A aldeia da Ladra
Madrugada, dia de feira. O parque de estacionamento dá lugar a carrinhas e carros que chegam ainda de noite para garantir o seu lugar em dia de feira. Quem por aqui passou como feirante, sabe que é preciso ter sorte para encontrar um bom lugar à sombra, do lado de fora dos passeios, na parte lateral do mercado fixo, e espaçoso. Sabe também que apesar de muitos dos lugares serem fixos, há uns tantos outros que são de ocupação rotativa, as licenças ocasionais. Sabe também que a partir das 9 horas quem não ocupou o seu lugar pode ficar sem ele. Sabe ainda que é preciso ter sorte com o vizinho, com o fiscal, com o dia de sol tórrido ou chuvoso, com o cliente turista consoante há barcos aportados no cais e sobretudo, mais que tudo, é preciso ter sorte quando nenhuma licença se tem e se ocupa atento à polícia de fiscalização para fugir à multa. Para que corra bem um dia, quase meio dia pois a partir das 15h já menos se faz, é preciso um conjunto de alinhamentos quase astrais.
Talvez seja por isso que a feira tenha o seu encanto, o seu vício, a sua longevidade neste mesmo lugar da cidade desde 1892. Por aqui vende-se tudo, até a alma, sobretudo a alma e com muita alma. Quem vende sabe que não basta atirar um cêntimo para o pano para se ter sorte na venda, é preciso dar voz ao pregão, ao desconto regateado, ao olho para adequar o preço a cada cliente, ao olho para se encontrar a peça ou o objecto para cada cliente. Mas a feira é também um lugar de decadência, de mesquinhice, de inveja, alguns diziam sobretudo na ala sul, que era uma selva.
Por aqui vende-se de tudo usado, é uma feira maioritariamente de produtos usados, velharias, relíquias, livros, loiças, roupas, muitas roupas e calçado, malas e bijuteria e outras coisas do baú. Os mais finos dizem que é a feira dos mortos. E sim, muitos destes objectos são doados ou comprados em leilões de recheios inteiros de casas de falecidos. Outros são as peças do armário que a menina estudante já não quer, outros são roubados à família para a droga, outros e muitos deles, são encontrados diariamente no lixo pelas ruas da cidade.
O dia nasce com a temperatura já a adivinhar um dia tórrido de verão.
No chão, Marisa estende o pano lilás, dizendo bom dia à vizinha.
-hoje vai estar um dia quente, daqueles de morrer. sabe se a dona deste lugar hoje vem? a estas horas já não deve vir. ainda não encontrei o fiscal para perguntar.
-ai vai vai menina, já queima. ela chega sempre atrasada mas não falha. eles devem andar lá pra baixo, daqui a nada estão a passar a pente fino cá em cima. mais ou menos às dez vêm tomar todos café ali à frente.
-pois mas às dez já perdi os lugares todos.
-isto tem de se vir muito mais cedo. mas olhe tente, depois logo vê. ela é uma comichosa com o lugar, se fosse outra...tente ali o sr. Victor, aquele ali sentado na cadeira, tá a ver? ele não se importa de partilhar lugar, normalmente tem lá sempre jovens...também não vende nada...ehh vem pra aqui passar o tempo.
Assim era a feira. A primeira grande luta era para arranjar lugar. Ninguém queria ir lá para a parte sul. Se dividíssemos a feira por secções poderíamos dizer que a norte, cá em cima, era lugar de vendedores mais idosos, coleccionadores uns de relíquias outros de tralha, no centro junto ao mercado, os melhores lugares fixos de artesanato e mesmo lá no centro da praça a grande máfia das "velhas". Ali ninguém desejava cair de vizinho, eram más, mesmo muito más vizinhas. Vendiam muito bem e não gostavam da concorrência. A caminho do sul era um passeio de boas vendas, muita passagem. Mas a sul, onde se vendiam na grande maioria equipamentos electrónicos com fama de roubados, era diferente. Mais caótico, desordenado, barulhento. Como se fosse um mercado clandestino dentro da grande feira. Um bom sitio para negócios menos legais e também para ser assaltado.
A esta hora já Conceição tem a banca toda arranjada. Estacionada na entrada norte da feira, lugar limítrofe mas ilegal. Há três anos que vem sem falhar um único dia, sempre sem licença. Muitas foram as vezes em que foi avisada pela polícia ou pelos fiscais mas Conceição vende lixo ou tralha de pouco valor, tem cinquenta anos, muitíssimo magra, baixa e cabelo sempre pintado louro. As rugas no rosto escavam-lhe a dureza dos dias passados. Pobre, depois de cair no desemprego e já velha para novos empregos. Conceição era assim uma mulher solteira, seca e quem não a conhecesse melhor julgaria que seria uma má vizinha. Mas não. Era apenas uma mulher só, a tentar sobreviver.
Houve alturas em que a ilegalidade da feira se estendeu tanto que houve intervenção severa, motins e quase uma grande desgraça. A feira é um animal de sangue quente. Muitas são as nacionalidades, as idades, as condições económicas e muitas são sobretudo as desgraças na história de vida de cada um. É um lugar superpovoado mas de grande solidão. Cada um por si e o chão a todos.
-então está tudo bem? hoje chegaste tarde! tens lume! Epá os fiscais já ali passaram três vezes, isto cada vez está pior. não se vende nada, é uma porcaria.
-vamos ter fé, há muito estrangeiro na cidade. vamos acreditar que sim, olhe eu não tarda se aparece aqui a do artesanato vou ter que me pirar daqui - Marisa ponderava ainda ir coabitar com o sr Vitor.
-opá isto hoje está tudo cheio - conceição acendia o cigarro fumando-o como se fosse um homem muito direito, um homem com cabeça de faisão, sempre atenta aos movimentos dos clientes e dos fiscais.
-não sei se vá ver ao pé do sr. Vitor...
-esse...puff..esse outro dia no final do dia era ver ele a partir a louça toda e a rasgar os livros...até metia dó...então não era de dar a alguém ou ao menos deixar ao lado do caixote para alguém levar...epá estas pessoas são tão miseráveis ...
-então e lá ao seu lado?
-ai ali? então mas tu hoje tens licença, tens direito ao teu canto...
-vou lá abaixo ao ucraniano, ele também não costuma importar-se
-podes ir à vontade que eu dou uma olhadela, é tudo a 3 euros não é?
-sim, menos os postais que são a 5, mas não te preocupes que a esta hora não anda aqui ninguém a comprar arte...obrigado, vou num pé e volto noutro.
-olha traz-me um café
-yes
O "ucraniano" como Marisa o chamava era um homem dos países do leste, ela não sabia bem qual. Era um homem de estatura média, magro de olhos muito azuis e um temperamento muito doce. Era o vizinho predilecto e também aquele que qualquer um desejaria ter. Vendia livros e sapatos, falava bem português, era muito delicado, assim na casa dos sessenta. Ás vezes em horas de calmaria ele ia contando bocados da sua viagem. Tinha alguma ajuda do estado e a mulher trabalhava, muitas vezes ele dizia que vinha para aqui porque minha mulher muito chata em casa, dá muita dor de cabeça. Dizia aquilo com um pesar no olhar e um sorriso tímido. Nessa manhã Marisa encontrou-o na zona dos estudantes.
-olá vizinho, então hoje arranjou-se por aqui?
-sim mas polícia muito chata, eu ter licença mas eles não querem agente aqui...
-disparate, então tanto lugar vazio...olhe venho pra aqui pro pé de si...guarde-me este tá bem?
-sim sim, não problema - compondo o livro que já caía fora do pano.
No caminho encontrou finalmente o fiscal. Há um ano que Marisa havia decidido fazer esta feira como segundo e às vezes primeiro emprego. Quer por teimosia quer porque lhe tomara o gosto, ia devagarinho conhecendo os cantos à casa. Eram dias difíceis mas sentia sempre que levava no final do dia mais do que trouxera, sobretudo por dentro. Havia quatro fiscais permanentes. Este, o sr. João era o que tinha mais fama de intransigente, este e a "velha branca" como lhe chamavam, a única dos quatro senhora. Marisa ia intercalando entre o legal e o ilegal. Mas desde as primeiras vezes de feira que simpatizou com este fiscal, ou ele simpatizava com ela e ajudava-a sempre que podia. Achava-lhe uma certa piada porque tinha uma postura muito fria e rígida mas no fundo era apenas um bom homem a fazer o seu trabalho e estaria provavelmente muitas vezes cansado de aturar pessoas mal educadas. Marisa não vinha propriamente de um meio de dificuldade mas na sua decisão de fazer da feira vida, encontrava agora mais dificuldades que antes, estava num limbo entre os feirantes que se podiam assim dividir entre os que faziam a venda por necessidade e aqueles que a faziam por desporto. Mas a seu ver, encontrava ali mais verdade que em qualquer cadeira de escritório. Era uma existencialista já em finais de época hippy num mundo carente de época alguma ou antes sobrelotado de épocas sem expressão alguma. Era ainda jovem e quando disse em casa que deixara de procurar emprego na área em que se tinha formado para vender na feira, a mãe caiu à cadeira com um desgosto tremendo. Mas Marisa era um ser de curiosidades e queria viver aquela vida ou talvez se tenha convencido de que essa era a sua escolha.
-bom dia sr. João vou ali prós estudantes pode ser?
-sim, trouxe licença certo?
-sim, sim, está na minha mala lá em cima
Mentira, esse era um dos dias em que Marisa não a tinha e custava-lhe mentir a quem a ajudava mas não conseguira licença para esse mês, seria um mês difícil de encarar, seria um mês de fé.
-então Saudade, como é que tá hoje a venda por aqui? - Saudade vendia artesanato feito de pacotes de leite e ainda umas pinturas suas, pequenos retratos surrealistas.
-olha-me esta doida, ainda andas para a frente e para trás, assim não te safas...já vendi uns quantos sacos...olha vais ao café? traz cerveja!
-já? dás cabo de mim...
Riu-se, Saudade era uma grande alegria. Tinha uma história de vida daquelas tramadas, dois filhos menores e um espírito muito livre. Sabia vender, tinha boa disposição e sempre, muita alegria. Marisa parou e voltou trás...
-olha lá, aqui entre nós para agente se rir, então o moço do carrinho do supermercado? isso deu em alguma coisa? ri-me tanto ele a levar-te no final do dia dentro do carrinho...rica prenda que ele levava...ahahah
-nem me digas nada, ganda maluco...mas via-se logo eu é que gosto de inventa-las. Ia-me matando rua abaixo, quase que nos espetava contra o eléctrico. O rapaz é um traumatizado, andava praí a vender a tralha toda da namorada que o deixou...já vejo porquê...opá só rir, só eu
-mesmo!
Entrou no café ao lado do mercado. Lá estava o sorriso do Felipe sempre pronto.
-olha olha a princesa mais linda da feira...que é que precisas de mim?
-bons dias, tá tudo bem por aqui? então duas cervejas e dois cafés, o meu bebo já aqui. Ando para aqui feita barata tonta, ainda não vendi nada
-não te preocupes tu fazes esses olhinhos lindos aos clientes e eles levam-te tudo
-levam levam...vá deixa te de lérias e despacha-te, tenho a banca entregue aos bichos
-antes aos bichos que às bichas. Irra até me benzo
-lá estás tu com tontices
-tão não os viste passar logo de manhã cedo? Ia um de cabelo cor de rosa e fato de banho e o outro vestido de robot..opá são mesmo maluquinhos
-mas eles costumam tocar ali no meio não é? já não os via há uns meses..vá té logo, beijinhos
-ai tantos...
Na esquina já o ti Joaquim andava às cabeçadas. O homem já chegava à feira torto. As pessoas perguntavam-se como é que ele dava conta do recado. Marisa já conhecia quase todos os fixos que valia a pena conhecer, claro está que as invejosas do centro da praça nem vê-las. O pano do ti Joaquim era um desconsolo, não tinha quase nada para vender e o que tinha...tinha um aspecto tão descaído quanto ele. Cruzou-se então com as três personagens mais caricatas da feira. Três senhoras muito velhas, sempre vestidas de rendas pretas e cabelos muito arranjados. Todos os dias de feira elas cá estavam. Pareciam saídas do filme do Dracula. Unhas alongadas e véus na cara. Lá estavam elas de volta dos baús pulguentos da associação de sem abrigo. A bem dizer tudo tinha pulga por aqui, mais não fosse porque estava no chão quase tudo, mas nada que uma lavagem não tratasse. Viravam e reviravam tudo até encontrarem mais peças de roupa preta, tudo ainda regateado não fosse o euro por duas peças ainda ser muito. Seguiu caminho sempre a subir pelas ruas apertadas da feira que a esta hora começava a atingir o pico de visitantes. Era a melhor hora para fazer dinheiro, era preciso correr mas o café quente na mão e as cervejas geladas na outra confundiam-lhe o espírito.
-obrigadinho Conceição, toma lá o café..vou prós estudantes, passa lá logo, tens lugar e já não devem passar os fiscais
Arrumou as cervejas dentro da mala, pegou nos dois tróleis carregados e seguiu. De caminho deixou a cerveja à outra e a voar procurou então o seu lugar. Estendeu a roupa no chão e abriu a mala dos postais. Podia finalmente respirar fundo, abrir a cerveja e começar a vender.
Já tinha conseguido vender algumas peças quando se aproxima o Luís dos discos...
-olha dás-me ali uma olhadela enquanto vou buscar almoço?
-sim na boa...
-volto já, cuidado se vires aquele indivíduo do chapéu branco, o que traz o puto...eles roubam...tu sabes quem são
-sim, acho que sei, eu estou de olho
-queres alguma coisa?
-outra cerveja, daqui a bocado já passa aí a Tia com os croquetes...
-ya ya as chamuças são boas...
Era assim quando se vivia em boa vizinhança. Houve vezes em que ficou lá no sul. Nesses dias não era possível abandonar a banca e quase sempre a polícia estava de vigília o tempo todo estacionada ao lado. Uma vez correu o boato, foram apreendidos portáteis a um rapaz e afinal ele até tinha licença mas quando foi busca-los à esquadra já tinham desaparecido. Foi nesse dia que ocorreu uma grande confusão. Houve pancadaria e gente ferida, não se sabe bem porquê mas os boatos eram variados, como bons boatos a culpa era sempre da fiscalização e nunca dos feirantes. Ainda que alguns se odiassem quando era para se unirem, uniam. Por isso Marisa não se sentia nada segura na zona sul da feira.
Mas os dias mais pesados de feira eram os dias de chuva. Raros feirantes tinham toldos, a maior parte trazia lonas para cobrir os artigos, mas a chuva encontrava sempre forma de entrar e estragar metade das coisas. Quando estava anunciada carga forte poucos se atreviam a montar banca, o pior era quando a chuva vinha do nada e apanhava desprevenidos a todos. Esses dias eram desesperantes. Não se conseguia vender, ia tudo encharcado para casa e na carteira nem o dinheiro gasto no almoço. O inverno era por isso doloroso para a venda. Quando fazia vento era ainda pior. As estruturas frágeis voavam, ramos das árvores a cair e um caos desagradável de páginas de livros em rodopio, fazendo um frio gelado para os ossos dos mais velhos. Mas havia a teimosia de mais nada ter para fazer, a insistência e persistência maior do que qualquer jovem em início de carreira, uma força de vontade que os unia e mantinha vivos. Porque eram eles que apareciam para tentar a sorte enquanto que os jovens ficavam no conforto das suas casas e os desgraçados nos lares de abrigo.
Como já tinha sido referido, havia histórias para todos os gostos.
O sr. Bragas tinha uma bem triste. Um dia Marisa calhou ficar ao lado da sua banca gigante de meias e cuecas. O dia foi passando e conversa para aqui conversa para ali ele conta...
-a minha mulher adorava a feira, já vinha quando era miudita com os pais. Casei-me porque a conheci aqui, eu era um putozito sem eira nem beira pendurado de tasco em tasco pelo cais, era para ter ido para os barcos mas acaso do destino enjoava me todo. Depois da primeira viagem infernal desisti. Andava eu por aqui perdido quando a vi. Os meus olhos colaram-se, fiquei embasbacado, sabe menina, a minha mulher parecia uma actriz de cinema, daquelas americanas. Depois pronto foi aquelas coisas normais, começamos a namorar, o pai dela que já vendia este negócio começou a passa-lo para mim, casámos claro que naquele tempo não podia ser de outra maneira e eu encontrei assim a minha vida. Ah mentira, antes eram fatos e gravatas mas quando nasceu o nosso primeiro filho ela começou a dizer que já ninguém comprava fatos de alfaiate e que agora iam às grandes superfícies e tal e que vendêssemos antes meias..eu disse meias? que raio de negócio mais patético...mas assim foi, meias e cuecas novas...o negócio passou de tecidos e fatos para meias e cuecas e pegou, que isto na grande feira quem tem olho é rei e aqui anda sempre tudo cego com as tralhas. Pois eu com as cuecas comecei a safar-me bem. E realmente nesse dia vendeu bem. Era artigo novo, cheiro a lavado e sem pulga. Um dia, já aqui vão sete anos, ela diz pra mim...ai filho...era assim que me tratava...e zás cai redonda no meio das meias empilhadas. Foi assim, como os gatos, de repente. Foi-se. Uma grande facada no meu coração. E eu pra qui vim e continuei a vir, porque era aqui que estava alma dela. Cresceu e fez-se por baixo da banca e das saias da mãe feirante. Ás vezes parece que ainda a ouço a apregoar Comprem meninas comprem, com as meias da Tatá não há traça que lá vá... - riu-se - ela inventava muito, era muito boa vendedora...
Marisa encontrou muitas histórias de solidão, outras de compaixão e tantas outras insólitas. Como aquela velha gorda que todos os dias de feira chorava a potes a pobreza e depois apanhava um taxi para ir para casa, diziam que era tudo mentira, que era rica e estava senil ou a outra que estava mesmo senil e fazia xixi pelas pernas abaixo. Ou o outro que dançava pela feira fumando cachimbadas de paz e profetizando coisas impercetíveis, ria e espalhava o amor. Ou o outro que vendia electrodomésticos que não funcionavam e depois ia ao café pedir para ligarem para o cliente ver como estava tudo impecável e ai que não, hoje faltou a luz.
Entre mentiras e histórias de azar, entre bons negócios e entreténs, a feira levantava-se todas as semanas à mesma hora para se voltar a deitar no silêncio do alcatrão de um parque de estacionamento. Alheia a rostos sujos, a lágrimas e desgostos, alheia a ricos ou pobres, a sonhos e devaneios. Como um organismo vivo, renovando-se, alimentando-se de alma gentil que aceita o chão como tesouro. Aqui dizia-se que o lixo de uns era a relíquia de outros. Os objectos renasciam de mão em mão, partos que prolongavam a vida, que do chão rebentava orgulhosa e livre.
Entre mentiras e histórias de azar, entre bons negócios e entreténs, a feira levantava-se todas as semanas à mesma hora para se voltar a deitar no silêncio do alcatrão de um parque de estacionamento. Alheia a rostos sujos, a lágrimas e desgostos, alheia a ricos ou pobres, a sonhos e devaneios. Como um organismo vivo, renovando-se, alimentando-se de alma gentil que aceita o chão como tesouro. Aqui dizia-se que o lixo de uns era a relíquia de outros. Os objectos renasciam de mão em mão, partos que prolongavam a vida, que do chão rebentava orgulhosa e livre.
Mas a feira entrou em queda, uma grande crise que tomou o mundo inteiro. Marisa que já antes tinha abandonado a feira, havia encontrado outros trabalhos. Ás vezes passava pelo parque, passeando agora com uma nostalgia de aperto. Era como se os visse por ali, personagens desempenhando o seu papel num palco holográfico. Como se o tempo tivesse sido congelado, o vento trazia as vozes do fado ao ouvido. Aqui, tudo tristes fados, tristes mas muito sentidos.
Saudade empregou-se a limpar quartos de hotel mas com a grande crise estava numa grande aflição porque não havendo turismo também não havia camas para fazer. Os idosos quase todos com reforma fecharam-se em casa, mais calados, mais pesados e mais sós. Os estudantes estavam também eles em casa, sem grandes farras nem feira alguma e os desabrigados continuavam no mesmo lugar de sempre. Porque para eles, aquele parque de estacionamento era a sua casa, e ninguém abandona a casa de ninguém.
Um dia, a feira voltaria a erguer-se. Por aqui desfilariam outras vidas e quem sabe mais das mesmas. Um dia, quando esse dia estiver para chegar, a filha de Marisa há-de ocupar o seu lugar.
Saudade empregou-se a limpar quartos de hotel mas com a grande crise estava numa grande aflição porque não havendo turismo também não havia camas para fazer. Os idosos quase todos com reforma fecharam-se em casa, mais calados, mais pesados e mais sós. Os estudantes estavam também eles em casa, sem grandes farras nem feira alguma e os desabrigados continuavam no mesmo lugar de sempre. Porque para eles, aquele parque de estacionamento era a sua casa, e ninguém abandona a casa de ninguém.
Um dia, a feira voltaria a erguer-se. Por aqui desfilariam outras vidas e quem sabe mais das mesmas. Um dia, quando esse dia estiver para chegar, a filha de Marisa há-de ocupar o seu lugar.