quarta-feira, 6 de junho de 2018

A casa branca


nos anos ocultos o profeta visitou a casa

corredores brancos de portas impossíveis
uma cadeira de rodas abandonada na esquina
e um silêncio de rotina sem habitantes
num espelho de casa de banho
parece que me cortaram o cabelo durante a noite
sonho calvo numa folha de alumínio
ou amianto cancerígeno de uma eterna letargia
rompe no ouvido martelado de obra
a antecipação de uma mosca que poisa
e dos olhos vermelhos fluídos em gradientes de dor
sobreaquecido o ar alcanino sanitário ou naftalino
agarro uma planta uma corda de cortinado
anelados os dedos querem-se inquietos
ergo o braço desprendo-me consigo levitar
fecho os olhos e avanço numa casa de cem quartos
elevador a cabeça de um insecto tridimensional
rasgo o ar em escotilhas de patas de elefante
num sistema soluçante de intermitências
as venturosas pálpebras despem-me de pele
abismal essa paisagem cabide de ossos
a boca válvula para saltar da janela
mas não salto, sou inspirada ao buraco
e a oscilação do corpo reduzido a pêndulo
esfrego-me no sexo que se vai aguando
rasgo o ar em escotilhas de gritos de prazer
para curar a chaga do vagar da morte
a luz cegante das paredes deixa-me sombras
o bolsar do ventre de uma cama sem vincos
para visitar um corpo de coração estoirado
e dar à manivela de um mecanismo aleatório
deixaram-me só neste quarto de tempo
as mãos de uma impotência estranha
apenas esfregam o sexo de tendões emaranhados
para violar cada poro excretor de luz
de membros abertos no hálito da avidez
mas o sentido das coisas não foi arquitectado
astronautas que pisam a terra do avesso
são os olhos que vão e voltam sem começo
as forças esquecidas de recolher alguém
ser a viagem ou o caminho ou os passos
dentro deste corpo apenas se sente fundição
células que se emprestam sem se precisarem
vislumbres tudo pedaço de alma acamada
as moscas erguem-se em coro de candeeiro
uma nuvem negra saída da lamparina dos medos
épico um navio agora a casa baloiça-se de ondas
do soalho soltam-se tacos de outros corpos
grãos de terra lençóis nós de forca
atiro-me ao chão está frio envernizado
ou talvez a superfície áspera da limitação
expulsar-me num último estio sem frutos
como uma oração repetida de espasmos
alguém morreu nessa cama de hospital
meia noite em ponto de realidade absoluta
emergido da terra ardente sem auroras
o último profeta visitou a casa dos cem quartos
para me emprenhar de sonhos e vícios
no abandono desse labirinto de vocábulos
encarcerados num quarto de cem corpos

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