sexta-feira, 29 de junho de 2018
Tálassa Impossível
há nesta página uma vaga sem céu
caligrafias de sombras de lua germinada
palmas injectadas de irrigações fluviais
no alongamento ascendem veios esverdeados
derrames fundidos de pântanos esquecidos
e os ramos quebrando-se subjugados pelos ventos
do solo virgem as unhas dos pés arados do tempo
restolho de peles mortas pelos ciclos
montes de um gesto desvairado
havíamos nós também visitado as estrelas
e depois o sol caído nas palmas do horizonte
o escalar do fim em epidemias de empalidecer
a imagem crua à volta do pecado
canais de pedra e radiações
aguardando em muralhas túmulos
a imagem móvel transitória dos nossos ossos
porque somos almas emparedadas de berços sem choro
espectrais no topo da pirâmide olhos de vidro
reencarnações de perigosamente possível
em vénias de jade verde antigo
como fera esculpida do centro da terra
também eu fui atirada cometa à vida
sem sopro consolador centelha
para aterrar de pé e nunca mais partir
como eu vieram tantos outros
velhas torres deuses quietas frente a frente
depois um painel quarto mundo
a ponta do lençol a cintura planetária
o vagar de instrumentos sem tocar
instrumentos de cordas trepadeiras
ecoando de beleza de puros tons
em resina pendurado um retrato de compaixão
velas acesas derretendo quartos de verso
minha mãe mexendo ao lume um conjuro
as teias escaladas de vapores e mecânicos relógios
as veias em lacre para nada transbordar da panela
e nós sentados sem vida
como velhas torres que se espiam de tempo
extractores desabando em chuvas de cinza
são os répteis de lés a lés pelas casas de areia
desenhos de espirais e pontos finais
o corpo viscoso fármaco extra terreno
combustível para asas voadoras
asas que não voam porque magoam
são as mandíbulas animais
para nos engolirmos
e de rosto em rosto
estampar o céu de negro
como vagas de pássaros caídos
em gaiolas de sofrimento
e as mãos ramos versos
que espremidos só servem veneno
sexta-feira, 22 de junho de 2018
do estuário do pensamento
a um passo de fé
as pálpebras soltas asas irrequietas
do marfim estátua a pomba à superfície
as horas do vício batidas ao céu flamingo
vulnerável borboleta residente no peito
das salinas da tristeza vieste
emergente da insónia helénica
colónias nidificadas no passado
quente chuvoso o teu corpo holograma
gineceu de uma casa lua eclipsada
o barómetro do peso atmosférico subindo
nossos corpos seios de sonho desencontrado
a sombra descolada dos pés
o sangue trágico mortal encerrado de pandora
a engrenagem épica despojada de paredes de cifras
no epicentro das cidades templos
tudo deixado em segredo para mais tarde
para o fixador de momentos paradoxal
nas areias brancas nutridas de rio
a transparência os ciclos as marés
a biomassa ao abrigo das nossas palmas
ser atravessado por um centauro decapitado
de cascos pesados
quem deixamos para trás
os búzios imaginados da medusa
agulhas abrindo poros nos sentidos
lavrando castelos na areia túneis pontes de água
a ocupação das margens pelas falhas lagunares
é como se caminhassemos sem chão
ou o chão a pele tórrida destruindo a pele dos pés
por isso nos ardemos
deixamos a paisagem do estuário de sentinela
o vidro fosco de uma janela para nenhures
tantas vezes me encontro por lá só
mas não sentindo solidão alguma
respirar o grão desmaiado da tela
uma invasão de onda fresca
o sal em água doce fundindo-me
para ser o que sempre fui
rio e mar e mar e rio e mar e rio
quarta-feira, 6 de junho de 2018
A casa branca
nos anos ocultos o profeta visitou a casa
corredores brancos de portas impossíveis
uma cadeira de rodas abandonada na esquina
e um silêncio de rotina sem habitantes
num espelho de casa de banho
parece que me cortaram o cabelo durante a noite
sonho calvo numa folha de alumínio
ou amianto cancerígeno de uma eterna letargia
rompe no ouvido martelado de obra
a antecipação de uma mosca que poisa
e dos olhos vermelhos fluídos em gradientes de dor
sobreaquecido o ar alcanino sanitário ou naftalino
agarro uma planta uma corda de cortinado
anelados os dedos querem-se inquietos
ergo o braço desprendo-me consigo levitar
fecho os olhos e avanço numa casa de cem quartos
elevador a cabeça de um insecto tridimensional
rasgo o ar em escotilhas de patas de elefante
num sistema soluçante de intermitências
as venturosas pálpebras despem-me de pele
abismal essa paisagem cabide de ossos
a boca válvula para saltar da janela
mas não salto, sou inspirada ao buraco
e a oscilação do corpo reduzido a pêndulo
esfrego-me no sexo que se vai aguando
rasgo o ar em escotilhas de gritos de prazer
para curar a chaga do vagar da morte
a luz cegante das paredes deixa-me sombras
o bolsar do ventre de uma cama sem vincos
para visitar um corpo de coração estoirado
e dar à manivela de um mecanismo aleatório
deixaram-me só neste quarto de tempo
as mãos de uma impotência estranha
apenas esfregam o sexo de tendões emaranhados
para violar cada poro excretor de luz
de membros abertos no hálito da avidez
mas o sentido das coisas não foi arquitectado
astronautas que pisam a terra do avesso
são os olhos que vão e voltam sem começo
as forças esquecidas de recolher alguém
ser a viagem ou o caminho ou os passos
dentro deste corpo apenas se sente fundição
células que se emprestam sem se precisarem
vislumbres tudo pedaço de alma acamada
as moscas erguem-se em coro de candeeiro
uma nuvem negra saída da lamparina dos medos
épico um navio agora a casa baloiça-se de ondas
do soalho soltam-se tacos de outros corpos
grãos de terra lençóis nós de forca
atiro-me ao chão está frio envernizado
ou talvez a superfície áspera da limitação
expulsar-me num último estio sem frutos
como uma oração repetida de espasmos
alguém morreu nessa cama de hospital
meia noite em ponto de realidade absoluta
emergido da terra ardente sem auroras
o último profeta visitou a casa dos cem quartos
para me emprenhar de sonhos e vícios
no abandono desse labirinto de vocábulos
encarcerados num quarto de cem corpos
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