domingo, 23 de abril de 2023

Na margem de todos os nadas

 
Tinha os dedos amarelos de nicotina, as botas de poeira
o sol pelas costas e uma estrada de alcatrão sem fim
a incursão ao calcado medo dos mortos
o salto bate, na ardência do olhar
os campos engolindo a fadiga do ser 
o acelerador de um motor de uma sementeira de vagos horizontes
figuras espectros do cigarro que chega aos dedos
um pavão branco que se abre ao vento
liames de universos antes fechados
na beira da estrada uma caravana abandonada
como final de viagem anunciada
una lâmina de barba, uma lata de cerveja 
bibelôs para amaciar a vida
para a resistência de uma lição a giz nas pálpebras 
de uma ardósia infância entorpecida
plantações epopeias de caravelas de fruto
a uma pintura viril, apartada de cólera 
e a mão uma fenda no coração da guitarra
que vibra em jeito oblíquo 
bancos de ferro de beiras namoradeiras
talvez as mãos suadas de não conhecer o destino
quando se viaja sem mapa, o céu é desatino
ora trovoada mostrador da alma danada
agora reparo que não trazia rosto nem mala
que o corpo de minutos e horas autónomas 
acompanha o alívio dos sem ritmo
dos sem casa, dos sem página ou livro

cruzei-me com Kerouac
aflito de calos oníricos
de fumos que agravam a cegueira
a metáfora ensaiada despiu se na estrada
eventualmente..todos voltamos a casa





domingo, 16 de abril de 2023

"Os cavalos mordem a erva"

 

Da lente de um universo natural
o entardecer desce do pulpito expectante
filigrana de músculos felinos 
cada gesto é um ror de anos
posto em liberdade, para o azedo de quem se carpiu
toda a espécie de ser no inesgotável mostruário 
a mesma escória de um estátua de deus
batida contra a parede no rosto das chamas
voltamos à palavra como um rasgão na bruma
fiapos de diálogos de distância árida
por fim as mãos e os cabelos, a posição das pedras 
frases correntes de costas voltadas 
dir se ia que o céu nos apertava contra a boca 
faminta do mundo
e uma só alma hipotacada no raso das casas
das antenas dos telhados transmissão 
das traseiras de um qualquer prédio 
agora desabitado
sempre a ruina como cenário de ontem
Lôbregos eram os passos de um morto
Boas noites, para quem se ata de fitas 
um cão que uiva sem luar
talvez fosse sempre de noite, para cá ficar
uma das mulheres do velório canta
um fado visceral, chuviscam lágrimas 
uma tinta que nos escorre do corpo para borrar o chão 
uma gota de fel para acalmar a pele
e a desambição de um carrossel que já não gira
ou o baloiço que se quietou de ferrugem
Confessa a vida, barbaridade de vida
farta de conhaque, de fraque e malandrice
canta agora o fado dos tristes
para o temperamento de um artista sem tela
de um poeta sem musa
ou um corpo sem tusa
. ..estava debruçada no meu quarto de estrela
como musgo na parede..casa parede presídio
e o rumor cauteloso de uma corda vibrada 
a morte passa, sem uma palavra
sem aflições...para a queda brusca de uma conversa íntima 
quer o demónio saber do sol da meia noite