sábado, 29 de março de 2014

Alguém tentou dizer aos homens
que eram responsáveis por si próprios
e essa mentira teve o peso
de uma inteira vida

e sem outro pensamento
como milagre frágil
entregou-se nas mãos dela

chegaram-se muitas outras
e numa guerra civil
esperei...esperei-a

náuseas
de amanhar a terra
menos sangue
e mais guelra!
já morre o peixe na areia

e que diferença faria?
se a cegueira me fosse reconhecida






um grande dito

para quê tantas páginas?
é preciso que se acabe com as sátiras
e as rimas que se escolhem
porque parece bem

- os meus ódios são
terrivelmente abstratos

mulheres e álcool
um espírito pouco penetrante
talvez meu

e a pressentir o domínio
da vertigem do abismo
dissimulação a exaltação
parece que andamos ao
encontrão

nos últimos trinta anos
tenho deixado passar
a ocasião

de me escrever



Os meninos do rio

Na escuridão de águas paradas
os barcos aguardam braçadas
emerge então um fluxo ardente
como se o dia ainda sonolento
no compromisso de seguir a noite
e ao cais chegam os homens
ramelando arqueadas verdades
jornalista, filósofo, romancista
taberneiro, carteiro, porteiro
ainda crianças de assobio
em terra ficam as possibilidades
que ao mar se deitam redes
do destino que acolhe
os meninos do rio

Quando viajas simultaneamente nos dois mundos
estranhas

Degraus da Fome

Percebi que a fome é olhar para um bife e não poder comprá-lo
Percebi que a fome é olhar para o frigorífico e combinar restos
Percebi que a fome é ter o frigorífico desligado
Percebi que a fome é não ter frigorífico
Percebi que a fome é esperar à porta da carrinha da sopa dos pobres
Percebi que a fome é estender a mão e pedir perdão por estar a pedir
Percebi que a fome é olhar para o chão e não ter mais dignidade
Percebi que a fome é procurar no lixo os restos dos outros
Percebi que a fome é dormir porque o corpo já não consegue pedir
Percebi que a fome é não ter mais fome

segunda-feira, 24 de março de 2014

...

e foi então que se despenteou e pontapeou o vento
deve continuar à sua volta a obra da criação
valorizar a riqueza do solo e de estar solo
modelar o seu ser a ponto de o esquecer de ser
harmonizando ao alcance do chamado conforto
progressivamente a matéria de um morto
tornando-se imutavelmente parte do belo

que trabalho honesto
ser poeta

.

há um jardim certo?
se compreendê-lo fosse fácil
tu não estarias a protegê-lo
universo imenso que esmaga
como cotovelo arma branca
-fazei tudo isso em memória
como se videira fosse...
se calhar só bebedeira
antes escravo...
afinal liberto
temos pois Uma pessoa
escondida no Verbo





.

há um jardim certo?
temes pois que a pessoa do verbo
seja afinal um facto sem mistério
um juiz supremo do desespero
como um Pai celeste
que se veste de dor ariana
no decurso da sua vida pública
e amena
-e todos te pedem um sinal
uma dupla personagem assiste
o poder de refazer a alma
que se aniquila a cada nova palavra

solene é afinal a farsa

.

há um jardim, certo?
talvez carregando na tecla 0
e estava assim a olhar para o tecto
como é ser inverso retrato incerto?
nem bem sei se quero apurado o traço
e ás tantas o quadrado fez um olho piscado
achei fácil rima-lo com todos os males do passado
que passando ao lado de um jeito abusado bateu frisado
estava o moscardo enroscado nas voltas do fado. ponto acabado



domingo, 23 de março de 2014

Hajime


a encarnação de um totem
da doutrina de vórtex
da condição de homem
à unidade mormente
e proclamar o sacrifício
no prólogo aniquilado
eis o divino?

o elemento humano
criatura perfeito
e a uma salvação
da condição do peito

Cristo olha-me pra isto
gravei te na palma de xisto
aparente e real, amoral?
iconoclasta fantasma
é assim uma alma
acampada à porta de casa
acredita,
o céu está uma brasa

sábado, 22 de março de 2014

A sentença



há lonjuras que não se quebram nunca
como olhares que não se aproximam
ou árvores que não se tocam
talvez ramos de podas diferentes
que simplesmente não se dão

há tudo isso e um compromisso de só
no minuto que se procede à execução
o condenado do outro lado avalia
no pavilhão de uma aurora tardia

estive morto toda uma vida

reintegrado conciliado
finalmente gabarolice ardente
refiro-me evidentemente
a uma única razão a temer
a sua sede de vingança
o acidente que ao acaso o manda
de volta como um abraço forçado
zombante de riso: todos parvos

segunda-feira, 17 de março de 2014

trauma

o mantra sair-te-á das mãos dentro de algumas horas
nos retrata como pêndulo à porta fechada
-recordas-te daquela criança trancada
porque simplesmente...não dormia...
onde moras? no meio do choro atirado
a um quarto vazio
a cadência desistência debitando
uma morte fantasmagórica...perturbações
incómodas
não são objectos que se deitam fora
e ao que parece...a idade só piora
controla - a tua mente
agora não agora não agora não

quinta-feira, 13 de março de 2014

errata

narrou o inacreditável
inchado solene e...cómico
-estou a tentar!

mais uma vez de madrugada
bate na porta errada
e um rosto selvagem..
-podes entrar!

e ao cair de um penhasco
que se salve ao menos
o casco

a culpa é da louca da cólica
empertigada bruxo lenta
grasnando: o esquecimento!



versos duplos

retirava das mãos qualquer coisa embrulhada
que se colava apoplética a uma carga de nada

que estivesse onde fosse, uma pistola ao lado
uma canoa furada, uma colcha suja esfarrapada

talvez um montão de lixo que de místico fora
reafirmando em telegrama beijos molhados

de quadrados da chuva, abandonando como sua
a experiência no fundão: ai não faz assim não!

e na incrível simplicidade o calhambeque pegou
por obra de um naco de carne, na sua voz soou

quero um fato de treino! e a miúda pássaro acenou
praticando voos rasos sinto apertados os sapatos

das costas da mão sai então um chavão: coração
tenho apenas uma bala que da recusa nos afasta

songas sarcásticas sombras na crescente largura
alguém gritou lá do fundo: que puta de planura!






quarta-feira, 12 de março de 2014

a visão daqui

nunca vi a manhã
que não fosse seguida da noite
nunca conheci o norte
que não avistasse o sul
nunca subi mais do que desci
nunca gritei mais do que calei
ou chorei mais do que ri
nunca fui mais do que fui
ou serei mais do que sou

e no entanto
tudo não passa de linhas
que se vão escrevendo sozinhas
em caracteres de absurdas
relações descontínuas




domingo, 9 de março de 2014

a música certa para uma lap dance

um poeta leva algum tempo a formar-se
um homem leva uma vida
ou será ao contrário?
estava a pensar em foder um armário
quando
detrás do biombo aparece um monstro
que puta de cosmos hilariante
circular e viciante
e eis que de uma das vigas
salta um maçarico
ou terá sido dentro de um penico?
é por todas estas bizarrias
que ainda me pergunto:
já estavas de saída ou nem chegaste a entrar?


quinta-feira, 6 de março de 2014

todos os dias morre um poeta
e com ele a promessa...

sabes que essa conversa perturba
como se nas entranhas
uma luta ofuscada de manhas
somos olímpicos na troca de peles
e alfaiates de deixar para amanhã
âncoras de vidas pendentes

onde estaremos sempre
ausentes


quarta-feira, 5 de março de 2014

Estou a sofrer de apoplexia
Sim?
Creio mesmo que já vejo
ao longe a minha vida
nas mãos de um suicida
com tal profundo desdenho
uma oferenda de libação
ou de blasfémia afável
assim só para ser mais fácil
numa transação de transe

-talvez seja da pastilha
Tem mote próprio
a energia da palavra
cana oca que acerta
caçador de prémios
esboço de cabeçalho
já fumega
o limite da nossa terra
segue a tabuleta
Barbérie
alma ambulante
a dos salteadores
do cosmos sérius

Como etéreos?

segunda-feira, 3 de março de 2014

wok 4 now

um dedo se desprende
porque salta uma tecla
no meio de uma conversa
o céu gira
tudo bigodes e berlicoques
num língua bífida
ainda ardem abertas
as portas da palaestina
florestas melódicas
densas...perigosas
-Vai, segue a tua hora!

donde se avista ainda
uma corda à terra
agarra qué nossa
essa lampreia viscosa
que à ultima aurora
se enrosca
ainda há para
uma reparação

não sei
que o dito
foi
apenas uma canção
de improviso


domingo, 2 de março de 2014

porque ela ainda está a passar
ajoelhemo-nos e finjamos
ser pequenos
tenta dizer tudo isso sério
bem baixinho ao meu ouvido
estavas a amar
estiquemos os braços e finjamos
ser adultos
e se tudo isso não fizer sentido
sejamos velhos sem juízo
vai mais um brinde?
não sei se foi de tanto conjugar
acontece que me sinto
averbado
estavas distraído
por pouco não eras
atropelado




Como
quando a seara chegava ao pescoço e ficavas para trás
e te atirei para dentro de um poço e disse: agora nada
e o passeio que sem aviso te tomba e te rasga o joelho
para que é a luz acesa ou a boneca coelha à cabeceira?

Como
te preparei para seres forte e a borboleta na almofada
para te guiar na noite escura agora e na hora certa
te ensinei letra a letra e deixei que chorasses de raiva
porque a vida seria muito longe de um conto de fada

Como
sempre te protegi com a mão
ainda que dissesse
que não
que por um certo e vago momento
a larguei
e que por ti mesma seguiste
e eu sei
que a sentiste como
se sempre lá estivesse








Acordei com a visita do futuro
o que me atrasou bastante...