reza
a pequena embarcação descola da muralha
erguendo as mãos ao céu
procura na concha a pérola  do medo
havia degraus de musgo
e um quintal galinheiro correndo histéricas por entre as estátuas
vindo comer à mão do profecta
só nos últimos dias mais esmorecido
e às vezes levemente acordado
depois a velha cozinheira varria as ruas
tinha um vazio fora de órbita
no alimento que lhe assomava na beira da porta
havia muitas horas então
para seduzir a sorte de empurrão
e o poder da virgindade para os companheiros de exaustão
havia nesses olhos sempre virgens
um socorro esgotado
e uma leve impressão de deus
ou da vigilância dos céus
uma pensão um hotel familiar
a praça de bronze o quiosque o vago de uma cadeira
ontem andamos por aqui
Imundos como águas paradas
 e sólidos como lugares sem tempo
torres sob antigos arcos de nuvem
para chegar à margem da ria
Esparsos e lodoso
uma grande mancha negra que reflete
armações de caixilho de mogno
batidas, marteladas...pancadas
dir se ia que as palavras eram mecânicas
e as horas, no abismo da paz

porque esperaram anos por nascer
e galgar a pele fantasma da paisagem






quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Conceção terrena de um sonho



Todos os caminhos são pontes
a teia quebrada, o vaso sanguíneo
a memória fortaleza tributo
habitada para se conduzir depois sem estrada
e apontava um peito numa praia
para dormitar ao sol
os pés em gratidão por sentir a areia
naufragando no colo da onda
nomes antigos de que nos tornamos proprietários
consultando a vastidão para nos desaparecermos
como se esgota a palavra na boca seca
e os tremores da terra erupções na pele
a pauta avançando frenética de vazios
e intenções de mergulhar mais fundo
quando a espiral da aranha encontrar o epicentro
para adormecer na quantidade certa da luz
para se encorajar a luz a habitar lhe no peito
e centenas de patas existir na terra o sonho
a sombra regressa ao corpo
as naves levantam para voar no abandono
E os mestres mecânicos da morte descansam
a riqueza quântica do afecto
um lagarto de fogo só num elevador
dirigindo a cabeça um ninho
para fertilizar de dunas e mágicas grutas
um dragão de bronze agora no topo do edifício
para contemplar o aborrecimento da corrente e praguejar sem voz a ocupação terrena
lá em baixo
apenas alguém que exausto de peles
desfila depois de fênix articuladamente
osso e músculo descarnado
como um artefacto de nudez e pureza
e tudo o mais é profanação
fecha os olhos inundando a praça de massa aquática
daquela que afoga a ausência da guelra
e o lagarto da sua varanda ampla
fecha os olhos
procura o cântaro de barro
fundindo se de paredes e pincéis
no canto da sombra do pátio da velha
que se arrasta para dentro
nesse poente sempre tardio
ficam outros descarnados pelo alcatrão
Cães histéricos que se emprestam ao desespero
caminham saindo dos limiares acimentados
para encontrar os prados da velha senhora
o chamamento aportando-se-lhe ao alpendre
murando lhe a vista num cerco de proteção
no equilibrismo erguendo-se um sobre o outro
os muros  crescendo paredes
vazias para ecoar toda a paciência de uma obra catedral
e na praia, na contração de um esforço maior
esse oceano harpa inunda de prata a sombra
para o reencontro da velha criança
para fazer girar inflexivelmente os pulsos
os tornozelos apertados levitam
e caminham sobre a água que um lagarto peixe escolheu...sonhar

Tenho arrumado caixotes de máquinas
que deixaram aqui a um canto
caminho como outrora caminhava no cemitério da minha família
divagando no silêncio
Tudo agora deve ser arquivado no seu devido lugar
para que a terra possa respirar

Fecho os olhos e vezes sem conta a música pára e encontro me nesse lugar

passeio por entre os mortos sem precisar de falar

Não quero dormir a seu lado
Sinto lhes a paz ou o inferno do seu silêncio
Não quero arquivar-me nesse canto
Não me quero num caixote

Penso que me invade esse lugar porque era criança e as crianças brincam entre os mortos, como os lagartos sonham entre os peixes...

Mas só quando a música pára...