são os dia de nevoeiros mais belos
que acordam a serra, o vale, o encosto das colinas
para as cerimónias do astro do começo do mundo
para nos transfigurarmos de gente, de caretos, de intrusos
de rumores e desejos da natureza imperiosa do domínio
certos quartos, certas paredes de pedra, certos tectos
do escrutínio de se ver escolhido para nascer
sem altares ou alteres, sem domas ou vendetas
a hora escurece logo que nasce, é dia de inverno transmontano
ali a vida tem o seu próprio cronómetro conectado de afazeres
de amanhos, animais para pastar ou a terra por cuidar
de que cuidam aqueles que acordam entre vigas de cimento?
cuidam de um outro modo de envelhecimento
lembro-me assim às vezes do corpo gentil e raro
de um rio deitado, um rio dormente e profundamente poderoso
do seu encantamento terno e triste, a imagem esquiva flutuante
e a determinação de acabar nos braços dessa mulher citadina
uma variante de masturbação mas mais funcional
sofro agora de clausura, com toda a aceitação e paz
como se me tivesse habituado à hibernação
e agora mais do que nunca, chamar-lhe de Inverno Eterno
eu sentia um ritmo cósmico que me furtava das vísceras
o estertor fulminante que me renovava de energias
e de impossível inquietação
mas agora mais do que nunca, tenho a prova da fragilidade
das linhas quebradiças da eternidade
e dos milénios que a procura nos traz da cegueira
não venhas cedo
não venhas cedo, deixa-me tardar
deixa que aprecie o serenar de me cansar
que eu sou um homem de degradação impura
de sufocação imposta
e ordem abolida
escrevo-o antes que a noite me cale
que o dia se escorra de horas mortas
e a saliva arrefeça na boca
e que estranha e passiva
eu me encontre vivida
no meu poema há sempre lugar para mais vocábulo
há sempre uma sensação de inacabado ou imperfeito
há sempre trabalho para amanhã
e passos curtos e multiplicados
quando me encontro de passeio ou simples devaneio
o dia rapidamente se reveste de normal
o nevoeiro levanta deixando a descoberto o feio
e quando não se capta esse momento
não se recupera por inteiro e melancólico
talvez se cruzando o chão uma vez de vez em quando
o recorte de um caixão improvável
ou um jazigo oitocentista da rua perpétua
nas ruínas em que me penso e concretizo
sem metáfora alguma
assim a morte nos recebe de olhar triste e anímico
envolvidos num halo de profanação
pelo prazer da violência do material concreto
atirado de perto e sem transcendência
penso que é preciso violar o sagrado
o fantasma de nós mesmos, agredir a verdade corpórea
a tarde límpida sem pedido de socorro
e dos olhos só olhar
o mistério das coisas, a sua conceptual aura de mistério
que é preciso rasgar, corromper, tornar desoculto
como um cão que rói até ao osso
só assim, podemos deixar livre o lugar da libertação
o vinco da revolução
um lugar que está à nossa espera desde o começo
e nunca aceita
o teres morrido para sempre sem ter vivido
penso que a última página está sempre em branco
precisamente porque não foi escrita
e que nenhuma imagem antiga se pode sobrepor
porque se buscam as horas e o precipício do fim
numa legenda antiquíssima de crispação
e um chamamento venenoso e dúbio
é inconfessável à esperança
como uma balada surda
mas é nos dias de nevoeiros mais belos
que nos chega o fantasma de nós perdido