quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Conceção terrena de um sonho



Todos os caminhos são pontes
a teia quebrada, o vaso sanguíneo
a memória fortaleza tributo
habitada para se conduzir depois sem estrada
e apontava um peito numa praia
para dormitar ao sol
os pés em gratidão por sentir a areia
naufragando no colo da onda
nomes antigos de que nos tornamos proprietários
consultando a vastidão para nos desaparecermos
como se esgota a palavra na boca seca
e os tremores da terra erupções na pele
a pauta avançando frenética de vazios
e intenções de mergulhar mais fundo
quando a espiral da aranha encontrar o epicentro
para adormecer na quantidade certa da luz
para se encorajar a luz a habitar lhe no peito
e centenas de patas existir na terra o sonho
a sombra regressa ao corpo
as naves levantam para voar no abandono
E os mestres mecânicos da morte descansam
a riqueza quântica do afecto
um lagarto de fogo só num elevador
dirigindo a cabeça um ninho
para fertilizar de dunas e mágicas grutas
um dragão de bronze agora no topo do edifício
para contemplar o aborrecimento da corrente e praguejar sem voz a ocupação terrena
lá em baixo
apenas alguém que exausto de peles
desfila depois de fênix articuladamente
osso e músculo descarnado
como um artefacto de nudez e pureza
e tudo o mais é profanação
fecha os olhos inundando a praça de massa aquática
daquela que afoga a ausência da guelra
e o lagarto da sua varanda ampla
fecha os olhos
procura o cântaro de barro
fundindo se de paredes e pincéis
no canto da sombra do pátio da velha
que se arrasta para dentro
nesse poente sempre tardio
ficam outros descarnados pelo alcatrão
Cães histéricos que se emprestam ao desespero
caminham saindo dos limiares acimentados
para encontrar os prados da velha senhora
o chamamento aportando-se-lhe ao alpendre
murando lhe a vista num cerco de proteção
no equilibrismo erguendo-se um sobre o outro
os muros  crescendo paredes
vazias para ecoar toda a paciência de uma obra catedral
e na praia, na contração de um esforço maior
esse oceano harpa inunda de prata a sombra
para o reencontro da velha criança
para fazer girar inflexivelmente os pulsos
os tornozelos apertados levitam
e caminham sobre a água que um lagarto peixe escolheu...sonhar

Tenho arrumado caixotes de máquinas
que deixaram aqui a um canto
caminho como outrora caminhava no cemitério da minha família
divagando no silêncio
Tudo agora deve ser arquivado no seu devido lugar
para que a terra possa respirar

Fecho os olhos e vezes sem conta a música pára e encontro me nesse lugar

passeio por entre os mortos sem precisar de falar

Não quero dormir a seu lado
Sinto lhes a paz ou o inferno do seu silêncio
Não quero arquivar-me nesse canto
Não me quero num caixote

Penso que me invade esse lugar porque era criança e as crianças brincam entre os mortos, como os lagartos sonham entre os peixes...

Mas só quando a música pára...



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