domingo, 29 de janeiro de 2012

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De lado pareces mais nova. Não sei porque me disse aquilo naquela tarde de Verão nas areias da Praia Verde. Deixa-me cuidar de ti, só precisas de deixar que eu fique aqui. Junto a ti. Foi o Verão em que comecei a sentir-te crescer dentro de mim. Como semente, como espaço de gente nenhuma. Sombra de ser anónimo que ao movimentar-se projectava do meu corpo rastos que os outros deixavam em mim. E cresceu, com ramos que me chegaram ao coração e ao cérebro. E pelas minhas mãos começaram a ganhar definição. Quadros, fotografias, filmes, retratos de lugares comuns. E porque me dava prazer, não podei este mal. E ele foi crescendo como Hera nos muros da minha necessidade. De querer mais. Todos os dias mais um pouco, mais um hora, um minuto. E toda a minha liberdade foi contraída dentro de mim. Só em ti sentia vida. Só nas tuas horas me sentia plena. Só nas tuas palavras encontrava paz. "Uma mulher deve ter dinheiro e um quarto próprio se ela quiser escrever ficção". E eu não tinha. Nem um quarto, nem sequer dinheiro. E foi então que me tornei escrava de ti. Feliz quando estávamos juntas e miserável quando não estávamos.Desespero. Lugar de dependência animal.

Enrolo-me sobre mim própria. Aconchego o meu território e pesquiso o infinito. A minha alma traduz-se em palavras de dispersão. Ao centro, o meu ponto conector é um vector apontado aos céus. Lá no alto bolas de vidro ascendem ao Paraíso. Dentro de cada uma envio uma palavra. Da minha boca ar quente acelera a ascensão. Para fora. para cima. Para longe da vista, que não sinta. que no final me encontre vazia.

E as minhas costas tornaram-se negras. Tatuadas de vergonha. Porque não chegámos a velhas. Porque a queda não foi conjunta. Porque parte de mim foi fraca. E apenas a carne voltou à terra. Incompleta e não realizada. Não, volta atrás no tempo. Imploro-te que inspires nesse momento. Antes vivas amordaçada cá dentro do que em lugar nenhum. Rodopia, espiralisa. Mescla todas as tuas frases. Enceta todos os pontos finais. E em cada pequeno verso, repousa. E recupera o fôlego e começa de novo. Acredita, é doloroso, é exaustivo mas é nosso. Em partes seremos apenas metades.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Relógio de Sol I

O sol bate-me do lado esquerdo do rosto. Tudo é verde e sereno. Restam apenas alguns minutos para que fique mergulhado em sombras e nevoeiros de Inverno. Sinto-me mais perto da mãe. Ao longe os carros parecem ondas de marés ruidosas. O vento é rente ao chão. As folhas queixam-se aos melros e eles queixam-se ás cigarras adormecidas. E eu movimento a mesa onde escrevo para apanhar os últimos raios quentes de vida. São Oliveiras, tal como as via quando era criança. No alto da colina em frente à casa e corria para apanhar o por do sol tão vermelho e tão quente do Alentejo. Cheguei tarde hoje. Sinto frio e por isso não consigo que as minhas memórias me transportem para lado nenhum senão para casa. No tempo de um cigarro abro bem os meus sentidos e aguardo. Um último momento só para nós, hoje. A marmelada, as nozes, o azeite, o sapo, o banho gelado do tanque, o chinelo da avó, o presente do aniversário do primo, o pai que dorme na sala da lareira, os bolos da D. não me lembro do nome, as estrelas e os grilos e o quarto das três camas. Eu tinha uns calções vermelhos e tu tinhas uma bicicleta amarela.
Não consigo, o frio traz-me sempre aqui e longe fica tudo o que me levava até ti. Aperto as mãos uma na outra, talvez mais para ali ainda esteja quente. Não. Amanhã então marcamos encontro logo pela manhã. E teremos o dia todo para estar juntas.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

A visão de Zeca

-Anda, não vens hoje à noite? A Malta vai-se reunir no Largo em frente ao quartel.
-Sim, encontramos-nos lá em baixo. Vou dizer aos outros que é Hoje!

20 de Janeiro de 2032,20.45
Hoje faço 50 anos. Sei disso porque o intrafone está programado há três anos pela minha ex-mulher para me acordar neste dia sempre com Joy Division- love will tear us apart. Desligo esta merda, tomo banho, tomo a cápusula, visto o casaco de cabedal e saio. A passadeira avariou. Descer as escadas relembra-me a antiguidade da minha própria pessoa. Somos todos velhos nos dias de hoje. No senado a média de idade é de 17 anos. Quando eu tinha 17 anos o mundo ainda era azul. Hoje o céu é magenta. Faço parte dos Renegados e por isso, a minha comemoração apenas pode ser feita em lugares públicos. Expostos para que nada se passe longe dos olhares da S3. A minha identificação termina daqui a cinco anos. Depois disso não tenho mais licença de circular por Lysboa.
Nos últimos tempos tenho andado pela cidade velha. Tenho procurado as memórias da minha vida em livros, postais, fotografias das gentes desse tempo. O ponto de viragem bateu no ano de 2012. O mundo como o conhecia nunca mais foi o mesmo. Foi a guerra que o transformou irreversivelmente. Não sei se lamento não ter feito parte da tragédia desse Maio. Na verdade, depois disso o conceito de estar vivo deixou de o ser. Passamos a ser permitidos. E essa permissão é a premissa básica para a morte. Mas, como em todos os momentos da história do Ser Humano, também na data se formaram rebeliões. Sobretudo formadas por mais velhos. Eu faço parte da que está menos activa mas associada a todas as outras. Faço parte da mais antiga e sou também eu, dos mais antigos.
Hoje está marcado como o dia de mais uma tentativa de aniquilação do senado. O Ataque electromagnético do quartel. Pelas 22 horas já se saberá se será mais um Dia-D da História.

- Acorda, acorda Zeca. Estavas a ter um pesadelo!
- Não,que dia é hoje Zélia?
-24 de Abril de 1974. É hoje...
-Sim é hoje...mas não será agora!