quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

deslumbramento de rugas e purgas

 

são os dia de nevoeiros mais belos
que acordam a serra, o vale, o encosto das colinas
para as cerimónias do astro do começo do mundo
para nos transfigurarmos de gente, de caretos, de intrusos
de rumores e desejos da natureza imperiosa do domínio
certos quartos, certas paredes de pedra, certos tectos
do escrutínio de se ver escolhido para nascer
sem altares ou alteres, sem domas ou vendetas
a hora escurece logo que nasce, é dia de inverno transmontano
ali a vida tem o seu próprio cronómetro conectado de afazeres
de amanhos, animais para pastar ou a terra por cuidar
de que cuidam aqueles que acordam entre vigas de cimento?
cuidam de um outro modo de envelhecimento
lembro-me assim às vezes do corpo gentil e raro
de um rio deitado, um rio dormente e profundamente poderoso
do seu encantamento terno e triste, a imagem esquiva flutuante
e a determinação de acabar nos braços dessa mulher citadina
uma variante de masturbação mas mais funcional
sofro agora de clausura, com toda a aceitação e paz
como se me tivesse habituado à hibernação 
e agora mais do que nunca, chamar-lhe de Inverno Eterno
eu sentia um ritmo cósmico que me furtava das vísceras
o estertor fulminante que me renovava de energias
e de impossível inquietação
mas agora mais do que nunca, tenho a prova da fragilidade
das linhas quebradiças da eternidade 
e dos milénios que a procura nos traz da cegueira

não venhas cedo
não venhas cedo, deixa-me tardar
deixa que aprecie o serenar de me cansar

que eu sou um homem de degradação impura
de sufocação imposta
e ordem abolida 

escrevo-o antes que a noite me cale
que o dia se escorra de horas mortas
e a saliva arrefeça na boca 

e que estranha e passiva
eu me encontre vivida

no meu poema há sempre lugar para mais vocábulo
há sempre uma sensação de inacabado ou imperfeito
há sempre trabalho para amanhã
e passos curtos e multiplicados
quando me encontro de passeio ou simples devaneio
o dia rapidamente se reveste de normal
o nevoeiro levanta deixando a descoberto o feio
e quando não se capta esse momento
não se recupera por inteiro e melancólico
talvez se cruzando o chão uma vez de vez em quando
o recorte de um caixão improvável
ou um jazigo oitocentista da rua perpétua
nas ruínas em que me penso e concretizo
sem metáfora alguma 
assim a morte nos recebe de olhar triste e anímico
envolvidos num halo de profanação
pelo prazer da violência do material concreto
atirado de perto e sem transcendência
penso que é preciso violar o sagrado
o fantasma de nós mesmos, agredir a verdade corpórea
a tarde límpida sem pedido de socorro
e dos olhos só olhar
o mistério das coisas, a sua conceptual aura de mistério
que é preciso rasgar, corromper, tornar desoculto
como um cão que rói até ao osso
só assim, podemos deixar livre o lugar da libertação
o vinco da revolução 
um lugar que está à nossa espera desde o começo
e nunca aceita 
o teres morrido para sempre sem ter vivido
penso que a última página está sempre em branco
precisamente porque não foi escrita
e que nenhuma imagem antiga se pode sobrepor
porque se buscam as horas e o precipício do fim
numa legenda antiquíssima de crispação
e um chamamento venenoso e dúbio
é inconfessável à esperança 
como uma balada surda 
mas é nos dias de nevoeiros mais belos
que nos chega o fantasma de nós perdido




 



segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

ao longo destes rios imaginários

 

há formulas mágicas
são painéis temporais que nos entretecem a alma
memórias de infância que hoje atormentam
o que faz e refaz o campo geográfico da dor
um convite tumultuoso ao desencanto
e templos de confronto próprios do seu tempo
são difíceis os caminhos dos sem caminho
diz-se que flutuam em prazer perturbante
na sedução do verbo, no amanhã de um satélite
que é a morte
gente que sonha com lágrimas
num regime de província enferma
historias de resistência e memória de volumes
de um mundo que não pertence a nenhum reino
entre as passadas de um anjo ou transparência
o único órgão que respira da ruína
como se a aritmética do ser fosse leviana
uma despesa da cabeça que nos custa o mergulho
e mesmo esses que nascem como plumas
hoje moribundos de grandes penas
há o inesquecível lugar do sonho
o desmaio contínuo de um hálito nocturno
que desagua no produto da solidão
e pôr o pé na sombra
a mão daquele que lança o espírito ao ventre
e dele arranca um plano resolvido 
há a pecaminosa solidão dos asilos
o chão dos dormitórios dos anulados
a disfarçada sujidade dos encarcerados
e a nódoa moral dos que viram a cara para o lado
nem mesmo as horas debruçadas na ponta da língua
se ajustam à reflexão residual
talvez seja um luxo ficar a olhar
o barco que deixa o cais revirado
que o amor é precisamente o impulso de se atirar
há os que põem o pé e vacilam
milicianos de medos e de insustentáveis verdades
mas tantos barcos atravessam carregados de esqueleto
para viver num país tão pequeno que caberia num dedo
até amanhã esse amanhã terreno
um lugar ininterrupto de tributos
quando esse dia chegasse, sepultava de forma náutica
como uma escultura pesada e cheiro a salitre
o anseio convulso de me sentir naufrago
e os pés são reais como âncoras de ferro
metade de nós desliza logo à nascença
o resto...fica lá dentro para o regresso

todos os dias o corpo hirto lamenta-se pela 
memória acústica das palavras
os olhos mortos a boca estarrecida sabe que pára
o principiar da sombra, metais cortantes desmedidamente frios
e a saliva o veneno das tripas
e é precisamente nesses dias completos
um sorriso vertical da permanência parada
do suor das lágrimas 
o que nos escorre da vencida força sintética
para o murmúrio das serpentinas da vida
e vertigem, há um grande fosso entre o cais e a partida

reza a salvação como se dessemos milho aos pombos
no limite da distância entre nós
e o peso que carregamos aos ombros
-dou por mim a reconstruir a lógica quando lhes calculo o voo
à cata do peixe no súbito lugar da infância
move-se na cama para escapar ao pesadelo
quer dar um grito mas sai mudo
necessitar do absoluto à íris coalhada do fim
de que em absoluto há um fim e um sétimo fôlego
para o arrependimento