quinta-feira, 16 de julho de 2020

A aldeia da Ladra



A aldeia da Ladra


Madrugada, dia de feira. O parque de estacionamento dá lugar a carrinhas e carros que chegam ainda de noite para garantir o seu lugar em dia de feira. Quem por aqui passou como feirante, sabe que é preciso ter sorte para encontrar um bom lugar à sombra, do lado de fora dos passeios, na parte lateral do mercado fixo, e espaçoso. Sabe também que apesar de muitos dos lugares serem fixos, há uns tantos outros que são de ocupação rotativa, as licenças ocasionais. Sabe também que a partir das 9 horas quem não ocupou o seu lugar pode ficar sem ele. Sabe ainda que é preciso ter sorte com o vizinho, com o fiscal, com o dia de sol tórrido ou chuvoso, com o cliente turista consoante há barcos aportados no cais e sobretudo, mais que tudo, é preciso ter sorte quando nenhuma licença se tem e se ocupa atento à polícia de fiscalização para fugir à multa. Para que corra bem um dia, quase meio dia pois a partir das 15h já menos se faz, é preciso um conjunto de alinhamentos quase astrais. 
Talvez seja por isso que a feira tenha o seu encanto, o seu vício, a sua longevidade neste mesmo lugar da cidade desde 1892. Por aqui vende-se tudo, até a alma, sobretudo a alma e com muita alma. Quem vende sabe que não basta atirar um cêntimo para o pano para se ter sorte na venda, é preciso dar voz ao pregão, ao desconto regateado, ao olho para adequar o preço a cada cliente, ao olho para se encontrar a peça ou o objecto para cada cliente. Mas a feira é também um lugar de decadência, de mesquinhice, de inveja, alguns diziam sobretudo na ala sul, que era uma selva. 
Por aqui vende-se de tudo usado, é uma feira maioritariamente de produtos usados, velharias, relíquias, livros, loiças, roupas, muitas roupas e calçado, malas e bijuteria e outras coisas do baú. Os mais finos dizem que é a feira dos mortos. E sim, muitos destes objectos são doados ou comprados em leilões de recheios inteiros de casas de falecidos. Outros são as peças do armário que a menina estudante já não quer, outros são roubados à família para a droga, outros e muitos deles, são encontrados diariamente no lixo pelas ruas da cidade.

O dia nasce com a temperatura já a adivinhar um dia tórrido de verão. 

No chão, Marisa estende o pano lilás, dizendo bom dia à vizinha. 
-hoje vai estar um dia quente, daqueles de morrer. sabe se a dona deste lugar hoje vem? a estas horas já não deve vir. ainda não encontrei o fiscal para perguntar.
-ai vai vai menina, já  queima. ela chega sempre atrasada mas não falha. eles devem andar lá pra baixo, daqui a nada estão a passar a pente fino cá em cima. mais ou menos às dez vêm tomar todos café ali à frente.
-pois mas às dez já perdi os lugares todos. 
-isto tem de se vir muito mais cedo. mas olhe tente, depois logo vê. ela é uma comichosa com o lugar, se fosse outra...tente ali o sr. Victor, aquele ali sentado na cadeira, tá a ver? ele não se importa de partilhar lugar, normalmente tem lá sempre jovens...também não vende nada...ehh vem pra aqui passar o tempo. 
Assim era a feira. A primeira grande luta era para arranjar lugar. Ninguém queria ir lá para a parte sul. Se dividíssemos a feira por secções poderíamos dizer que a norte, cá em cima, era lugar de vendedores mais idosos, coleccionadores uns de relíquias outros de tralha, no centro junto ao mercado, os melhores lugares fixos de artesanato e mesmo lá no centro da praça a grande máfia das "velhas". Ali ninguém desejava cair de vizinho, eram más, mesmo muito más vizinhas. Vendiam muito bem e não gostavam da concorrência. A caminho do sul era um passeio de boas vendas, muita passagem. Mas a sul, onde se vendiam na grande maioria equipamentos electrónicos com fama de roubados, era diferente. Mais caótico, desordenado, barulhento. Como se fosse um mercado clandestino dentro da grande feira. Um bom sitio para negócios menos legais e também para ser assaltado. 
A esta hora já Conceição tem a banca toda arranjada. Estacionada na entrada norte da feira, lugar limítrofe mas ilegal. Há três anos que vem sem falhar um único dia, sempre sem licença. Muitas foram as vezes em que foi avisada pela polícia ou pelos fiscais mas Conceição vende lixo ou tralha de pouco valor, tem cinquenta anos, muitíssimo magra, baixa e cabelo sempre pintado louro. As rugas no rosto escavam-lhe a dureza dos dias passados. Pobre, depois de cair no desemprego e já velha para novos empregos. Conceição era assim uma mulher solteira, seca e quem não a conhecesse melhor julgaria que seria uma má vizinha. Mas não. Era apenas uma mulher só, a tentar sobreviver.
Houve alturas em que a ilegalidade da feira se estendeu tanto que houve intervenção severa, motins e quase uma grande desgraça. A feira é um animal de sangue quente. Muitas são as nacionalidades, as idades, as condições económicas e muitas são sobretudo as desgraças na história de vida de cada um. É um lugar superpovoado mas de grande solidão. Cada um por si e o chão a todos.

-então está tudo bem? hoje chegaste tarde! tens lume! Epá os fiscais já ali passaram três vezes, isto cada vez está pior. não se vende nada, é uma porcaria. 
-vamos ter fé, há muito estrangeiro na cidade. vamos acreditar que sim, olhe eu não tarda se aparece aqui a do artesanato vou ter que me pirar daqui - Marisa ponderava ainda ir coabitar com o sr Vitor. 
-opá isto hoje está tudo cheio - conceição acendia o cigarro fumando-o como se fosse um homem muito direito, um homem com cabeça de faisão, sempre atenta aos movimentos dos clientes e dos fiscais. 
-não sei se vá ver ao pé do sr. Vitor...
-esse...puff..esse outro dia no final do dia era ver ele a partir a louça toda e a rasgar os livros...até metia dó...então não era de dar a alguém ou ao menos deixar ao lado do caixote para alguém levar...epá estas pessoas são tão miseráveis ...
-então e lá ao seu lado?
-ai ali? então mas tu hoje tens licença, tens direito ao teu canto...
-vou lá abaixo ao ucraniano, ele também não costuma importar-se
-podes ir à vontade que eu dou uma olhadela, é tudo a 3 euros não é?
-sim, menos os postais que são a 5, mas não te preocupes que a esta hora não anda aqui ninguém a comprar arte...obrigado, vou num pé e volto noutro. 
-olha traz-me um café
-yes

O "ucraniano" como Marisa o chamava era um homem dos países do leste, ela não sabia bem qual. Era um homem de estatura média, magro de olhos muito azuis e um temperamento muito doce. Era o vizinho predilecto e também aquele que qualquer um desejaria ter. Vendia livros e sapatos, falava bem português, era muito delicado, assim na casa dos sessenta. Ás vezes em horas de calmaria ele ia contando bocados da sua viagem. Tinha alguma ajuda do estado e a mulher trabalhava, muitas vezes ele dizia que vinha para aqui porque minha mulher muito chata em casa, dá muita dor de cabeça. Dizia aquilo com um pesar no olhar e um sorriso tímido. Nessa manhã Marisa encontrou-o na zona dos estudantes.  
-olá vizinho, então hoje arranjou-se por aqui?
-sim mas polícia muito chata, eu ter licença mas eles não querem agente aqui...
-disparate, então tanto lugar vazio...olhe venho pra aqui pro pé de si...guarde-me este tá bem?
-sim sim, não problema - compondo o livro que já caía fora do pano. 

 No caminho encontrou finalmente o fiscal. Há um ano que Marisa havia decidido fazer esta feira como segundo e às vezes primeiro emprego. Quer por teimosia quer porque lhe tomara o gosto, ia devagarinho conhecendo os cantos à casa. Eram dias difíceis mas sentia sempre que levava no final do dia mais do que trouxera, sobretudo por dentro. Havia quatro fiscais permanentes. Este, o sr. João era o que tinha mais fama de intransigente, este e a "velha branca" como lhe chamavam, a única dos quatro senhora. Marisa ia intercalando entre o legal e o ilegal. Mas desde as primeiras vezes de feira que simpatizou com este fiscal, ou ele simpatizava com ela e ajudava-a sempre que podia. Achava-lhe uma certa piada porque tinha uma postura muito fria e rígida mas no fundo era apenas um bom homem a fazer o seu trabalho e estaria provavelmente muitas vezes cansado de aturar pessoas mal educadas. Marisa não vinha propriamente de um meio de dificuldade mas na sua decisão de fazer da feira vida, encontrava agora mais dificuldades que antes, estava num limbo entre os feirantes que se podiam assim dividir entre os que faziam a venda por necessidade e aqueles que a faziam por desporto.  Mas a seu ver, encontrava ali mais verdade que em qualquer cadeira de escritório. Era uma existencialista já em finais de época hippy num mundo carente de época alguma ou antes sobrelotado de épocas sem expressão alguma. Era ainda jovem e quando disse em casa que deixara de procurar emprego na área em que se tinha formado para vender na feira, a mãe caiu à cadeira com um desgosto tremendo. Mas Marisa era um ser de  curiosidades e queria viver aquela vida ou talvez se tenha convencido de que essa era a sua escolha. 
-bom dia sr. João vou ali prós estudantes pode ser?
-sim, trouxe licença certo?
-sim, sim, está na minha mala lá em cima
Mentira, esse era um dos dias em que Marisa não a tinha e custava-lhe mentir a quem a ajudava mas não conseguira licença para esse mês, seria um mês difícil de encarar, seria um mês de fé. 
-então Saudade, como é que tá hoje a venda por aqui? - Saudade vendia artesanato feito de pacotes de leite e ainda umas pinturas suas, pequenos retratos surrealistas. 
-olha-me esta doida, ainda andas para a frente e para trás, assim não te safas...já  vendi uns quantos sacos...olha vais ao café? traz cerveja!
-já? dás cabo de mim...
Riu-se, Saudade era uma grande alegria. Tinha uma história de vida daquelas tramadas, dois filhos menores e um espírito muito livre. Sabia vender, tinha boa disposição e sempre, muita alegria. Marisa parou e voltou trás...
-olha lá, aqui entre nós para agente se rir, então o moço do carrinho do supermercado? isso deu em alguma coisa?  ri-me tanto ele a levar-te no final do dia dentro do carrinho...rica prenda que ele levava...ahahah
-nem me digas nada, ganda maluco...mas via-se logo eu é que gosto de inventa-las. Ia-me matando rua abaixo, quase que nos espetava contra o eléctrico. O rapaz é um traumatizado, andava praí a vender a tralha toda da namorada que o deixou...já vejo porquê...opá só rir, só eu
-mesmo!

Entrou no café ao lado do mercado. Lá estava o sorriso do Felipe sempre pronto.
-olha olha a princesa mais linda da feira...que é que precisas de mim?
-bons dias, tá  tudo bem por aqui? então duas cervejas e dois cafés, o meu bebo já aqui. Ando para aqui feita barata tonta, ainda não vendi nada
-não te preocupes tu fazes esses olhinhos lindos aos clientes e eles levam-te tudo
-levam levam...vá deixa te de lérias e despacha-te, tenho a banca entregue aos bichos
-antes aos bichos que às bichas. Irra até me benzo
-lá estás tu com tontices
-tão não os viste passar logo de manhã cedo? Ia um de cabelo cor de rosa e fato de banho e o outro vestido de robot..opá são mesmo maluquinhos
-mas eles costumam tocar ali no meio não é? já não os via há uns meses..vá té logo, beijinhos
-ai tantos...

Na esquina já o ti Joaquim andava às cabeçadas. O homem já chegava à feira torto. As pessoas perguntavam-se como é que ele dava conta do recado. Marisa já conhecia quase todos os fixos que valia a pena conhecer, claro está que as invejosas do centro da praça nem vê-las. O pano do ti Joaquim era um desconsolo, não tinha quase nada para vender e o que tinha...tinha um aspecto tão descaído quanto ele. Cruzou-se então com as três personagens mais caricatas da feira. Três senhoras muito velhas, sempre vestidas de rendas pretas e cabelos muito arranjados. Todos os dias de feira elas cá estavam. Pareciam saídas do filme do Dracula. Unhas alongadas e véus na cara. Lá estavam elas de volta dos baús pulguentos da associação de sem abrigo. A bem dizer tudo tinha pulga por aqui, mais não fosse porque estava no chão quase tudo, mas nada que uma lavagem não tratasse. Viravam e reviravam tudo até encontrarem mais peças de roupa preta, tudo ainda regateado não fosse o euro por duas peças ainda ser muito. Seguiu caminho sempre a subir pelas ruas apertadas da feira que a esta hora começava a atingir o pico de visitantes. Era a melhor hora para fazer dinheiro, era preciso correr mas o café quente na mão e as cervejas geladas na outra confundiam-lhe o espírito. 
-obrigadinho Conceição, toma lá o café..vou prós estudantes, passa lá logo, tens lugar e já não devem passar os fiscais
Arrumou as cervejas dentro da mala, pegou nos dois tróleis carregados e seguiu. De caminho deixou a cerveja à outra e a voar procurou então o seu lugar. Estendeu a roupa no chão e abriu a mala dos postais. Podia finalmente respirar fundo, abrir a cerveja e começar a vender. 
Já tinha conseguido vender algumas peças quando se aproxima o Luís dos discos...
-olha dás-me ali uma olhadela enquanto vou buscar almoço? 
-sim na boa...
-volto já, cuidado se vires aquele indivíduo do chapéu branco, o que traz o puto...eles roubam...tu sabes quem são
-sim, acho que sei, eu estou de olho
-queres alguma coisa?
-outra cerveja, daqui a bocado já passa aí a Tia com os croquetes...
-ya ya as chamuças são boas...
Era assim quando se vivia em boa vizinhança. Houve vezes em que ficou lá no sul. Nesses dias não era possível abandonar a banca e quase sempre a polícia estava de vigília o tempo todo estacionada ao lado. Uma vez correu o boato, foram apreendidos portáteis a um rapaz e afinal ele até tinha licença mas quando foi busca-los à esquadra já tinham desaparecido. Foi nesse dia que ocorreu uma grande confusão. Houve pancadaria e gente ferida, não se sabe bem porquê mas os boatos eram variados, como bons boatos a culpa era sempre da fiscalização e nunca dos feirantes. Ainda que alguns se odiassem quando era para se unirem, uniam. Por isso Marisa não se sentia nada segura na zona sul da feira. 
Mas os dias mais pesados de feira eram os dias de chuva. Raros feirantes tinham toldos, a maior parte trazia lonas para cobrir os artigos, mas a chuva encontrava sempre forma de entrar e estragar metade das coisas. Quando estava anunciada carga forte poucos se atreviam a montar banca, o pior era quando a chuva vinha do nada e apanhava desprevenidos a todos. Esses dias eram desesperantes. Não se conseguia vender, ia tudo encharcado para casa e na carteira nem o dinheiro gasto no almoço. O inverno era por isso doloroso para a venda. Quando fazia vento era ainda pior. As estruturas frágeis voavam, ramos das árvores a cair e um caos desagradável de páginas de livros em rodopio, fazendo um frio gelado para os ossos dos mais velhos. Mas havia a teimosia de mais nada ter para fazer, a insistência e persistência maior do que qualquer jovem em início de carreira, uma força de vontade que os unia e mantinha vivos. Porque eram eles que apareciam para tentar a sorte enquanto que os jovens ficavam no conforto das suas casas e os desgraçados nos lares de abrigo. 
Como já tinha sido referido, havia histórias para todos os gostos. 
O sr. Bragas tinha uma bem triste. Um dia Marisa calhou ficar ao lado da sua banca gigante de meias e cuecas. O dia foi passando e conversa para aqui conversa para ali ele conta...
-a minha mulher adorava a feira, já vinha quando era miudita com os pais. Casei-me porque a conheci  aqui, eu era um putozito sem eira nem beira pendurado de tasco em tasco pelo cais, era para ter ido para os barcos mas acaso do destino enjoava me todo. Depois da primeira viagem infernal desisti. Andava eu por aqui perdido quando a vi. Os meus olhos colaram-se, fiquei embasbacado, sabe menina, a minha mulher parecia uma actriz de cinema, daquelas americanas. Depois pronto foi aquelas coisas normais, começamos a namorar, o pai dela que já vendia este negócio começou a passa-lo para mim, casámos claro que naquele tempo não podia ser de outra maneira e eu encontrei assim a minha vida. Ah mentira, antes eram fatos e gravatas mas quando nasceu o nosso primeiro filho ela começou a dizer que já ninguém comprava fatos de alfaiate e que agora iam às grandes superfícies e tal e que vendêssemos antes meias..eu disse meias? que raio de negócio mais patético...mas assim foi, meias e cuecas novas...o negócio passou de tecidos e fatos para meias e cuecas e pegou, que isto na grande feira quem tem olho é rei e aqui anda sempre tudo cego com as tralhas. Pois eu com as cuecas comecei a safar-me bem. E realmente nesse dia vendeu bem. Era artigo novo, cheiro a lavado e sem pulga. Um dia, já aqui vão sete anos, ela diz pra mim...ai filho...era assim que me tratava...e zás cai redonda no meio das meias empilhadas. Foi assim, como os gatos, de repente. Foi-se. Uma grande facada no meu coração. E eu pra qui vim e continuei a vir, porque era aqui que estava alma dela. Cresceu e fez-se por baixo da banca e das saias da mãe feirante. Ás vezes parece que ainda a ouço a apregoar Comprem meninas comprem, com as meias da Tatá não há traça que lá vá... - riu-se - ela inventava muito, era muito boa vendedora...

Marisa encontrou muitas histórias de solidão, outras de compaixão e tantas outras insólitas. Como aquela velha gorda que todos os dias de feira chorava a potes a pobreza e depois apanhava um taxi para ir para casa, diziam que era tudo mentira, que era rica e estava senil ou a outra que estava mesmo senil e fazia xixi pelas pernas abaixo. Ou o outro que dançava pela feira fumando cachimbadas de paz e profetizando coisas impercetíveis, ria e espalhava o amor. Ou o outro que vendia electrodomésticos que não funcionavam e depois ia ao café pedir para ligarem para o cliente ver como estava tudo impecável e ai que não, hoje faltou a luz. 
Entre mentiras e histórias de azar, entre bons negócios e entreténs, a feira levantava-se todas as semanas à mesma hora para se voltar a deitar no silêncio do alcatrão de um parque de estacionamento. Alheia a rostos sujos, a lágrimas e desgostos, alheia a ricos ou pobres, a sonhos e devaneios. Como um organismo vivo, renovando-se, alimentando-se de alma gentil que aceita o chão  como tesouro. Aqui dizia-se que o lixo de uns era a relíquia de outros. Os objectos renasciam de mão em mão, partos que prolongavam a vida, que do chão rebentava orgulhosa e livre.  

Mas a feira entrou em queda, uma grande crise que tomou o mundo inteiro. Marisa que já antes tinha abandonado a feira, havia encontrado outros trabalhos. Ás vezes passava pelo parque, passeando agora com uma nostalgia de aperto. Era como se os visse por ali, personagens desempenhando o seu papel num palco holográfico. Como se o tempo tivesse sido congelado, o vento trazia as vozes do fado ao ouvido. Aqui, tudo tristes fados, tristes mas muito sentidos.
Saudade empregou-se a limpar quartos de hotel mas com a grande crise estava numa grande aflição porque não havendo turismo também não havia camas para fazer. Os idosos quase todos com reforma fecharam-se em casa, mais calados, mais pesados e mais sós. Os estudantes estavam também eles em casa, sem grandes farras nem feira alguma e os desabrigados continuavam no mesmo lugar de sempre. Porque para eles, aquele parque de estacionamento era a sua casa, e ninguém abandona a casa de ninguém.
Um dia, a feira voltaria a erguer-se. Por aqui desfilariam outras vidas e quem sabe mais das mesmas. Um dia, quando esse dia estiver para chegar, a filha de Marisa há-de ocupar o seu lugar.





quarta-feira, 8 de julho de 2020

A Aldeia do PVC

Nota ao leitor:
O relato poético que se segue, segue à linha o cenário mas carecendo de investigação jornalística tudo o mais é ficção..fica o retrato aos olhos do poeta.
Dedicado à minha avó.



A Aldeia do PVC


I
no acender das luzes sob o pano tétrico da cidade
os pássaros esvoaçam como morcegos em volta da lâmpada
assim dois entardeceres, uma união extra terrestre de solidão
é ensurdecedor o cair da noite lento as cores desmaiando
e os pássaros voando em voltas emparedadas
agora mais que nunca, em silêncio, e voam com tanta energia
que alguns batem contra as janelas caindo no passeio esborrachados
desconcertante como o raio da bicicleta que chia subindo a encosta
sentada num banco de madeira uma velha de olhar quebrado
conta e desenha os voos aleatórios ou os anos que lhe doem nos ossos
do outro lado da margem, na aldeia do PVC, sentada no mesmo banco
no seu quarto de micro jardim detalhadamente cuidado como um bonsai
outra velha, de olhar infinito, virada de costas para a falésia
talvez cansada de uma paisagem extasiante, as gaivotas frenéticas
atrapalhadas na maré cheia, os barcos que não chegam, o peixe que não cai
na rede mais estreita da miséria, cada lote de pedaço de vida
conta a sua história em surdina, no silêncio da queda do dia
há 50 anos esta aldeia não existia, se foi criada por recriação
depressa se proliferou por necessidade ou por infortúnio
uns de férias, outros reformados, as caravanas foram estacionando
e ficando e outras, casas de chapa branca, mais tarde imitação e madeira
umas dir-se-ia quase de luxo outras verdadeiras lixeiras
as bandeiras anunciam que a A32 é uma casa portuguesa
a pantera negra esposada no telhado de zinco e a águia no bico da face solar
há para todos os gostos, micro regas para micro pedaços de relva,
canteiros e flores de plástico, estruturas para baloiços e churrascos
pequeníssimos lagos, o menino que faz xixi de pedra, o cão que ladra
o gato que foi proliferando em muitos gatos selvagens e o mar
sempre o mar de companhia rebentando na fúria da falésia
que lentamente se vai decompondo em areal e grutas e dunas
-tá a reclamar de quê pai? fica aqui com uma casinha à maneira
-se um dia chegasse a velho não me importava nada, vá vá lá jogar
os compadres tão à espera no tasco da Chica
Quando se entra nesta aldeia parque recreativo sente-se que é muito mais casa
do que qualquer estância de férias...talvez um lugar onde se é deixado
longe de tudo, numa pequena dimensão aquele que seria o sonho de muitos
hoje é a casa anual de outros...novos, velhos, habitantes do PVC
muitas são as casas que anunciam a ferrugem quer pela humidade marítima
quer pelo tempo da degradação da vida
as estruturas dos balneários estão arranjadas mas no pavilhão central é notório
o tempo, alvo de crescimento sem doma, alvo de falta de investimento
também o espaço se foi proliferando, duas grandes piscinas na zona sul
cortes de ténis, zonas de churrasco colectivo, tanques de lavar roupa
lavagem de carros, supermercado, cafés, e muitas bicas de água
porque nunca a água poderia faltar numa aldeia plantada à beira do mar

II
-pai, o pai precisa de andar, vá lá baixo à tasca. Olhe a Ti Jacinta ali na frente, tá na mesma.
-sinto-me cansado. cansado de não fazer nada.
-tão mas o pai tá velho, queria fazer o quê? O mar não é pra velhos com artrites e diabetes.
-merdas, os outros andam lá e eu aqui armado em finório doutor.
-doutor? oh pai nã me dê graça...os doutores estão nos condomínios privados...mas o pai aqui tem uma casinha à maneira, vá dar uma volta..precisa de mexer essas pernas, olhe pra esses canivetes...
-varas..já me tremem como varas...
Assim se chamava a nossa velha do B33, Jacinta. Jacinta Dias Ferreira tinha outra história. Nunca fora de boas falanças com a nora, desde que o filho se casara contra a sua vontade porque podia ter sido doutor em vez de emprenhar a rapariga aos 19 anos. Ficara-lhe entalado esse desgosto e mais o homem que lhe falecera de tumores vários. Havia uma história simples. Aqui a trouxeram um ano para passar férias, tanto foi o frenesim do costume que a nora lembrou-se de perguntar quanto custaria uma daquelas casinhas tão giras brancas de latão. Uma assim virada pró mar, ai não essas são mais caras, uma assim atão baratinha, pequena, é só para a sogra...não fazia já intenção de voltar a passar férias algumas por aqui mas a sogra sim, passaria o resto das suas vidas, aqui plantada de férias. Jacinta já nem se recorda bem do episódio. Calcula que lhe terão feito uma conversa de sonho. Convencida por castigo, sem outra alternativa e pensando já que seria bem pior num lar, cedeu e ficou. Uma semana mais tarde o filho voltou com muitos dos seus tarecos e até o tareco peludo. Até o gato havia sido repatriado. Fazia-lhe alergias, dizia a velhaca da nora que nunca prestara para mais que parir. Aqui estava também parida a sua grande dor, ficaria longe dos netos, sem poder vê-los crescer, os netos que tanto adorava. Todos os anos a espera do ano inteiro pelas férias grandes. Jacinta    nesses primeiros anos acompanhara a família de férias. Passava os meses anteriores a preparar autênticos cabazes de açúcar, gulodices que faziam as delícias dos netos durante todo o verão. Claro que isso era um empecilho na hora de arrumar a carrinha para partir. Isso e mais as mantas que a velha sempre insistia em trazer atrás, não fosse fazer frio e não estarem devidamente acomodados, isso e as mercearias, os queijos e os chouriços, a saloiada toda que tinha de vir atrás caso não fosse o de passarem fome, isso e os ovos, que ai o que seria de um pequeno almoço sem ovo da galinha do campo, os ovos eram uma tragédia, metade partida no caminho nas curvas e contra curvas de uma carrinha já sem amortecedores, isso e a própria velha que toda ela era já um empecilho, porque a família aumentava e já não se cabia na dita carrinha. E o filho de coração apertado mas cedendo à nova cabeça da família, viu como um alívio a ideia da aldeia do PVC.
Pois nessa semana o filho voltou deixando-lhe os seus objectos, comida, que claro não lhe agradou pois era do supermercado - tão eu aqui não posso criar galinhas mê filho? - nã mãezinha, nã pode, aqui só se podem ter animais de companhia - atão mas as galinhas sã tã nossas amigas...
Nessa primeira semana ainda a encontrou em fase de incredulice, mas com o passar do tempo, o filho ia trazendo remessas maiores de alimentos, deixava dinheiro para que se habituasse a ir ao supermercado da aldeia e com esse passar do tempo visitava-a mês a mês, de seis em seis meses e por fim uma vez por ano, já nem trazendo os netos. Jacinta perdera tudo mas ganhara no consolo de quem espreita de fora o seu peito, uma nova vida e a ela teria de habituar-se. Mas nunca isso acontecera, os anos passaram e cada vez mais o seu pouso era aquele banco no seu micro jardim que carecia de mão de obra. As ervas haviam tomado as janelas e o seu lote mais parecia um grande bosque de escuridão e silêncio. Ti Jacinta era conhecida pela má vizinhança como a bruxa velha. E de facto quem passava por aquele lote e se cruzava com o seu olhar vazio, arrepiava-se de abismo de morte. A mim doeu-me qualquer coisa de só cá dentro. De fim de tempo e apocalipse humano carência. De fim de elos e toda uma espera dolor.

III
-oh pai já viu o que aqueles maganos andam pra li a montar no telhado...que raio será...parece uma varanda...olha agora uma varanda pra falésia...o Sô Vitor ainda se mata por ali abaixo. Aquela gente tem memo a mania das grandezas, tão não se pode construir pós lados, constrói-se pra cima..olha que ideias...
Do lado norte já bombava a aparelhagem em estéreo, há muito que o segurança desistira de por aqui impôr grandes normas, havia toda uma organização anárquica que ás vezes se resolvia à pancadaria. Na recepção tudo parecia organizado e legislado mas por estas pseudo ruas pombalinas a vida era outra. Passeando pelo parque escutavam-se diferentes línguas, mas maioritariamente francês e português.
No T20, nesse pedaço de terraço, a família Borralho já se instalara para as suas habituais férias de Verão, estavam todos sentados cá fora conversando sobre o que haveriam de fazer por estes tempos dado que este ano estava quase tudo encerrado devido à maldita peste que se instalara por todo o lado. Este lote trazia-lhes uma falsa segurança de isolamento da grande cidade, aqui podiam esquecer o perigo e a morte que proliferara durante os últimos três meses pelo mundo. Aqui estavam esperançados de poder descansar as suas cabeças, as miúdas poderiam brincar ao ar livre, tomar banhos no mar e as máscaras de protecção só seriam usadas em caso extremo de necessidade de usar o balneário público. Estavam por isso instalados na ala norte um pouco mais distantes das colunas do pumtstaa dos barraqueiros do R12. O R12 tinha muito má fama na aldeia. Não se sabia bem ao certo quantos lá dormiam, se é que dormiam porque infernizavam de barulho pelas altas horas da madrugada, quando iam para a praia fazer fogueiras era uma noite santa, mas pela praia a vigilância era agora outra, não eram permitidos ajuntamentos. Por isso com sorte entre as 5 e as 7 da manhã os vizinhos conseguiam pregar olho. Também se falava que ali vendiam droga e mais sabe-se lá o quê. ás vezes pegavam-se uns com os outros e quando a coisa era mais séria vinha então a polícia de fora.
Mas pagam a anuidade e tinham um contrato daqueles vitalícios que a nenhum deles pertencia.
Ao lado da família Borralho vivia um casal dos seus 70 anos, velhos mas muito frescos. Todos os dias o Sr Afonso se levantava às seis da manhã para ir para a fila do supermercado para se aviar de pão. Pelo caminho fazia a sua caminhada aproveitando ainda a frescura da manhã. Os Verões estavam cada vez mais quentes e abafados e eles já não aguentavam muitas horas de praia. Vivia-se mais no alpendre ou dentro de casa, que já tinha uma espécie de ar condicionado dentro dos watts permitidos frente à televisão, sempre altíssima porque a Sra Antónia estava surdíssima. Mas liam o jornal que vinha acompanhado do pão e faziam os seus grelhados, e muito amigos ainda, passeavam pelas ruas do parque, pela borda da piscina e em dias mais frescos iam até a pé até à aldeia, a verdadeira mais próxima. Passavam aqui a maior parte do tempo do ano, normalmente Dezembro e Janeiro regressavam à tua terra porque lá a casa era mais quente e aproveitavam para ir às consultas anuais e passar o Natal com a família que ainda vivia no País. Foram emigrantes na Suíça. Ela trabalhava nos quartos do hotel, tinha um álbum de fotografias com as recordações desse tempo. A farda de folhos brancos e o vestido preto, o quarto de casal onde tiveram a primeira filha, os jardins do hotel nas belíssimas montanhas. Aquele álbum era a sua relíquia de memórias felizes. Trabalharam muito, amealharam mas foram sobretudo muito felizes um com o outro. O Sr. Afonso trabalhava na cozinha, tinha boas mãos para amanhar a carne e para o tempero, sabia dos segredos da cozinha portuguesa e por isso foi fazendo carreira chegando a chefe de primeira. Quando a primeira filha começou a crescer perceberam que o quarto que lhes pertencia no hotel era muito pequeno e resolveram abandonar esses trabalhos, para algum desgosto do Sr Vitor e procurarem outra vida na cidade mais próxima. Ele passou dos amanhos da carne para aprendiz de fábrica de chapas de carros e ela empregou-se numa casa como cuidadora de meninos finos. Alugaram uma casa modesta e assim se passaram vinte anos. A filha cresceu licenciou-se em enfermagem, casou-se por lá e por lá vive. Eles regressaram para viver a reforma no seu país, comunicando na sua língua das pataniscas e do vinho tinto, achavam eles. Foi a Sra Antónia que escutou de uma vizinha que nesta aldeia se estava muito bem para a reforma e da falácia da vizinha a adquirirem o seu lote, foi pouco mais de um ano. Estão descansados embora aquele sonho de regressar tenha ficado em águas de bacalhau porque por aqui havia muitas gentes diferentes e muitos emigrantes mas na verdade, já pouco de fado e bacalhau. Aliás o bacalhau era uma relíquia que era preciso encomendar, quem tinha carro era diferente, mas o Sr Vitor já estava mal da vista e há uns anos que o vendeu.
-Vivi (assim o tratava), já viste isto, agora dizem que o vírus já andava por Barcelona antes da China
-agente sabe lá mulher, eles contam e remontam, parece uma telenovela...e agente aqui perdidos...já deve andar por aqui e pior agora vêm esses miúdos todos para as tendas, ainda bem que é lá para baixo.
-ah mas a Filipa da recepção já avisou que este ano a lotação dessa malta está apertada...oh Vivi então hoje não andam com isto para a frente..queria ver a novela..ai é tão linda esta dos pescadores...e a nossa Luísa como estará lá pela Suíça? Ela já deu notícias?
-não..ainda é cedo...ela costuma ligar às dez...credo mulher mete isso mais baixo, fico maluco com essa barulheira dos anúncios
-não sei pra quê, aqueles barraqueiros já ligaram as colunas...preferes aquela porcaria é?
-preferia os pássaros era o que eu preferia...
-pois, pois, também eu...que raio estávamos tão bem na Suíça
-dizes tu...eu cá prefiro ainda assim aqui e olha caso a senhora esteja esquecida, isto foi uma grande ideia sua...aos anos...aos anos
-ai meu querido Vi estamos velhos...que será de ti sem mim?
-será uma grande rambóia....rindo-se
-malvado velho - e beija-o ainda com aquela garotice de meninos de namoradeiras e janelas indiscretas

IV
Em cada braço leva um cão toy...autênticos brinquedos de colo. A menina tem um laçarote cor-de-rosa e o menino um clássico laço ao pescoço preto. Os cães brigam-se numa chinfrineira pela atenção da dona que procurando um lugar à sombra faz sinal ao rapaz da esplanada.
-tem de lá ir D. Berta, isto agora são novas regras.
-essa é boa, desde quando rapaz? Isto todos os anos inventam cá pra cima, então e os meus bebés?
-deixe-os aí amarrados que eles não vão longe, soltando uma valente gargalhada
-ri-te ri-te, aqui há tempos roubaram o chihuahua da Adelaide.
-não me diga...mas para que quereriam eles o bicho? Mas foi cá dentro?
-então não foi, ela foi à casa de banho do parque, deixou-o amarrado lá fora, quando voltou nikles de cão...nem sombra
-ah, não soube de nada
-a mulher anda por aí aos caídos de tristeza...eu bem sei o que é..ou melhor, não quero saber não..só de pensar..os meus bebés lindos..ai meus amores..meus docinhos
Na mesa do lado sentou-se uma rapariga com dois rapazes mais novos, talvez irmãos. Trazia um top amarelo uns calções pretos por onde as nádegas se estrafegavam para fora e umas unhas amarelas gigantes em bico. Aquelas agulhas seriam armas em dia de confusão, talvez dessem mesmo jeito para limpar os ouvidos mas as rapariga olha para a mesa e comenta com os miúdos que não largavam o telemóvel tocando funanás electrónicos
-isto está tudo sujo, vou lá dentro dizer a ela para vir limpar a mesa
-vais pedir o quê?
-caracóis e um tango, vocês querem mais alguma coisa?
Os rapazes negaram com a cabeça, estavam a terminar os copos que traziam o que parecia ser algo entre uma cerveja e um sumo, talvez uma dessas novas cervejas artesanais.
Nas mesas laterais encontrados à parede estavam quatro velhos a jogar dominós, a camisa deixava quase a nu a barriga, os calções todos da mesma fábrica e os chinelos sandália idênticos, Dois deles com meias. Um deles com o boné de sempre o outro com uns óculos fundo de garrafão. Dir-se-ia que era o fardamento mais comum de verão nesta faixa etária, variavam talvez as cores, mas a esta hora da noite pouca diferença fazia. Esta zona do parque estava estranhamente sossegada para o pingo do verão...
-o ti manel não vê que essa não pega ca outra...essa são três..ó homem componha os olhos...
-cala-te lá velho jarreta..tens a mania que és todo janota tens...
-ah já viram que este ano estão a arranjar o coiso do ténis?
-nã sei pra quê..só lá vão os francius e este ano ainda nem meteram cá os cotos...
-pois também não sei...vai mais uma?
-eu nah...a Maria depois da-me cabe da cabeça por causa da gota
-ah olha a gota..agora com a doença dos ricos..tá fino o homem tá
-parvoíce homem...vocemessê só diz disparates
-há que alegrar, há que alegrar...tão não soube do Sô Vitor? Aquele da varanda de luxo...parece que o homem se suicidou mesmo...recebeu umas notícias más lá da terra e atirou a corda ao pescoço
-oh oh tão ainda à bocado estava a passear o cão...você aldraba cada novela...queria ver o homem morto olha agora..isso é inveja homem...isso é inveja...deixe lá as vistas do outro
-ai..que eu caia aqui redondo...foi a miúda da recepção que estava a comentar..atão veio a ambulância e tudo aí à tarde...vocemessê devia tar a dormir a sesta é o que é
-ah pois sim...eu vi o homem todo roxo...ih o que era aquilo..parece que só foi encontrado de manhã..deve ter sido pela noite
-atão é mesmo verdade? olha olha há cada uma...raio do velho...também não lhe desejava tal definho
O relógio acima da recepção batia a meia noite, as esplanadas estavam a fechar e junto à cerca lá ao longe vinha um casal, muito bebido pelo tom da conversa...vinham a discutir estética e ao virar a esquina do portão do parque escuta-se o rapaz a gritar
-tu não percebes nada do que eu digo...ouve-me!
e a rapariga já enervada falava baixo
-opá fala baixo...eu não sou surda, eu já entendi o teu ponto de vista
e o rapaz gritava mais alto - mas ouve-me! Tu não percebes...o que eu disse foi que não me importava nada de ser velho e ter aqui uma destas casas caso...caso ( e berrava bem alto) não tivesse outra coisa melhor
Os velhos levantaram-se para ver o ocorrido.
-eu já percebi isso - dizia ela esbracejando - mas fala baixo que ainda ficas cá fora, eu estava a falar de estética, estética percebeste? isto é tudo feíssimo? ainda se construíssem as casas de madeira! Eu sou uma pessoa de estética, lamento ou não lamento..não é uma questão de snobismo é uma questão de beleza aos olhos. Que posso eu fazer? Fui educada assim..a minha mãe...tás a ouvir...não suportava uma garrafa de plástico na mesa, usávamos jarros de vidro.
Um dos velhos esticou mais a cabeça e comenta para os outros
-oh oh querem lá ver que se pegam..estes jovens não prestam pra nada...tão a falar de quê? Tética? Que é isso?
Os outros encolheram os ombros e começaram a arrumar as peças.
A rapariga calou-se e o rapaz lá seguiu atrás dela cabisbaixo cismando nas suas ideias. Amanhã seria outro dia. A culpa era da lua...devia ser...noites de lua cheia ela dava-he pra aquilo.

V
A aldeia levantou-se com um grande alarido. Perto dos balneários n5 escutavam-se gritos. A Ti Jacinta ia a caminho do pão com o seu saco de rede e o seu cabelo longo esgrenhado. Parou por momentos perto da situação observando com o seu olhar de sempre. Três mulheres berravam umas com as outras a ponto de se arranharem, dois homens tentavam acalma-las, com tanta berraria era difícil compreender o que se passava mas dado que estávamos perto da zona da entrada o segurança veio ver o ocorrido, mas veio com toda a lentidão de quem espera que tudo se resolva por si mesmo.
-sua vaca...eu bem vi ontem tu a saíres da minha barraca
-quê...tá maluca a mulher..eu tenho marido
-ah pois tens..mas nã te chega...agarrem-me que eu vou-me a ela...agarrem-me que é hoje
Não faltou muito para que os homens que estavam a tentar separa-las também eles se pegassem ora porque estavam a ofender a mulher do outro ora porque um dos dois era cornudo. Ti Jacinta inspirou fundo e antes que levasse com algum encontrão colateral seguiu em direcção ao supermercado.
Já vinham pessoas a correr para cuscar o ocorrido mas ela seguiu na direcção contrária. Poucas coisas mundanas lhe interessam, para falar a verdade, Ti Jacinta era menos mais que um vegetal que caminhava quando precisava de alimento ou libertar o seu excremento. Não tinha mais a sua alma consigo. Seria isso que tanto atormentava quem para ela olhava para dentro dos seus olhos opacos. Nada. Não se sentia existir mais nada lá dentro. Os mais religiosos chegavam a benzer-se quando se cruzavam com ela. Inventava-se muito. Que fazia candomblés lá para a praia de noite. Mas na verdade ela só saía de casa para ir ao supermercado.
Estava então na lenta fila do pão quando vem contra si...
-ai oh vizinha desculpe não a vi no caminho
Raramente alguém falava para ela. Por isso olhou-o indiferente compondo o casaquito.
-a vizinha desculpe sim...(e tocou-lhe na mão) - ela inquietou-se e proferiu uns grunhos meio baixo
-não tem mal. Deixe-me
Há muitos anos que se espreitam frente a frente por entre as gretas do arvoredo da velha. Primeiro veio ela, muito depois chegou ele. Nos primeiros dias, curioso velho viúvo ainda tentou aproximar-se do pátio dela com uns bons dias tímidos mas nunca ouvira resposta acabando por desistir. Ficara sempre a vizinha no canto do olho. E não, não era ao acaso que quando ela vinha ao pão ele seguia atrás, só para espia-la só para contempla-la só para se entreter de suspiros. Ela tinha algo de selvagem no olhos, aos seus olhos. Acreditava que era o único que a via dessa forma, especial. Mas aos olhos dela ele nunca existira, aos olhos dela já nada existia que valesse a pena olhar com olhos de ver. E não, não era ao acaso que a seguia portanto, mas foi por desleixo de tontice que se aproximou demasiado, talvez desorientado pela confusão do balneário, tropeçando nela.
-a vizinha sabe quem sou? Sou o seu vizinho da frente - esticou a mão - João, ao seu dispor. Mas a velha não reagiu - a vizinha desculpe, vejo-a muito sozinha. Eu se a vizinha quisesse arranjava-lhe o jardim, era assim uma maneira de me entreter sabe..e sempre ficava mais bonito.
O que ele na verdade queria para além de pode estar mais próximo dela ganhando esse tempo, era também poder vê-la melhor sem aquelas sebes todas emaranhadas. Mas a vizinha reagiu apenas com um encolher de ombros. Isso para ele bastou-lhe. Era tudo, era mais que nada, era maravilhoso. Uma faísca incendiou-se-lhe no olhar - Então logo depois da sesta passo lá. Não foi uma pergunta por recear que ela recusasse. Afirmou assim a sua visita e ela não contestou.
Nesse final de manhã, Joaquina regressou a casa com o saco cheio de pão. Tinha comprado marmelada e chá. Ocorreu-lhe que o seu devia estar podre de velho. Ao chegar a casa não avistou o vizinho. Já havia dentro de si algo novo, não sabia explicar o quê mas estava a acontecer sem que pudesse saber bem. Deixou o pão na mesita da cozinha e olhou em volta. Estava tudo num desmazelo doentio. Ela própria refletida no vidro do armário. Um retrato adesivo da morte. Alguém que nem se reconhecia de tão gasta e esquecida de si mesma. Levou as mãos ao cabelo e levantou-o enrolando-o no topo da cabeça. Prendido com ganchos parecia outra pessoa. Uma pessoa. Foi até ao quarto e abriu o armário das roupas. Já nada lhe serviria, tinha encolhido, mirrado o corpo dentro da pele. Retirou um vestido de corte direito meio esverdeado escuro. Procurou por uma fita e atou-a à cintura deixando a bata rota em cima da cama. Olhou-se então no espelhito ao lado da cama.
- Que disparate, que disparate tão grande...agora nesta idade. Que parva que sou - E procurou por debaixo da cama pela sua mala de viagem. Sentou-se ao lado dela em cima da cama. Pensativa. Foi como se tivesse aberto o peito, um fecho por onde começaram a sair todas as coisas dolorosas que se encontravam lá dentro cristalizadas. E chorou, muito. Como não sabia fazer há muito. Poderia partir. Poderia partir na carreira dos veraneantes que passa junto à praia. Poderia ir visitar um dos netos ou...qualquer coisa como fugir dali para outro lugar. Mas que lugar? Não havia mais lugar para uma velha como ela e o mundo lá fora da aldeia do PVC era um sitio hostil. Arrumou a mala novamente debaixo da cama e foi arrumar a cozinha. Depois sentou-se no seu banquito de madeira e esperou. Parecia que agora, agora havia algo mais para esperar para além do voo emparedado da vida.







quarta-feira, 1 de julho de 2020

A força da palavra



escrevo para alguém que dorme
dias e noites como se as horas não fossem perseguidas da nossa mortalidade
quem me dera que as minhas palavras tivessem a força do astro para te levantar dessa cama
Escrevo com o pesar de não encontrar alguém desse lado
escrevo com a esperança de que sejam breves esses dias de encanto adormecido
A bela adormecida despertou, estava envenenada com toda a violência do mundo
também a tua mente está exausta
é preciso que descanses e encontres de novo uma qualquer força para te ergueres
e agarrares a tua vida
as rédeas da tua própria vida
que é só uma e única e mais ninguém pode viver por ti.
Sabes muitas vezes me senti cair, muitas vezes caí 
e fiz até automedicação desse sono reparador tão essencial para voltar à vida. 
O sono e o sonho são os nossos maiores aliados, 
é neles que nos regeneramos e sem eles morreríamos de exaustão.
 Por isso não há nada mais natural do que dormir,
 mas haverá um momento em que é preciso acordar, 
ou por nós mesmos ou por aqueles que nos amam e estão à nossa espera, 
ávidos de amor e muita saudade. 
A nossa presença na vida dos outros é única, 
o que damos aos outros é precioso
e é dessas dádivas que criamos as nossas histórias de vida. 
Por isso lembra-te, 
quando estiveres preparado levanta-te, 
estamos todos à tua espera
para celebrarmos essa grande dádiva,
que por muito dolorosa que seja, é o grande milagre da vida. 
Estarei aqui à tua espera, 
e também o mundo está. 
Há muita coisa por cumprir e embora a poesia seja sempre fatalista e descrente, 
o poeta não o é. 
É preciso criar a obra. A tua obra. 
Desistir antes de chegar à meta não é opção, 
leve o tempo que levar, 
este caminho tem de ser percorrido e tu nunca estarás só para o percorrer.

Até já meu irmão



o cais das lamentações



diz-se que seríamos os filhos da luz
mas tudo me leva a crer que somos obstinados pela escuridão
um ser matemático regido por pêndulos de dor intermitente
há uma atracção ao abismo incontornável
como se nascêssemos do abandono de um vazio para outro
deixamos um ventre quente para sermos acolhidos por um austero
acho que nasci do avesso, todos os passos que dei foram ao lado
quem me dera ter a quietude dos animais
pintei a minha janela de preto, agora a paisagem invade o interior
com o mesmo rasgo com que me invade as pálpebras
agora a queda do dia é ainda mais intensa
e a cor que trago por dentro é visível
há pessoas nascidas da luz, por isso se diz dar à luz
mas creio que a minha mãe terá parido um buraco negro
uma fome devoradora por vezes sulfúrea inumana
sem pecado nem drama, uma solitária tarde outonal
que segue naquela distância vergada de um passeio íntimo sem pressa
enleada de encanto expresso de um carcereiro sem prisão
é como se prendermos dentro de nós um animal selvagem
e o domesticássemos até à exaustão para que cumpra um propósito
qual prepotência de se achar mais civilizado que os demais
o homem trilha-se diariamente sem voz
de amplos horizontes como o dia mais longo, sem sol
um solstício sem sol
e arde por dentro como a lava que corrói o interior da terra
dormente, fecho os olhos a luz assume laranjas pepitas
penetrando na pálpebra de vibrações de vida
quente e pulsante de desejo
imagino pentear-me no deserto,
um deserto solitário de vozes longe no diálogo
talvez sejamos uma causa árida
a noite calma e límpida sem estrelas
mas para mim o céu sempre foi rebentação na areia
fogo de artifício de aldeia
ondas de lírios para um calvário de mapas diários
a fúria do consumo de uma fénix cega
atravesso uma ponte vegetal quatro paredes de troncos e trilhos de muros
confundindo-se sempre na distância na sombra como ave de rapina
que persegue fantasmas de aviões já cruzados
pedras atiradas ao charco pantanoso sem a muleta de um espelho
acabamos por ser um teste sereno da morte
paradigmas de um estranho que nos habita para sempre
o curso natural de uma aliança obstinada satélite
ou apenas o tempo perdido das nuvens
trago no peito um monstro desafinado
que acabará por espigar cheio de dentes corroídos
com toda a fatalidade de nunca se ter encontrado
um ser panorâmico que iniciou muitas viagens
e ou porque a terra é redonda ou porque divagamos
a chegada é sempre perto demais, a viagem é sempre curta
a vista é sempre tacanha e a vontade sabe-se lá de quê
é sempre insatisfeita