quinta-feira, 20 de setembro de 2018

sarabanda


pegaste-me na mão e mergulhamos pela febre
como grãos de areia perdidos na escuridão
dos céus que revelam galáxias e criaturas
que dormem na distância das paredes do aquário
tacteando-nos como pontos de fuga e gritos
eu disse que te sentia aflito de trevas milenares
ou apenas o sopro de uma morte próxima
colmeias de genes derradeiros corpos entregues
as leis de sedução do mundo transitório
que nos destina à duração de um sono
a manta do desgaste é um tempo monstruoso
borboletas de voo olvidado numa mina de espelhos
depois subimos pelas escadas de caracol
de teias e zumbidos e cores inomináveis
fragmentos deixados debaixo dos pés
estilhaços de vidro das paredes de um palácio
ainda nos podemos agarrar pelas mãos disseste
e rebentar de voos mísseis de destruição
cada quarto um jazigo de seculares passados
e cadeias montanhosas intransponíveis
combateremos a sombra da cobardia da vida
os esqueletos depois das bombas caídas
dançam despidos de fantasia e só inquietação
painéis de controlo das salas abobodas
para das profundezas de húmidos musgos
assim de mansinho penetrarmos no mundo
sonharias automatizado se os campos mentais
fossem inválidos sonharias com a face oculta
e a empatia dos números da própria consciência
naves tripuladas de seres vívidos acopolados
que se despenham tridimensionalmente
para morrer na praia um lagarto erecto
homens escoltados por animais mecânicos
de túnicas frívolas a flutuar  sem matéria
um edifício incrível que vagueia atirado à luz
e a grande noite da vida encaracolava cerrada
das nossas bocas peixes aves árvores e frutos
uma planta exótica um cão de água pulguento
e a terra a ser colonizada de miragens
cintilando efervescências acústicas
nossos corpos arquitectados de raíz
e o fundo do mar virado do avesso
estacas em forma de estrelas e flocos de neve
para nos misturarmos numa tempestade
e metamorfose de um céu tigrado de dor
insustentável

terça-feira, 18 de setembro de 2018

campos magnéticos


do espelho corpos de néon
fixos na linha de um peão de ponta de aço
para a distinção severa da entrega da luz
rodopiar na febril entrega das torturas das paredes
lacraus sem morada espiritual
um quarto para dormir outro para contemplar
confidências de um aparelho estereofónico
que repousa uma ponta de cigarro lambido
a extensão do espigão das metrópoles
e das acústicas do pavilhão da morte
escorre nesse decote que desce até ao sexo
declinado na censura de uma fome cavalar
sexo roído de traças e falsos santuários
do interior vandalizado por falsos profetas
a devoção melancólica  na hóstia ácida
a cruz invertida para trepar pela coluna
de matronas desvirtuadas de bússola
tiranizado de sedução
abandono me nesse vagão corpo
da perda do mundo restos de coração na balança
e pornografia para dar luta ao punho
olho me de silhuetas de papel de seda
os bicos dos seios traços negros
e vendas nos olhos para o precipício
inflamado de contra corrente
de tempo latente
e formidáveis estradas de alcatrão
alcatrão em chamas derretendo-me
procurando em todas elas, a deusa mãe
do sentido latente da erecção sincrética
do curso livre da decadência

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

materna loba


na linha mais ténue
a manjedoura mão de um vulto
que por aqui serve sem doma
caminhando de andas em terras de silêncio
levantando dos tempos de um parto
onde havia prescrito um inferno ardido
sinto na cabeça os ramos oxidados
das vigas das fábricas que deixei para trás
os afundares do oculto que aqui dormem
torturado por não pertencer
bodes velhos ressuscitados
das povoações em ruínas dos vales
a cor escura da armadura dos templos
musgos viscosos tentaculares
no timbre que se esveia por entre o folhear
abro a palma
para acolher o outono do pensamento
e o arauto de novos tempos
que carecem dos sinais da passagem
eu sou um monumento de silêncio
as raízes apodrecendo para me libertar
a geada a chegar
as últimas folhas de seiva lírica
e comovo me com a beleza do coro
esse berrado desafinado dos outros
envolto num halo histérico
que só eu posso fundir em reflexos mágicos
vomito essa pneumonia aberrante babilónica
os pulmões escancarados ao fervor do desabafo
para acolher a noite fria de rachar
o frio cortante de me desintegrar
vivemos nesta hora de fogo sem calor
sôfregos de labaredas de ramos sem faia
a linha mais ténue e o fumo espesso
em que nos convertemos
salvo as crianças de dentro
gritam em coro urros de prazer
para estrumar a terra em pleno inverno
de fantasia e ludos de inocência
compreendo agora as ânsias de querer envelhecer
lido me como animal máquina
e cavalos em marcha para o preparar das coisas
que se entregam aos ciclos
de pés de veludo e impulso
devora me se me encontrares doente
rasga me a carne ao teu alimento
deita me os olhos de cão esfaimado
procura me o osso mais afiado
estou como febre para o imaginário
e o ar completamente esgotado

e desses olhos sentinela
a terra revestindo-se da pele materna loba


quarta-feira, 12 de setembro de 2018

A linha mais ténue




Estava sentado de frente para a janela. Agora a sua cabeça estava leve. Depois de chorar todas as mágoas conseguia ver o fundo do poço que mergulhava a dentro. As paredes viscosas, o odor de águas paradas e sombras. O quarto estava inundado de um tom acastanhado. A luz feita de partículas que pairavam com a suavidade do seu pestanejar. Como o silêncio era agora confortável. 

Foi acordado pelo passar de um vulto, duas pernas andas que atravessavam a sua janela. Levantou-se para lhe acompanhar os passos. Passos lentos e pesados que pisavam as couves abandonadas ao sol. António. Lembrou-se do seu nome. António abriu a boca para espantar esta figura mas dela saíram dois pássaros que num ápice aterraram nos ombros do outro. Maldito, demónio de cata ventos, presos aos pés os vermes que os olhos hão-de comer. E voltou para a cadeira de costas curvadas sentindo de novo os olhos inchar-se-lhe de desgosto. Maria Antónia não havia meio de regressar e o estômago começava a roncar. Se ao menos tivesse deixado café feito. Raios da mulher que não serve para nada. Vadia, bem levado que fui. Minha mãe bem dizia que aquela só para roupa velha. Os restos que a terra há-de comer.
O vulto parou no meio do couval e abriu os seus braços paus de madeira. A camisa de farrapos esticou-se ao vento. Agora outros pássaros partidos de outras bocas vinham aportar nos seus ombros. António observou-lhe o olhar. Inquisidor, baço e fixo no seu. Arrepiou-se e voltou-lhe as costas. E logo sentiu esta presença mais de próximo. Como se a sua respiração falasse ao seu ouvido. Aprontou-se a tentar perceber o balbucio. Amanhã por esta hora ela estará dura e seca deitada sobre a cama. Pegarás nela ao colo como menina que foi e subirás o monte para entregá-la ao precipício de onde todos nascemos. Essa é a tua tarefa de amanhã. E a respiração susteve-se deixando frio no seu lugar. António levou a mão ao ombro, doía-lhe. Uma dor mais fina que muscular. Uma dor de alma que se expandia do epicentro da omoplata. Olhou para a cama ainda enrugada da noite passada. Suspirou. Chegara então a hora de Maria Antónia e a sua? Que ficaria por ali a fazer arrastando-se de chinelos e roupão pela casa? Olhou em volta. O quadro da menina vestida de azul nunca abandonara a expressão de alguém que tristemente espera por alguma coisa. No seu ventre um garrafão de vidro vazio. Aquele olhar era a casa, as paredes, o tecto, as prateleiras de poeira, a porta sempre escancarada de ninguém. Como manda a tradição, António carregou Maria Antónia no dia do casamento desde a ombreira da porta até à cama. Três tristes metros de tábuas já nessa altura gastas e levantadas. Sentou-a na cama e a primeira reclamação apareceu Quase que me deixavas cair homem, que falta de jeito. Bastou uma benção do padre e um sim amiúde que tudo mudara para sempre. A menina que corria os pastos descalça e seminua desaparecera, a menina dos cabelos desgrenhados e piolhosos de jeitos selvagens desaparecera. Nasceu nesse dia Maria Antónia, carrancuda, sempre cheia de dores e arrastos de maldizeres. E os olhos de António encheram-se de lágrimas, poças que se transformaram em poço, poço que se transformou em lençol de água. António sofrendo subterrâneo e perguntando a deus todos os dias pelo sentido das coisas simples da vida, que das complicadas já se sabia serem mistério. Os anos haviam sido emprestados ao nada. Couves, porcos, galinhas, coelhos. E nada. Mas a juventude sim, essa sim, eras uma rica peça também tu meu velho, eras eras. Preocupava-lhe agora a tarefa. A mulher havia engordado quilos e quilos de farinha, as suas pernas fraquejavam e as costas dobradas ao chão mal suportavam o seu próprio peso. Leva-la ao colo a ela mais ao peso da morte, que sempre nos acrescenta algumas gramas, parecia-lhe uma tarefa impossível. Coçou a cabeça procurando ideias. Não podia falhar. Os pedidos dos vultos eram absolutos e a eles falhando o castigo seria aterrador. Para além do seu imaginário de velho das terras do abandono. Leva-la ao colo, mas ele não disse que eu teria se caminhar a pé. A égua. Sim, a égua poderá levar-nos aos dois. Ela ao meu colo, sim ao colo, como disse o vulto, ao colo. 
Ao lado da casa a égua mordia fiapos de palha. António passou-lhe a mão pelo pêlo. Estava velha também ela mas seria capaz de cumprir a subida. Tinha esperança. Assentou-lhe a manta e o arreio e deixou-a pronta com a cabeçada e o freio nos dentes. Esta malandra gostava de correr. Se gostava. Era como eu. E riu-se. Uma gargalhada que espantou a égua e a levantou no ar. Calma bicha, calma contigo que amanhã temos uma longa subida. Agora descansa, isso descansa. Uma última palmada no dorso e saiu para a eira. Olhou em volta. Do outro lado o vulto ainda lá estava espiando-o com uma serenidade que o incomodava. Os demónios são santos na espera. Santos que me ajudem na tarefa. Na tarefa. 
Home onde tás? Ajuda aqui, que inferno, não serve para nada este velho. Maria Antónia chegara trazendo uma cesta cheia de couves. Couves? Mais couves? Mas com tanta couve seca no quintal para que queremos mais couves? Maldita mulher, serás sempre maldita. Maria Antónia pousou a cesta e procurou pela bacia da água para se refrescar do calor que trazia. Pois por isso mesmo, aquelas estão secas, deixaste-as secar porque nem para isso serves, para as apanhar, olha alguma vez, tu levantares-te dessa cadeira. Estas deu-mas a minha irmã. Olha pra isto como são frescas, até brilham. 
Brilham brilham, os venenos do Quim Zé, pois brilham, tu mulher..Depois lembrou-se da tarefa e calou-se. Maria Antónia sempre na retaguarda da resposta para continuar a zaragata estranhou Não dizes nada? Ui tás muito macambúzio hoje, mas que bicho te mordeu? Não digas, deixa lá. Também nunca dizes nada de jeito. Olha ajuda aqui nos talos. 
António não respondeu. Voltou lá para fora a contemplar o dia que se recolhia atrás do monte. A tarefa, se a égua me falha tou tramado. 
Olha lá, não viste se o carteiro veio? António olhou para o vulto e pensou Veio, mas as notícias não te vão agradar. 
Nessa noite jantaram pela primeira vez em silêncio. Maria Antónia que sempre nada lhe escapava pressentia alguma coisa ruim mas não era capaz de perguntar porque isso seria dar parte fraca. Ela havia de descobrir, oh se havia. Foi para a cama com as agulhas e o novelo mas não tricotou senão suposições. Cansada da caminhada acabou por adormecer. António trouxe a cadeira e ficou a velar-lhe o respirar toda a noite. Perguntava-se se o acontecimento se daria durante a madrugada ou se pela tarde. Ninguém morre ao meio dia. Quando o sol acordou Maria Antónia estava morta. Era preciso chamar gente, era preciso preparar-lhe a despedida. Era preciso que todos viessem e todos partissem para que António pudesse cumprir a tarefa longe do olhar dos outros. E foi, vieram as choradeiras e o padre, as vizinhas e a irmã e o Quim Zé. Vieram até as galinhas e o sol começou a dar sinais de despedida. António agradeceu no seu fato de luto encardido e quando finalmente o último virou a esquina do monte aprontou-se a ir buscar a égua. Azar dos azares a égua estava tombada. António ajoelhou-se em desespero. O tempo urgia por uma solução. Ainda se fosse monte abaixo...Correu lá fora como podia e de frente para o vulto tentou gritar-lhe. Da sua boca saíram três pássaros que aos ombros do vulto foram aportar. Voltou para dentro de casa e uma vez mais olhou para Maria Antónia Maldita, até na hora de morreres trazes arrelias. E agora? Que é que eu faço? Tentou levanta-la mas os seus braços fraquejaram. Não podia. Olhou em volta com as mãos na cabeça limpando o suor da testa de nervos. Não há outra solução, nem que eu morra também, esta é a minha tarefa. Só eu posso cumpri-la. E numa nova tentativa conseguiu ergue-la nos seus braços e dar um passo. O peso era tão grande que quando moveu a perna para o segundo passo caíram os dois no chão de tábuas omissas. Foi então que Maria Antónia abriu os olhos e disse muito baixinho Meu amor, cuidado que ainda me deixas cair. António olhou-a nos olhos e começou a ver uma menina, depois uma criança e por fim um bebé. Era como se estivesse a ver toda a vida em retrospectiva desta criatura ainda tombada nos seus braços. Um sentimento de ternura inundou-lhe o corpo. Deitado embalava agora um bebé e sussurrava-lhe uma melodia de embalar. O vulto aproximou-se da janela espreitando. Abanava a sua enorme cabeça, uma bola de panos e palha com dois grandes olhos que sorriam. Aproximou-se do ouvido de António e respirou-lhe Luís. Chamas-te Luís e acabaste de casar com a Maria Luísa.