quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Ê MINGUEI

se acomode ou se incomode
por quem os sinos dobram
agora é uma questão
de sorte



Aqui mesmo ao lado
sobre o mesmo estrado
está outro que dobrado
é apenas outro estado

será isso uma parte
que sem essa metade
não existe na verdade

-podemos fazer as pazes?
então explica como fazes
que em todas as frases
sejamos liberdades

sigo-te os passos
imito-te os versos
e mesmo em espelho
sou falta de jeito

e quando não sinto
porque te esgoto por dentro
misturo absinto
e amargo o veneno

como verso solo
manco lágrima triste
e em todos os outros
há apenas
           silêncio





terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Ai Siso!

pega-se um osso e outro
avança-se um passo colapso
arrasta-se a asa de facto
e de um só arrojo..amasso

interpretado e tanto
cedo dilata o pranto
e o desespero bútio
inchado ouvido de búzio

fiz-me entender?
-correcto!
Tão certo pedaço
a cavalo mandado
que seja entregue
o recado

e cai um dente da boca
-diabos me levem!
sou pura gula crónica
e rotina abcissa
aviada de mentira
Ai Homem!







sábado, 11 de janeiro de 2014

Publicidade Futurizada

Há apenas um lugar, um lugar onde te consegues encontrar, onde queres estar...
Lia-se no Outdoor da janela do quarto quando acordava.
Desceu as escadas e atravessou a rua. Na paragem aguardando pelo autocarro procurou pelo livro na mala. Não estava. Retirou tudo e nada. Levantou-se e voltou a atravessar a rua. Entrando em casa, lá estava ele em cima da mesa. Sentou-se, abriu-o e não voltou a sair.

E o dia foi  passando para noite. E a noite foi passando para dia. 

Aqui não terás fome nem sono. Aqui o tempo não te envelhece e tudo acontece. E tudo pode acontecer. Aqui serás quem tu quiseres. Aqui não se adoece nem se morre. Sim também se chora e também se sofre. Mas ao virar da página algo novo te fará sorrir. E as estações do ano têm cores e sensações, o horizonte e as estrelas são únicas. E os lugares são mágicos. E o melhor de tudo isto: podes voar! Há uma voz que separa a tua realidade deste mundo. Narrada página a página. Segue-a. Mantendo todos os teus sentidos bem alerta. É tudo o que posso prometer-te. 

Porque cá fora as coisas mudaram e o tempo passou sem ela. Ou porque muitas estações passaram e as coisas mudam. Da janela lia-se agora...Não espere, Voe! Do outro lado da rua não estava mais a paragem. As pessoas já não apanhavam autocarros, voavam com mochilas mecânicas que se abriam automaticamente se carregassem no botão lateral. Tamanha desilusão. Abrir a porta, sair e já ter conhecimento de tudo o que vê. Porque já havia sido escrito. Porque já o tinha vivido. Recuando passos retida à porta de casa, no limbo da inexistência a completa sensação de estar fora de tempo. Se regressasse poderia procurar outro livro e começa-lo mas o receio de encontrar cá fora o tempo avançado já vivido e esperado, impassava-a. Olhando para a caixa do correio atulhada de publicidade abriu-a. De imediato caíram os folhetos no chão de tão apertados. Desinteressada, pontapeou alguns para que se afastassem e pudesse olha-los. Um deles chamou-lhe a atenção. Apanhou-o e leu. 

Agência Funerária: Vá com os Santinhos! Uma ida sem volta com certeza e conforto. A decisão está nas suas mãos. Viagem prática, não dolorosa, económica e segura. Agência Credenciada pelas autoridades de saúde e pelo ministério do Direito à Não Vida. Destacado lia-se ainda: Aproveite agora a nossa campanha de adesão com dez por cento de desconto e oferta de alucinogénios de última geração para uma viagem transcendental!

Surpreendeu-se. Isto não estava escrito. Naquele tempo a morte pensava-se ser algo a combater, a vida era assim um direito absoluto. Um direito absoluto que uns reivindicavam e outros amaldiçoavam. Ainda assim nenhuma destas situações satisfazia o seu estado ou esclarecia uma decisão. Nem para a frente nem no presente. E para trás já não havia como. Mas ir de vez também não. Curiosou-se sobre a hipótese de haver outras novidades que desconhecesse e decidiu então adquirir uma dessas mochilas voadoras na loja dos chineses mais próxima para dar uma volta pela cidade. Já ninguém anda a pé. Ao aproximar-se da loja reparou que o letreiro não era nem chinês nem indiano. Alemão!  Então a economia deu mesmo uma grande volta, mas isso não era novidade para si. Estava no capítulo cinco. Como se assistisse a uma descrição aborrecida porque repetida, foi encontrando mais novidades que já não o eram. 

Parou junto ao cais e recordou-se do capítulo trinta e um. No lugar do rio estava então a base interplanetária. O rio secara dez capítulos antes com a mudança climática. Apesar de já ter estado aqui nessa altura, regressar e absorver a imensidão da devastidão que a ausência do rio deixava era ainda agora estrondosa. Coisas que lhe deixaram saudades do tempo de antes, o rio era uma delas. De resto o passeio revelou-se aborrecido e a ideia inicial furtada. 
Voltou então a casa e releu o folheto. Nesta segunda vista nada de mais se salientou. Buscou pela lupa e percorreu-o. Lá estava. Uma numeração quase invisível a olho nu. Decifrava-se dois mil e quatorze nos primeiros dígitos. Esta data era a data do ano em que havia regressado a casa para dentro do livro e não tinha saído mais. Questionava-se agora se ao ter andado para a frente não terá o passado sido alterado para um futuro imediato comendo o próprio tempo em que existiu de facto em tempo real ela mesma. Questionava-se acima dessa questão a sua própria existência. Tal como pensava que a conhecia. Estaria baralhada? Ou não teria existido de todo? Seria ela afinal um personagem que naquela mesma paragem se esgueirou do livro e começou a viver uma vida baseada na vida da leitora? Que teria ela personagem regressado a casa da leitora e entrado no seu próprio livro como leitora e vivido toda a sua história pela primeira vez como personagem? Nesta caminhada de interrogações esquizofrénicas havia uma única certeza: não sabia de todo quem fora porque o tempo em que pensava ter vivido afinal não era o tempo que estava a decorrer nesse tempo. Não apenas por causa de um folheto esta conclusão era válida. Em casa, procurou pelas gavetas e armários por provas da sua vida anterior e nada. Havia realmente fotografias na moldura digital mas de uma pessoa que não lhe lembrava passado nenhum. Fisicamente era idêntica, mas tudo em si era desconhecido, desde a aparência às pessoas que constavam nas fotografias ou até a própria expressão. Apagada. Ou nunca vivida? Ou uma troca de personagens e vidas reais e tempos a mais a confundirem o discernimento? E ao olhar pela janela...

Compreendeu. Posso ser quem eu quiser. Ainda posso ser quem eu quiser. Se há passado, se foi vivido, se existi? Não importa mais...Há apenas um lugar, um lugar de ti, sem tempo, sem espaço definido. Um lugar de ser, agora. E então lhe veio à memória ter adquirido o plano confort amnésico que publicitava o outdoor que se via da sua janela. E que nesse plano havia uma válvula de escape que advertia: se por algum motivo for da sua vontade rescindir contrato com os nossos serviços não nos responsabilizamos por qualquer dano futuro ou passado. 

Procurou então pelas páginas amarelas e encontrou: Serviço de criatividade segura de Si, um serviço que lhe permitirá criar a sua própria pessoa, bem como vida envolvente e tempo/espaço alternativo sem qualquer interferência de eventos passados e totalmente seguro uma vez testado e confirmada a inexistência de efeitos secundários. 



sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Deitado na Areia

I



-Repara como o barco está deitado. Areia, tudo a areia comeu depois da manga oceânica ter desaparecido. Sim, aqui foi em tempos pedaço de mar, perdido no afastamento da costa. 

-Queres dizer uma lagoa salgada...

-Não vens?
-Não, prefiro ficar aqui mais um pouco, vou quando for a minha hora.

-O que antes fora manga ou lagoa, hoje é apenas uma poça. Um milagre no meio do deserto branco de areia fina. Consegues ouvi-los? Ainda dentro do casco chamando por ajuda. Escuta. 
-Sim, batem contra a madeira, estou a ouvi-los. 

-Mas estás a falar com quem? - as duas raparigas repousavam depois de uma longa caminhada enquanto a terceira sentada afastada conversava sozinha - está a escurecer, vamos montar o acampamento aqui mesmo, podes ajudar?

-Mas porque é que ela tem que ser sempre diferente, nem entendo porque veio connosco. 
-Não sejas assim Maria, ela tem tido muitos problemas ultimamente, eu queria ver-te no lugar dela, já tinhas caído em depressão. 
-Em depressão pois...mas em loucura não..e se ela se lembra de no meio da noite desaparecer por aí? Nunca mais a encontramos, não estás a ver o perigo! Podíamos ter ido de férias para um lugar menos exótico, tu também e as tuas ideias...
-Ela é tua irmã! Precisa de ajuda...Querias levá-la para Ibiza e perdê-la num mundo de gente que já está perdida?
-É tua irmã também...Até é mais tua que minha...que fardo senhor! Desde criança que não dá descanso a ninguém! Se ao menos a minha mãe estivesse viva...
-Cala-te...vamos aproveitar o momento para estarmos juntas..lembras-te em que mochila estão as estacas? Lara, vem fazer a fogueira, tu é que és perita nisso...


-É incrível como aqui as estrelas estão próximas de nós...
-Não, tu é que consegues vê-las sem o ofuscamento das luzes da cidade..e o silêncio, agrada-te?
-Não os escuto mais, estarão a dormir?
-Os piratas não dormem..caem de cansaço...
-Tenho sono também, vamos dormir?
-Agasalha-te, o deserto pode ser muito traiçoeiro à noite...
-Porque dizes isso?

Quando regressou para junto das outras, já dormiam. Aninhou-se perto do lume e adormeceu. 
Talvez tenham passado duas três horas...

-Isabel, Lara, acordem! - Maria acordou com cavalos à sua volta e vultos de negro montados de cara tapada - acordem por favor...
-Que se passa? Quem são..o que querem?
- Não foste tu que disseste que a travessia era segura para três raparigas? Neste momento apetece-me matar-te!!!
- Acho que não vais precisar... - um dos vultos desembainhou uma espada e falou numa língua que elas não entendiam erguendo-a aos céus, apontando à estrela mais brilhante.

-Acho que preciso da tua ajuda neste momento, o que diz ele?
-Aponta o norte e diz para caminharem para lá, agora.
-Agora? Neste preciso momento?

- Arrumem o que puderem e corram...
-Lara, mas que se passa? Que percebes tu do que fala ele?
-Olhem para trás!
E ao virarem a cabeça, iluminado pelo clarão das estrelas, estava um remoinho de areia que chegava aos céus. Movendo-se em espiral, aproximando-se velozmente...- corram! - Correndo na mesma direcção as duas irmãs tiveram apenas tempo de ver Lara ser agarrada por um dos vultos de negro e ser levada a cavalo pela escuridão. Abrigadas nas dunas a oeste, esperaram que passasse a tempestade de areia - Lara...



II


Acordou numa cama envolta no que parecia um mosquiteiro mas ao tocar-lhe percebeu que se tratava de uma malha fina de ferro - presa?
-Onde estás? O que se passa? Onde estou?
Ele estendeu a mão para senti-la nos pequenos buracos da rede.
-Aqui, consegues ver-me?
-Não, apenas ouvir-te...
-É a malha, não deixa que me materialize aos teus olhos...Não te preocupes, estou aqui.

E a porta do quarto abriu-se. Era um deles. Trazia uma bandeja com comida. Olhou para ela e retirou o véu. Tinha profundos olhos verdes e a pele muito escura. Pelo desgaste da pele, já não parecia muito jovem mas o olhar não era agressivo. Apontou para a janela do quarto e Lara conseguiu ver a mesma estrela, mesmo à luz do dia. 
-O que é que ele quer, diz-me por favor se sabes, da última vez que apontou para norte não foi bom..estás aí?

O homem virou costas e fechou a porta atrás de si. Lara olhou para a comida e sentiu fome mas teve receio. Tentou libertar-se da rede mas em vão. Sentou-se na cama e olhou em volta. O quarto tinha luxo, árabe como o hotel onde passaram a primeira noite, mas muito mais ostensivo. Da janela que estava aberta via céu e deserto, apenas isso. Suspendeu a respiração apurando os seus ouvidos. Nada, nem um pássaro ou um passo. Olhou novamente para a bandeja e reparou que tinha nela uma sineta. Tilintou-a o mais alto que conseguiu e escutou então passos na direcção do quarto. A porta abriu-se. 
-Preciso de ir à casa de banho, casa de banho! - o homem permaneceu sereno olhando-a nos olhos - Não entende? Estou aflita! - e apontou para a barriga fazendo sinal de agonia. Foi então que a rede se desfez em pó e o homem fez sinal de que o seguisse. 
-Se estás aí agora diz-me para que direcção devo correr...
Não obtendo resposta foi atrás do homem pelo corredor. Fez-lhe sinal para que entrasse no compartimento.  Ela entrou e fechou-se mas em volta não havia uma única janela. E o homem esperava-a do lado de fora. Aqui não havia saída. Quando abriu a porta, o homem não estava do outro lado. Num misto de espanto e receio olhou bem ao fundo do corredor e correu. Mas na desorientação nem percebeu que estava passado algum tempo no mesmo lugar à porta do seu quarto. Voltou a seguir o corredor e esquina após esquina, lá estava apenas a porta do seu quarto e nenhuma outra.  - Não é possível! 

- Olha para cima! 
-Outro corredor paralelo a este? Mas como chego até ele?
-Se os piratas não estavam lá e tu conseguias ouvi-los e se eu não estava lá e tu conseguias ver-me, porque não te consegues ver lá em cima?
- Eu?  A mim?

E então fechou os olhos e imaginou-se no andar de cima, ao abri-los lá estava - Não é possível! - Correu e chegou ao mesmo sítio. Novamente em cima, estava outro corredor. Fechou os olhos e lá estava ela. Mas este corredor era diferente. Tinha uma porta ao fundo. Abriu-a. Um clarão de luz cegou-a por momentos. Cobrindo os olhos aos poucos conseguiu ver, era o deserto. Vazio e extenso, infinitamente assustador - Se eu seguir por aqui vou-me perder, tu sabes o caminho? - E lá no alto do céu estava a estrela. Lara pensou seguir então o Norte. Ao caminhar conseguiu finalmente vê-lo. 
-Onde estavas? Precisei de ti para escolher um caminho..
-Não precisaste não..aqui vais tu..

Porém atrás de si seguiam já a galope os vultos de negro. Lara começou a correr pelas dunas, desesperada, correu o mais depressa que conseguiu e atrapalhada na corrida distraída pela perseguição caiu num buraco. A queda foi longa e o pânico da aterragem crescia à medida que caía. Fechou os olhos..

 - Deixa-te cair...Não tenhas medo...Deixa...Deixa que aconteça...

E voz dele acalmou-a, deixando-se cair agora cada vez mais leve, pairando sobre o solo, suave, como se uma brisa a embalasse, acolchoando a queda. Sentindo-se segura, ainda de olhos fechados, agarrou um punhado do que a sustentava certificando-se de ser real. Era algo húmido, terra parecia pelo odor, trouxe-a mais perto do rosto e ao abrir os olhos contemplou um jardim magnífico com trepadeiras e flores exóticas que gotejavam frescura da sua mão. Um jardim imenso que cabia na palma da sua mão. Pestanejou e a pouco e pouco à sua volta esse jardim foi se revelando em toda a parte - Magnífico! Estarei viva?


III

Caminharam explorando esse jardim por algum tempo. Não havia a passagem do dia para a noite, era sempre de dia mas Lara sabia pelo sono quando era noite. 

-Nunca te vi comer, estes frutos são deliciosos...
-Sabes que eu não me alimento das mesmas coisas do que tu...
-Sei tão pouco sobre ti e já estás comigo há tantos anos..nunca me contaste donde vieste nem porque vieste...
-Tu sabes tudo isso sobre ti mesma?
-E também não fazes ideia se este jardim tem um fim? Se chegaremos a algum lado se continuarmos a caminhar? É tão denso que não consigo ver a estrela lá no alto, às vezes sim, dou por ela por uma fresta..mas não tenho a certeza de estarmos no rumo certo, se é que o há..
-O importante é seguir.
-Pergunto-me onde estarão as minhas irmãs, se estiverem bem devem estar preocupadas...

Muitas vezes antes de adormecer Lara fechava os olhos e imaginava-se fora daquele jardim junto das suas irmãs, mas não conseguia sair do mesmo lugar nem entender porque antes resultara e agora não. Ocorreu-lhe que a altura das trepadeiras pudesse ser a limitação, o limite da sua imaginação, de se imaginar fora de si. Imaginava que as trepava mas quanto mais alto subia mais elas cresciam à sua volta. Não era diferente afinal do quarto onde estivera antes, apenas não tinha alguém a persegui-la ou a prende-la. Caíra no buraco de si mesma e isso causava-lhe muita inquietação. O único consolo era não estar sozinha. 

-Tu nunca te fartas de mim? Não conheceste mais ninguém durante todo o tempo que te conheci..
-Só tu me podes ouvir e ver...é assim que funcionamos..já te expliquei isso...tu cansas-te de ti mesma?
-Ás vezes sim, irrito-me a mim própria, a minha presença, mas desde que tu existes que é mais fácil, partilho-me contigo...
-Acho que te posso ajudar em relação a este jardim...
-Sim? Então e só dizes agora? Estamos aqui enclausurados há dias!
-Pensei que estivesses feliz aqui...
-Sim e estou mas incomoda-me não ter escolha, não saber onde acaba e não saber das minhas irmãs.
-Penso que devemos procurar o caminho de volta.
-De volta? Isso não faz sentido nenhum, nós caímos, como vamos subir? E nem sabemos onde está o buraco? E do outro lado estão aqueles vultos atrás de mim...E tu disseste que o importante era seguir!
-E repito..mesmo que seja para trás...

Lara não ficou nada convencida deste plano. Parecia-lhe mais improvável de consegui-lo do que encontrar o Norte que lhe esperançava algo novo. No entanto, depois de mais alguns dias de caminhada começou a sentir-se concordar com ele. Mas o caminho andado para a frente já tinha sido tanto que desconfiava se tinha energia dentro de si para regressar. De sono para sono parecia-lhe que dormia menos.

-Acho que não vou ser capaz de fazer tudo isto para trás..sinto-me exausta.
-Se ficarmos aqui parados não chegaremos a lado nenhum. 
-Tem de haver algum truque, tu sabes, porque não me ajudas? Alguma maneira mais inteligente de o fazer, algum sentido mais fácil. 
-Lembras-te há uns anos atrás quando ficaste presa naquela gruta, a da derrocada?
-Preferia não me lembrar disso...
-Tu sabias que escavando não irias sobreviver porque não tinhas água nem comida para dar-te energia e ficaste à espera que te salvassem, pela mesma entrada...
-Pela mesma entrada! Queres dizer que pelo mesmo buraco vai entrar alguém para nos ajudar?
-Pediste ajuda?
-Não...Pensei que já te tinha a ti para isso...
-A ironia não ajuda! Tu sabes que eu só posso intervir até certo ponto..
-Ainda não percebi bem esse ponto...

Lara ficou pensativa..pedir ajuda a quem?..às suas irmãs? Não tinha mais ninguém...ou tinha? Aquele homem que lhe tinha apontado duas vezes o Norte..sim talvez ele fosse uma opção, mas não sabia até que ponto ele estava com os outros ou com ela...Se por duas vezes lhe indicara o caminho, na terceira ...

E assim fez. Fechou os olhos e contemplou-o. Sereno e mágico. Mergulhou na profundidade do verde  oceano dos seus olhos e deixou que a água fria lhe entrasse pelos pulmões. Até não poder respirar mais. E num sopro de regresso, voltou, ao quarto, à cama, à rede donde saíra - Não, não pode ser...



IV

Exausta de muitas noites mal dormidas e de longas caminhadas, encontrando uma cama confortável dormiu. Quando acordou era de noite. Sentia saudades das estrelas e do céu em escuridão que as realçava, lá estava ela a grande estrela. Ao seu lado tinha a bandeja com comida quente. Há quantos dias não tomava uma refeição que não fosse frutos. Sentiu vontade de tomar um banho também quente e tocou a sineta. Lá estava ele. Com o rosto todo descoberto parecia-lhe agora bonito. Não o receava mas sabia que estava presa. Pediu-lhe pelo banho e ele uma vez mais quebrou a rede e fez-lhe sinal para que o seguisse. Desta vez Lara não pensava em fugas, estava convicta de que precisava deste homem para regressar para junto das suas irmãs e até um pouco encantada com a ideia de o achar bonito. 

O compartimento tinha uma banheira grande já a transbordar de água. Deixou a porta aberta e fez questão de se despir na frente dele. Seduzi-lo poderia trazer-lhe vantagens. Ele da porta mirava cada gesto seu, sem qualquer alteração de expressão, como se ela lhe fosse indiferente. Não sabia bem o que fazer mas de alguma forma apetecia-lhe a companhia dele, por isso, quando regressou ao quarto fez-lhe sinal para que se deitasse a seu lado. E ele deitou. Apenas a um palmo de distância do seu rosto conseguia sentir-lhe a respiração. Era um homem de verdade, mágico ou não, atraía-a. Despida sentiu um arrepio de frio e ele cobriu-a com a colcha. E ela tapou-o também. E debaixo dos lençóis procurou pelo corpo dele, por baixo das vestes dele, quente e áspero. Dormiu abraçada a ele. 

No meio da noite despertou. Ele dormia sereno e a rede não estava activa. 
-Estás aí? - sussurrou-lhe - Não sei bem o que fazer mas sinto me confortável nos braços dele...
-Deves estar onde te sentes feliz..

E deixou-se ficar. Todos os dias a relação entre eles crescia um pouco. Sem nunca lhe proferir uma palavra ele dedicava-lhe gestos que a faziam feliz. Não tinha mais a rede e podia circular pelo quarto e pela casa à vontade. Trouxe-lhe livros, música, vestidos, flores..numa manhã apareceu-lhe com um cavalo cinza prateado. Os dois saíram em passeio correndo livres pelo deserto. A casa que antes era uma prisão foi-se tornando num lar e Lara foi esquecendo a vida de antes como se possuída estivesse por algum feitiço que a fazia sentir não precisar de mais nada para ser feliz.  Até a presença dele se foi desvanecendo. Cada vez conversavam menos.

-Andas por aí? O deserto ao cair da noite é lindo...as areias tornam-se tapetes laranjas ardentes..um encanto..
-Fico feliz de te ver feliz.

Passaram-se cinco anos. E numa manhã ao acordar Lara não encontrou o homem no quarto. Pensando estar noutro compartimento saiu à procura dele. Quando passou a porta do quarto entrando no corredor ainda meio adormecida começou a caminhar e qual não foi o seu espanto quando voltou à porta do quarto..o corredor..não..estou presa novamente neste corredor..Fechou os olhos e projectou-se para o andar de cima como tinha feito antes. E novamente para outro andar acima até encontrar a mesma porta. Sabia o que estava do outro lado e não queria lá voltar.

-Onde estás? O que se passa? Não quero partir, não! Estou feliz aqui...

Não escutando resposta, regressou ao seu quarto e procurou pela estrela na janela. Não estava lá mais. O céu estava limpo, vazio. Lara gritou de desespero. Chorando de agonia esperou dias e noites, esperou e nada, nenhum dos dois aparecia. Porquê? Pedia por uma explicação...E ninguém lha dava. E pela primeira vez há muitos anos estava só, verdadeiramente só. Dentro de si uma dor imensa de tristeza crescia, sentia a falta deles, sobretudo do homem. Amava-o e a dor da sua ausência era insuportável. Dentro de si começaram a crescer ideias de morte que a clausura e tristeza fermentavam. 
E num dia de desespero, montou no seu cavalo cinza e cavalgou porta fora pelo deserto, cavalgou deixando-se à morte do calor, da tristeza. Caída na areia.

E ele apareceu-lhe, acariciou-lhe o rosto e disse-lhe
-Está na hora, vamos regressar. Elas esperam por ti.

Lara olhou em frente, pelas areias do deserto e vislumbrou o que parecia ser o barco deitado na areia.

-Não vens? É preciso fazer a fogueira! Já te pedi Lara..