segunda-feira, 19 de novembro de 2018

a lágrima antes de partir



espero as folhas que aguardam a queda
a mão estendida aberta que acolhe
a alma pendurada
e uma pedra no charco ao sol
sinto as gotas pendentes no final do ramo
as árvores trepitam a neblina do sonho
a noite caindo de violetas
e xailes que nos cobrem de morte
na atmosférica muralha da dor
o instinto é um gato malhado à chuva
do tempo desumano
o túmulo fecundo para o choque amortecido
das gotas que ternamente se entregam à terra
a vulva vulcânica dos infernos aberta
os ramos lá em cima sinapses de luz
bárbaro o vento suspenso sôfrego de encontro
as pedras turvas do caminho bestial
forjadas de espelhos e asas ressequidas
iradas, iradas, crepita a alma quase extinta
esse homem muralha que habita na sombra
em guilhotinas de fósforo e incandescência
ao arrepio da chama triangular
a vénia mental da roda vida
dos arcanos torres esqueléticas gradativas
naipes de nós reais explodem das folhas antes de caídas
para a sementeira da saudade polarizar
tenho já saudade antes da partida
o chão que tantas vezes atravessamos mais
na intranquila febre do fastio
do caminho feito sem ser sentido
depois lá em cima móvel azul ou cinza perfeito
as coisas azedadas da vida mecânica
os bagos que encerram esse inverno de casulo
ou a partida precoce da luz
agora uma janela para o tecto em céu aberto
a respiração fotossintética da ruína
as relações carnais do grande golpe ou sol escaldante
que se recolhe para a geada saliva
e o revólver é a boca que se me abre de louca
balas no tambor para os serventes dos ciclos
feitos de veios e seiva e nutrientes que servem à morte
ou à renovação dos punhos cerrados
que se abrem a cada novo golpe
tenho os punhos cerrados sufocando a folha antes de caída
porque tudo é parte e em parte a queda...
não caio dessa árvore ou o sonho não se desfaz
e a minha mão não agarra
a tal partícula que em tudo é onírica


sexta-feira, 9 de novembro de 2018

ideias Laikas


do tecto uma placa de mármore solta-se

lá em cima a cobertura abre-se para uma outra casa
muito mais extenso esse espaço de compartimentos
de luz e materiais novos e um corredor gruta de pedra
uma catacumba iluminada por tochas de vermelhos
água que escorre das paredes e animais rastejando
ergo-me pelo buraco para conhecer esse desconhecido
se o paraíso estivesse acima de nós aqui seria outro inferno
e nós nunca estaríamos na terra ou eu na minha cabeça
não há angústia ou terror
esse lugar mistério que uma placa de mármore descobre
como o tampo frio de uma campa ou um escalpe

depois as horas afastam-me derivando pelo esquecimento
dos pormenores dos odores das texturas dos corpos
outras vezes visitamos o passado, em vez de espaço, tempo
uma casa de espelhos num circo de talentos e o poço da morte
todos os caminhos vão dar a essa espiral de vácuo
para me dizer que sou um buraco e a toda a velocidade
o veículo não se espalha para fora do circuito
ontem tive a noção de me chamar de cobarde
não chamei

o que me quebra as algemas mas atira-me ao espaço

aberto um coval para não sepultar nada
há um coveiro que fuma cigarros de palha e aguarda
jazida e fria a vida que nos encerra um dia

parasita, velocípede, a fome e a febre, a peste e a carne
a vida e a morte em colisão

rumo às estrelas, Laika corre atrás da vida no espaço
a nave descola, animais irracionais inteligentes partem
afinal basta fechar os olhos
e o Cosmos conhecido de antes
a tripulação electrónica dos percursos oníricos
interestelares corações ultra sofisticados
a génese de corpos operários
sobre a linha do equador
a precisão dos próprios astros
inflamados

rumo às estrelas Laika
fecha-se o tampo, o frio regressa à escuridão
e o corpo explode de milhares de partículas
estrelares







segunda-feira, 5 de novembro de 2018

na orla interior



as estrelas semeadas dentro da cabeça
alguém retrata da lua do aconchego de uma cratera
alguém sentado na lua inundado de toda a solidão
depois do abandono da nave o pulso quase morto
esse coração piloto testemunha a distância
uma caixa-forte para proteger o universo
vigilante dormitando deus sentado
aquela mancha um mar profundo
a longitude de águas congeladas
camadas de poeiras de rochas dos hemisférios cerebrais

brilhando na escuridão como pequena estrela
plataforma de homens vivos
uma grande queda
ecos de radar sombras que trepam o buraco
plantadas à beira de um penhasco ao nada
nossos momentos lá em baixo
saídos da escotilha da memória
catapultados por vigas mestras nas costas
contra as correias da dor vaga e impessoal
das noites que continuam a abalar o mundo
e o grande acidente do amor

inspiro o odor salino da luz na sua forma química
uma praia de inverno e seres agoniados esvoaçantes
as cavernas seladas pelas ondas de rebentamento
e os fantasmas no topo do farol giratório
a súbita discussão interior da mutação dos peixes
um mundo sem paredes na cúpula da lua
onde a minha voz quer subir a ravina
nesse laboratório de silêncios

uma célula num frasco morreu do desmoronamento
a alma desprendida do corpo regressa ao universo
para vaguear atipicamente no meio de nós

as mãos brancas os olhos escuros
instrumentos de vidro
o sangue pulsante aos ouvidos
transpirar o fogo cerebral
subir a ravina correndo astral
cambiante dos restos da humanidade opressiva
animal esventrado atirado ao espaço
correr para cair de cansaço
o corpo em estoira a mente cessa
e finalmente sentir a face da cristalização
do recongelamento do gelo
o estalar dos estratos rochosos os estratos do gesso
o odor específico da batalha mortal
mesmo para um homem morto
mesmo tarde demais para um homem morto

e o sentir do cérebro chicoteado
imagino que depois do enterro as ideias continuam
vejo-me sentado na areia diante do mar imenso
acho que nunca me sentei sozinho diante do mar imenso
nunca me encarei diante desse mistério
sempre a reclamei mas nunca de facto senti a solidão
e o azul cristalino da mortalha
ou o buraco imenso a falha de alelomorfos e isomorfos
e recessivos letais e todos os criptogramas
de um homem inadaptado
ou encerrado no labirinto da alma