quarta-feira, 1 de julho de 2020

o cais das lamentações



diz-se que seríamos os filhos da luz
mas tudo me leva a crer que somos obstinados pela escuridão
um ser matemático regido por pêndulos de dor intermitente
há uma atracção ao abismo incontornável
como se nascêssemos do abandono de um vazio para outro
deixamos um ventre quente para sermos acolhidos por um austero
acho que nasci do avesso, todos os passos que dei foram ao lado
quem me dera ter a quietude dos animais
pintei a minha janela de preto, agora a paisagem invade o interior
com o mesmo rasgo com que me invade as pálpebras
agora a queda do dia é ainda mais intensa
e a cor que trago por dentro é visível
há pessoas nascidas da luz, por isso se diz dar à luz
mas creio que a minha mãe terá parido um buraco negro
uma fome devoradora por vezes sulfúrea inumana
sem pecado nem drama, uma solitária tarde outonal
que segue naquela distância vergada de um passeio íntimo sem pressa
enleada de encanto expresso de um carcereiro sem prisão
é como se prendermos dentro de nós um animal selvagem
e o domesticássemos até à exaustão para que cumpra um propósito
qual prepotência de se achar mais civilizado que os demais
o homem trilha-se diariamente sem voz
de amplos horizontes como o dia mais longo, sem sol
um solstício sem sol
e arde por dentro como a lava que corrói o interior da terra
dormente, fecho os olhos a luz assume laranjas pepitas
penetrando na pálpebra de vibrações de vida
quente e pulsante de desejo
imagino pentear-me no deserto,
um deserto solitário de vozes longe no diálogo
talvez sejamos uma causa árida
a noite calma e límpida sem estrelas
mas para mim o céu sempre foi rebentação na areia
fogo de artifício de aldeia
ondas de lírios para um calvário de mapas diários
a fúria do consumo de uma fénix cega
atravesso uma ponte vegetal quatro paredes de troncos e trilhos de muros
confundindo-se sempre na distância na sombra como ave de rapina
que persegue fantasmas de aviões já cruzados
pedras atiradas ao charco pantanoso sem a muleta de um espelho
acabamos por ser um teste sereno da morte
paradigmas de um estranho que nos habita para sempre
o curso natural de uma aliança obstinada satélite
ou apenas o tempo perdido das nuvens
trago no peito um monstro desafinado
que acabará por espigar cheio de dentes corroídos
com toda a fatalidade de nunca se ter encontrado
um ser panorâmico que iniciou muitas viagens
e ou porque a terra é redonda ou porque divagamos
a chegada é sempre perto demais, a viagem é sempre curta
a vista é sempre tacanha e a vontade sabe-se lá de quê
é sempre insatisfeita





Sem comentários:

Enviar um comentário