terça-feira, 16 de junho de 2020
gueto de fel
porque o mundo é um grande gueto de fel
por onde se passeiam cabeças à trela
convivendo cadáveres deixados ao abandono
por esquinas e corredores de mármore
autêntico bordel que um arquitecto-paisagista
deixou a céu aberto
uma ilha talvez, rodeada de astros e anéis
e fundos para naufragar sem labuta
pensava assim enquanto...
pus água a ferver, pão a torrar e varri para o alpendre
os vestígios de um amanhã inquieto
ainda se pode ler na parede: Mantenha-se fora da linha
com a brandura de um comboio parado no apeadeiro
dessa varanda os campos avultados de morte
como restos de peixe frito atirado aos felinos
ás vezes chove gelo, outras fadas de algodão
que deambulam pela atmosfera misteriosa
já não saberei dizer se são saudades ou vestígios
como o lugar morno que o animal deixa
para partir com seu dono para a parte enxuta do peito
tal como as fábricas, as gentes que partem sem retorno
tudo cercado por arame farpado, e flores folclóricas
riachos da memória ou páginas de livros reviradas
há uma manga de água estreita onde se levam lençóis
e muitas flores para outros funerais
mas quem morre por aqui? uma borboleta, um ácaro
uma cifra na boca mais atarefada de vazio
já não há desconhecidos nem recém paridos
assim a aldeia melancólica ou bucólica
é o sopro minguado no olhar dos poetas citadinos
uma semente cara trinchada por máquinas
os poetas citadinos são espectros dos outros
entregaram a foice para a palavra ceifar
analfabetos de outra paisagem resta apenas o imaginário
encantatório cheio de outonos e folhas já caídas
é um homem que passa e atravessa mas não é um homem
espectro, cheio de lismo na cabeça e braços bambaleantes
atiram-se as pedras ao pano, mede-se o futuro sem a régua
do ensinamento tal como se amanha a terra
aqui moda-se um canto sereno e abatido
e molda-se um ser anónimo e convertido em produto
e convertido em animal abrupto sem pecado
não dói nada pois não senhor? dói apenas a ausência do peso
esse saco vazio a que já nem se chama peito
esse cristo lascado a que se chama de filho ou pai ou tio
hoje é o vizinho que se deixa na cruz do destino
porque ninguém sabe se morto ou vivo
a mim que me importa tudo isso
nasci no lugar das colinas
para poder estender o olhar e apenas contemplar
com desprezo, com desencanto e sobretudo a alienação
do desinteresse por esse pranto
porque o mundo é um grande gueto de fel
e falta de mão de obra para o mel
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