sábado, 11 de janeiro de 2014

Publicidade Futurizada

Há apenas um lugar, um lugar onde te consegues encontrar, onde queres estar...
Lia-se no Outdoor da janela do quarto quando acordava.
Desceu as escadas e atravessou a rua. Na paragem aguardando pelo autocarro procurou pelo livro na mala. Não estava. Retirou tudo e nada. Levantou-se e voltou a atravessar a rua. Entrando em casa, lá estava ele em cima da mesa. Sentou-se, abriu-o e não voltou a sair.

E o dia foi  passando para noite. E a noite foi passando para dia. 

Aqui não terás fome nem sono. Aqui o tempo não te envelhece e tudo acontece. E tudo pode acontecer. Aqui serás quem tu quiseres. Aqui não se adoece nem se morre. Sim também se chora e também se sofre. Mas ao virar da página algo novo te fará sorrir. E as estações do ano têm cores e sensações, o horizonte e as estrelas são únicas. E os lugares são mágicos. E o melhor de tudo isto: podes voar! Há uma voz que separa a tua realidade deste mundo. Narrada página a página. Segue-a. Mantendo todos os teus sentidos bem alerta. É tudo o que posso prometer-te. 

Porque cá fora as coisas mudaram e o tempo passou sem ela. Ou porque muitas estações passaram e as coisas mudam. Da janela lia-se agora...Não espere, Voe! Do outro lado da rua não estava mais a paragem. As pessoas já não apanhavam autocarros, voavam com mochilas mecânicas que se abriam automaticamente se carregassem no botão lateral. Tamanha desilusão. Abrir a porta, sair e já ter conhecimento de tudo o que vê. Porque já havia sido escrito. Porque já o tinha vivido. Recuando passos retida à porta de casa, no limbo da inexistência a completa sensação de estar fora de tempo. Se regressasse poderia procurar outro livro e começa-lo mas o receio de encontrar cá fora o tempo avançado já vivido e esperado, impassava-a. Olhando para a caixa do correio atulhada de publicidade abriu-a. De imediato caíram os folhetos no chão de tão apertados. Desinteressada, pontapeou alguns para que se afastassem e pudesse olha-los. Um deles chamou-lhe a atenção. Apanhou-o e leu. 

Agência Funerária: Vá com os Santinhos! Uma ida sem volta com certeza e conforto. A decisão está nas suas mãos. Viagem prática, não dolorosa, económica e segura. Agência Credenciada pelas autoridades de saúde e pelo ministério do Direito à Não Vida. Destacado lia-se ainda: Aproveite agora a nossa campanha de adesão com dez por cento de desconto e oferta de alucinogénios de última geração para uma viagem transcendental!

Surpreendeu-se. Isto não estava escrito. Naquele tempo a morte pensava-se ser algo a combater, a vida era assim um direito absoluto. Um direito absoluto que uns reivindicavam e outros amaldiçoavam. Ainda assim nenhuma destas situações satisfazia o seu estado ou esclarecia uma decisão. Nem para a frente nem no presente. E para trás já não havia como. Mas ir de vez também não. Curiosou-se sobre a hipótese de haver outras novidades que desconhecesse e decidiu então adquirir uma dessas mochilas voadoras na loja dos chineses mais próxima para dar uma volta pela cidade. Já ninguém anda a pé. Ao aproximar-se da loja reparou que o letreiro não era nem chinês nem indiano. Alemão!  Então a economia deu mesmo uma grande volta, mas isso não era novidade para si. Estava no capítulo cinco. Como se assistisse a uma descrição aborrecida porque repetida, foi encontrando mais novidades que já não o eram. 

Parou junto ao cais e recordou-se do capítulo trinta e um. No lugar do rio estava então a base interplanetária. O rio secara dez capítulos antes com a mudança climática. Apesar de já ter estado aqui nessa altura, regressar e absorver a imensidão da devastidão que a ausência do rio deixava era ainda agora estrondosa. Coisas que lhe deixaram saudades do tempo de antes, o rio era uma delas. De resto o passeio revelou-se aborrecido e a ideia inicial furtada. 
Voltou então a casa e releu o folheto. Nesta segunda vista nada de mais se salientou. Buscou pela lupa e percorreu-o. Lá estava. Uma numeração quase invisível a olho nu. Decifrava-se dois mil e quatorze nos primeiros dígitos. Esta data era a data do ano em que havia regressado a casa para dentro do livro e não tinha saído mais. Questionava-se agora se ao ter andado para a frente não terá o passado sido alterado para um futuro imediato comendo o próprio tempo em que existiu de facto em tempo real ela mesma. Questionava-se acima dessa questão a sua própria existência. Tal como pensava que a conhecia. Estaria baralhada? Ou não teria existido de todo? Seria ela afinal um personagem que naquela mesma paragem se esgueirou do livro e começou a viver uma vida baseada na vida da leitora? Que teria ela personagem regressado a casa da leitora e entrado no seu próprio livro como leitora e vivido toda a sua história pela primeira vez como personagem? Nesta caminhada de interrogações esquizofrénicas havia uma única certeza: não sabia de todo quem fora porque o tempo em que pensava ter vivido afinal não era o tempo que estava a decorrer nesse tempo. Não apenas por causa de um folheto esta conclusão era válida. Em casa, procurou pelas gavetas e armários por provas da sua vida anterior e nada. Havia realmente fotografias na moldura digital mas de uma pessoa que não lhe lembrava passado nenhum. Fisicamente era idêntica, mas tudo em si era desconhecido, desde a aparência às pessoas que constavam nas fotografias ou até a própria expressão. Apagada. Ou nunca vivida? Ou uma troca de personagens e vidas reais e tempos a mais a confundirem o discernimento? E ao olhar pela janela...

Compreendeu. Posso ser quem eu quiser. Ainda posso ser quem eu quiser. Se há passado, se foi vivido, se existi? Não importa mais...Há apenas um lugar, um lugar de ti, sem tempo, sem espaço definido. Um lugar de ser, agora. E então lhe veio à memória ter adquirido o plano confort amnésico que publicitava o outdoor que se via da sua janela. E que nesse plano havia uma válvula de escape que advertia: se por algum motivo for da sua vontade rescindir contrato com os nossos serviços não nos responsabilizamos por qualquer dano futuro ou passado. 

Procurou então pelas páginas amarelas e encontrou: Serviço de criatividade segura de Si, um serviço que lhe permitirá criar a sua própria pessoa, bem como vida envolvente e tempo/espaço alternativo sem qualquer interferência de eventos passados e totalmente seguro uma vez testado e confirmada a inexistência de efeitos secundários. 



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