segunda-feira, 5 de junho de 2023

Pobre coitado, o surrealista

 

Há nos ponteiros do relógio um compasso inútil 
como se os pombos necessitassem de pernas longas
ou o fotógrafo de saltos para ver mais além 
tinha uma esmola sempre de parte na algibeira
na caixa de ferramentas uma corrente e várias ocorrências
olhos triplares e alongados para desconcertar uma armónica
debruçado no alpendre da cidade perdida
nenhum benzer, nenhum credo mais puro
o céu carregado de utópicas manchas 
e no banco de jardim, um beijo dado de peito fechado
havia foguetes a partir todos os dias sem dono
cada carta lançada á mesa vinha em branco
e de vez em quando um joker por graça
o leitor escorrega de sono no jornal
vendem-se colos e vidas do desterro
toca-me na película mais abstracta 
a noite cai como câmara obscura
revela caninos para miupes de longe
hoje casam-se-me os anos
aceitam-se trocas de agora sem atraso
as almas querem-se de fresco e ao léu 
as crianças girinos de aquário 
temos pressa de ver chegar o peixe à porta
aqui todos se afogam de lágrima
um tiro de roleta isolado na mão 
a mão rabiada de medo já não serve
das gavetas já só peças de faqueiro 
e de modelo um cepo de cadáver 
Assim desenharam-lhe o caixão em forma de estrela...
para afinal ser pó de sopro 

ou coração com sopro
dizem que a saudade não faz falta aos mortos
e nos dias de hoje nem tão pouco o caixão 
-disse-me para lançar as cinzas ao rio..rio de
prata, que combinava com a lua, diz que era
uma pessoa atrita a lados lunares ..para se
despenhar num qualqer compasso desmedido

O texto não tinha sinais de cruz 
nem razão, nem mezinhas..
Os campos tinham ardido, os quintais, os móveis 
nesse quadro monocromático de vazio
o estalar de um castigo que se vê
vê-se por fora incendiado
agente nasce com esta sina de cão vadio
para vir comer à mão do tempo
o corpo engravatado desencaixado

querem-se os sonhos para nos comer as paredes do peito

e as ruas para nos desaparecermos sem sombra
todos os textos nesta língua estão malfadados
nascer-se mudo depois de se ser soco
e nas escolas desaprender-se das tabuadas a solidão 
um mais um senão nenhum
e eu e mais eu, que monólogo do coitado

a culpa é do compasso...sim desse compasso...















sexta-feira, 2 de junho de 2023

Limbus corneus

 
nas costas de peixe, uma linha de prata
desenha no oceano o arrasto 
sente os espíritos pentearem-lhe as escamas
o movimento rasteiro da criatura predadora
na transparência atravessar, neste estar e não estar
coados do suor do atrito
os céus vestem-se de negros corvos
o prenúncio da desesperação
o despertar das pontes do apoastro
e o cosmonauta uma criança nauseada
andamos às voltas na terra
tombados da imortalidade que se separa de nós 
a parte vertical da viga cerebral
a alma escorrega felina cabendo em qualquer buraco
a pobreza de uma cabeça limpa
para as formas simples do horizonte
penteamos novelos de redes na berma do caminho
na contra luz somos figuras mitológicas do horror
da natureza do éter ou siderados na obsessão 
do massacre desse basilar oceano
haverá um dia em que não há peixes no mar
nem sonhos para colher no sono
no traumatismo do nascimento 
caído das ancas do mundo
vimos segredos depositados e o poema nasce fóssil 
está deitado na praia, a claridade alaranjada nas pregas das rochas
vigilante visitante do mundo das gaivotas
deitado e amnésico das técnicas do planar
sonhava com répteis e dentes felinos
as suas mãos sonâmbulas escreviam na areia
a fase larvar do abismo
vezes e vezes sem conta, o mesmo poema
acarinha depois as mãos 
acarinha a arritmia dos espaços
e o espasmo de um orgasmo
seguido de uma terrível sensação de solidão 
pode levantar-se, lavar as mãos e o rosto
benzer-se, urinar, gritar
pode... mas não quer