I
-Queres dizer uma lagoa salgada...
-Não vens?
-Não, prefiro ficar aqui mais um pouco, vou quando for a minha hora.
-O que antes fora manga ou lagoa, hoje é apenas uma poça. Um milagre no meio do deserto branco de areia fina. Consegues ouvi-los? Ainda dentro do casco chamando por ajuda. Escuta.
-Sim, batem contra a madeira, estou a ouvi-los.
-Mas estás a falar com quem? - as duas raparigas repousavam depois de uma longa caminhada enquanto a terceira sentada afastada conversava sozinha - está a escurecer, vamos montar o acampamento aqui mesmo, podes ajudar?
-Mas porque é que ela tem que ser sempre diferente, nem entendo porque veio connosco.
-Não sejas assim Maria, ela tem tido muitos problemas ultimamente, eu queria ver-te no lugar dela, já tinhas caído em depressão.
-Em depressão pois...mas em loucura não..e se ela se lembra de no meio da noite desaparecer por aí? Nunca mais a encontramos, não estás a ver o perigo! Podíamos ter ido de férias para um lugar menos exótico, tu também e as tuas ideias...
-Ela é tua irmã! Precisa de ajuda...Querias levá-la para Ibiza e perdê-la num mundo de gente que já está perdida?
-É tua irmã também...Até é mais tua que minha...que fardo senhor! Desde criança que não dá descanso a ninguém! Se ao menos a minha mãe estivesse viva...
-Cala-te...vamos aproveitar o momento para estarmos juntas..lembras-te em que mochila estão as estacas? Lara, vem fazer a fogueira, tu é que és perita nisso...
-É incrível como aqui as estrelas estão próximas de nós...
-Não, tu é que consegues vê-las sem o ofuscamento das luzes da cidade..e o silêncio, agrada-te?
-Não os escuto mais, estarão a dormir?
-Os piratas não dormem..caem de cansaço...
-Tenho sono também, vamos dormir?
-Agasalha-te, o deserto pode ser muito traiçoeiro à noite...
-Porque dizes isso?
Quando regressou para junto das outras, já dormiam. Aninhou-se perto do lume e adormeceu.
Talvez tenham passado duas três horas...
-Isabel, Lara, acordem! - Maria acordou com cavalos à sua volta e vultos de negro montados de cara tapada - acordem por favor...
-Que se passa? Quem são..o que querem?
- Não foste tu que disseste que a travessia era segura para três raparigas? Neste momento apetece-me matar-te!!!
- Acho que não vais precisar... - um dos vultos desembainhou uma espada e falou numa língua que elas não entendiam erguendo-a aos céus, apontando à estrela mais brilhante.
-Acho que preciso da tua ajuda neste momento, o que diz ele?
-Aponta o norte e diz para caminharem para lá, agora.
-Agora? Neste preciso momento?
- Arrumem o que puderem e corram...
-Lara, mas que se passa? Que percebes tu do que fala ele?
-Olhem para trás!
E ao virarem a cabeça, iluminado pelo clarão das estrelas, estava um remoinho de areia que chegava aos céus. Movendo-se em espiral, aproximando-se velozmente...- corram! - Correndo na mesma direcção as duas irmãs tiveram apenas tempo de ver Lara ser agarrada por um dos vultos de negro e ser levada a cavalo pela escuridão. Abrigadas nas dunas a oeste, esperaram que passasse a tempestade de areia - Lara...
II
Acordou numa cama envolta no que parecia um mosquiteiro mas ao tocar-lhe percebeu que se tratava de uma malha fina de ferro - presa?
-Onde estás? O que se passa? Onde estou?
Ele estendeu a mão para senti-la nos pequenos buracos da rede.
-Aqui, consegues ver-me?
-Não, apenas ouvir-te...
-É a malha, não deixa que me materialize aos teus olhos...Não te preocupes, estou aqui.
E a porta do quarto abriu-se. Era um deles. Trazia uma bandeja com comida. Olhou para ela e retirou o véu. Tinha profundos olhos verdes e a pele muito escura. Pelo desgaste da pele, já não parecia muito jovem mas o olhar não era agressivo. Apontou para a janela do quarto e Lara conseguiu ver a mesma estrela, mesmo à luz do dia.
-O que é que ele quer, diz-me por favor se sabes, da última vez que apontou para norte não foi bom..estás aí?
O homem virou costas e fechou a porta atrás de si. Lara olhou para a comida e sentiu fome mas teve receio. Tentou libertar-se da rede mas em vão. Sentou-se na cama e olhou em volta. O quarto tinha luxo, árabe como o hotel onde passaram a primeira noite, mas muito mais ostensivo. Da janela que estava aberta via céu e deserto, apenas isso. Suspendeu a respiração apurando os seus ouvidos. Nada, nem um pássaro ou um passo. Olhou novamente para a bandeja e reparou que tinha nela uma sineta. Tilintou-a o mais alto que conseguiu e escutou então passos na direcção do quarto. A porta abriu-se.
-Preciso de ir à casa de banho, casa de banho! - o homem permaneceu sereno olhando-a nos olhos - Não entende? Estou aflita! - e apontou para a barriga fazendo sinal de agonia. Foi então que a rede se desfez em pó e o homem fez sinal de que o seguisse.
-Se estás aí agora diz-me para que direcção devo correr...
Não obtendo resposta foi atrás do homem pelo corredor. Fez-lhe sinal para que entrasse no compartimento. Ela entrou e fechou-se mas em volta não havia uma única janela. E o homem esperava-a do lado de fora. Aqui não havia saída. Quando abriu a porta, o homem não estava do outro lado. Num misto de espanto e receio olhou bem ao fundo do corredor e correu. Mas na desorientação nem percebeu que estava passado algum tempo no mesmo lugar à porta do seu quarto. Voltou a seguir o corredor e esquina após esquina, lá estava apenas a porta do seu quarto e nenhuma outra. - Não é possível!
- Olha para cima!
-Outro corredor paralelo a este? Mas como chego até ele?
-Se os piratas não estavam lá e tu conseguias ouvi-los e se eu não estava lá e tu conseguias ver-me, porque não te consegues ver lá em cima?
- Eu? A mim?
E então fechou os olhos e imaginou-se no andar de cima, ao abri-los lá estava - Não é possível! - Correu e chegou ao mesmo sítio. Novamente em cima, estava outro corredor. Fechou os olhos e lá estava ela. Mas este corredor era diferente. Tinha uma porta ao fundo. Abriu-a. Um clarão de luz cegou-a por momentos. Cobrindo os olhos aos poucos conseguiu ver, era o deserto. Vazio e extenso, infinitamente assustador - Se eu seguir por aqui vou-me perder, tu sabes o caminho? - E lá no alto do céu estava a estrela. Lara pensou seguir então o Norte. Ao caminhar conseguiu finalmente vê-lo.
-Onde estavas? Precisei de ti para escolher um caminho..
-Não precisaste não..aqui vais tu..
Porém atrás de si seguiam já a galope os vultos de negro. Lara começou a correr pelas dunas, desesperada, correu o mais depressa que conseguiu e atrapalhada na corrida distraída pela perseguição caiu num buraco. A queda foi longa e o pânico da aterragem crescia à medida que caía. Fechou os olhos..
- Deixa-te cair...Não tenhas medo...Deixa...Deixa que aconteça...
E voz dele acalmou-a, deixando-se cair agora cada vez mais leve, pairando sobre o solo, suave, como se uma brisa a embalasse, acolchoando a queda. Sentindo-se segura, ainda de olhos fechados, agarrou um punhado do que a sustentava certificando-se de ser real. Era algo húmido, terra parecia pelo odor, trouxe-a mais perto do rosto e ao abrir os olhos contemplou um jardim magnífico com trepadeiras e flores exóticas que gotejavam frescura da sua mão. Um jardim imenso que cabia na palma da sua mão. Pestanejou e a pouco e pouco à sua volta esse jardim foi se revelando em toda a parte - Magnífico! Estarei viva?
III
Caminharam explorando esse jardim por algum tempo. Não havia a passagem do dia para a noite, era sempre de dia mas Lara sabia pelo sono quando era noite.
-Nunca te vi comer, estes frutos são deliciosos...
-Sabes que eu não me alimento das mesmas coisas do que tu...
-Sei tão pouco sobre ti e já estás comigo há tantos anos..nunca me contaste donde vieste nem porque vieste...
-Tu sabes tudo isso sobre ti mesma?
-E também não fazes ideia se este jardim tem um fim? Se chegaremos a algum lado se continuarmos a caminhar? É tão denso que não consigo ver a estrela lá no alto, às vezes sim, dou por ela por uma fresta..mas não tenho a certeza de estarmos no rumo certo, se é que o há..
-O importante é seguir.
-Pergunto-me onde estarão as minhas irmãs, se estiverem bem devem estar preocupadas...
Muitas vezes antes de adormecer Lara fechava os olhos e imaginava-se fora daquele jardim junto das suas irmãs, mas não conseguia sair do mesmo lugar nem entender porque antes resultara e agora não. Ocorreu-lhe que a altura das trepadeiras pudesse ser a limitação, o limite da sua imaginação, de se imaginar fora de si. Imaginava que as trepava mas quanto mais alto subia mais elas cresciam à sua volta. Não era diferente afinal do quarto onde estivera antes, apenas não tinha alguém a persegui-la ou a prende-la. Caíra no buraco de si mesma e isso causava-lhe muita inquietação. O único consolo era não estar sozinha.
-Tu nunca te fartas de mim? Não conheceste mais ninguém durante todo o tempo que te conheci..
-Só tu me podes ouvir e ver...é assim que funcionamos..já te expliquei isso...tu cansas-te de ti mesma?
-Ás vezes sim, irrito-me a mim própria, a minha presença, mas desde que tu existes que é mais fácil, partilho-me contigo...
-Acho que te posso ajudar em relação a este jardim...
-Sim? Então e só dizes agora? Estamos aqui enclausurados há dias!
-Pensei que estivesses feliz aqui...
-Sim e estou mas incomoda-me não ter escolha, não saber onde acaba e não saber das minhas irmãs.
-Penso que devemos procurar o caminho de volta.
-De volta? Isso não faz sentido nenhum, nós caímos, como vamos subir? E nem sabemos onde está o buraco? E do outro lado estão aqueles vultos atrás de mim...E tu disseste que o importante era seguir!
-E repito..mesmo que seja para trás...
Lara não ficou nada convencida deste plano. Parecia-lhe mais improvável de consegui-lo do que encontrar o Norte que lhe esperançava algo novo. No entanto, depois de mais alguns dias de caminhada começou a sentir-se concordar com ele. Mas o caminho andado para a frente já tinha sido tanto que desconfiava se tinha energia dentro de si para regressar. De sono para sono parecia-lhe que dormia menos.
-Acho que não vou ser capaz de fazer tudo isto para trás..sinto-me exausta.
-Se ficarmos aqui parados não chegaremos a lado nenhum.
-Tem de haver algum truque, tu sabes, porque não me ajudas? Alguma maneira mais inteligente de o fazer, algum sentido mais fácil.
-Lembras-te há uns anos atrás quando ficaste presa naquela gruta, a da derrocada?
-Preferia não me lembrar disso...
-Tu sabias que escavando não irias sobreviver porque não tinhas água nem comida para dar-te energia e ficaste à espera que te salvassem, pela mesma entrada...
-Pela mesma entrada! Queres dizer que pelo mesmo buraco vai entrar alguém para nos ajudar?
-Pediste ajuda?
-Não...Pensei que já te tinha a ti para isso...
-A ironia não ajuda! Tu sabes que eu só posso intervir até certo ponto..
-Ainda não percebi bem esse ponto...
Lara ficou pensativa..pedir ajuda a quem?..às suas irmãs? Não tinha mais ninguém...ou tinha? Aquele homem que lhe tinha apontado duas vezes o Norte..sim talvez ele fosse uma opção, mas não sabia até que ponto ele estava com os outros ou com ela...Se por duas vezes lhe indicara o caminho, na terceira ...
E assim fez. Fechou os olhos e contemplou-o. Sereno e mágico. Mergulhou na profundidade do verde oceano dos seus olhos e deixou que a água fria lhe entrasse pelos pulmões. Até não poder respirar mais. E num sopro de regresso, voltou, ao quarto, à cama, à rede donde saíra - Não, não pode ser...
IV
Exausta de muitas noites mal dormidas e de longas caminhadas, encontrando uma cama confortável dormiu. Quando acordou era de noite. Sentia saudades das estrelas e do céu em escuridão que as realçava, lá estava ela a grande estrela. Ao seu lado tinha a bandeja com comida quente. Há quantos dias não tomava uma refeição que não fosse frutos. Sentiu vontade de tomar um banho também quente e tocou a sineta. Lá estava ele. Com o rosto todo descoberto parecia-lhe agora bonito. Não o receava mas sabia que estava presa. Pediu-lhe pelo banho e ele uma vez mais quebrou a rede e fez-lhe sinal para que o seguisse. Desta vez Lara não pensava em fugas, estava convicta de que precisava deste homem para regressar para junto das suas irmãs e até um pouco encantada com a ideia de o achar bonito.
O compartimento tinha uma banheira grande já a transbordar de água. Deixou a porta aberta e fez questão de se despir na frente dele. Seduzi-lo poderia trazer-lhe vantagens. Ele da porta mirava cada gesto seu, sem qualquer alteração de expressão, como se ela lhe fosse indiferente. Não sabia bem o que fazer mas de alguma forma apetecia-lhe a companhia dele, por isso, quando regressou ao quarto fez-lhe sinal para que se deitasse a seu lado. E ele deitou. Apenas a um palmo de distância do seu rosto conseguia sentir-lhe a respiração. Era um homem de verdade, mágico ou não, atraía-a. Despida sentiu um arrepio de frio e ele cobriu-a com a colcha. E ela tapou-o também. E debaixo dos lençóis procurou pelo corpo dele, por baixo das vestes dele, quente e áspero. Dormiu abraçada a ele.
No meio da noite despertou. Ele dormia sereno e a rede não estava activa.
-Estás aí? - sussurrou-lhe - Não sei bem o que fazer mas sinto me confortável nos braços dele...
-Deves estar onde te sentes feliz..
E deixou-se ficar. Todos os dias a relação entre eles crescia um pouco. Sem nunca lhe proferir uma palavra ele dedicava-lhe gestos que a faziam feliz. Não tinha mais a rede e podia circular pelo quarto e pela casa à vontade. Trouxe-lhe livros, música, vestidos, flores..numa manhã apareceu-lhe com um cavalo cinza prateado. Os dois saíram em passeio correndo livres pelo deserto. A casa que antes era uma prisão foi-se tornando num lar e Lara foi esquecendo a vida de antes como se possuída estivesse por algum feitiço que a fazia sentir não precisar de mais nada para ser feliz. Até a presença dele se foi desvanecendo. Cada vez conversavam menos.
-Andas por aí? O deserto ao cair da noite é lindo...as areias tornam-se tapetes laranjas ardentes..um encanto..
-Fico feliz de te ver feliz.
Passaram-se cinco anos. E numa manhã ao acordar Lara não encontrou o homem no quarto. Pensando estar noutro compartimento saiu à procura dele. Quando passou a porta do quarto entrando no corredor ainda meio adormecida começou a caminhar e qual não foi o seu espanto quando voltou à porta do quarto..o corredor..não..estou presa novamente neste corredor..Fechou os olhos e projectou-se para o andar de cima como tinha feito antes. E novamente para outro andar acima até encontrar a mesma porta. Sabia o que estava do outro lado e não queria lá voltar.
-Onde estás? O que se passa? Não quero partir, não! Estou feliz aqui...
Não escutando resposta, regressou ao seu quarto e procurou pela estrela na janela. Não estava lá mais. O céu estava limpo, vazio. Lara gritou de desespero. Chorando de agonia esperou dias e noites, esperou e nada, nenhum dos dois aparecia. Porquê? Pedia por uma explicação...E ninguém lha dava. E pela primeira vez há muitos anos estava só, verdadeiramente só. Dentro de si uma dor imensa de tristeza crescia, sentia a falta deles, sobretudo do homem. Amava-o e a dor da sua ausência era insuportável. Dentro de si começaram a crescer ideias de morte que a clausura e tristeza fermentavam.
E num dia de desespero, montou no seu cavalo cinza e cavalgou porta fora pelo deserto, cavalgou deixando-se à morte do calor, da tristeza. Caída na areia.
E ele apareceu-lhe, acariciou-lhe o rosto e disse-lhe
-Está na hora, vamos regressar. Elas esperam por ti.
Lara olhou em frente, pelas areias do deserto e vislumbrou o que parecia ser o barco deitado na areia.
-Não vens? É preciso fazer a fogueira! Já te pedi Lara..
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