quarta-feira, 19 de dezembro de 2018
Entre horizontes
encontro esta manhã sem planos de partida
no intervalo fundo da vida
navegante de túmulos e abismos
uma cortina de vidro chuva
uma espécie de aura tapeçaria
lanternas de papel e vestidos brancos
suave o conforto do espírito de passagem
imóvel eu dentro de ti
na polidez refinada da pele acabada de nascer
a beira de um atalho não mapeado
a nota martelada de um piano
visões nebulosas sem serenidade
mas tu dizes que a viagem é longa
de que tens medo de mãos atadas
no despertar de uma hipnose carregada
os sentidos adiantados de um relógio
o ar frio e cristalino dos portais do ócio
fecho os olhos resta a sensação
no dialecto do vale inteiro sem ninguém
um lugar esquisito um presídio a céu aberto
a boca sinto-a é um porto terrestre
onde ardem ao sol as carcaças dos pássaros
na resposta murmurada do agora
naufragos que se devoram de pé
na hora mágica de um idioma de cristal
batem como tambores em desafino
as ondas no eco da própria destruição
a noite vaga sem descanso refratada no meu peito
mordi o astrolábio para mergulhar em ti
e as palavras e os gestos parariam no eterno
extrairmo-nos como um minério tão fundo
ou um mistério que o mundo criou em pétalas caídas
tenho a impressão de ser um mosaico negro e húmido
lótus dragão unicórnio incêndio
parecia ter-me encaixado na submissão da moldura
acima dos telhados da loucura
mas tu dizes que a viagem é longa
que há tempo para parar de sonhar
uma mulher criança no eco do cravo
no ventre de tudo quanto é belo e vago
mordia-lhe esse corpo serpente fóbico
perdido nos claustros ou deixado à deriva
a realidade à gradação pagã da matéria universal
e há qualquer coisa de frenético que não me deixa partir
segunda-feira, 10 de dezembro de 2018
descensus ad inferus
dos óleos santos tocar no ponto inflamatório
o laço impuro para a renúncia voluntária
onde um lugar relicário de instrumentos operativos
o sopro no plexo nervoso à recepção dos dias
e a língua seca que passa por entre as mãos
íman o sinal da cruz das seitas de perdição
o resgate da alma na demanda e a resistência
como um carvalho erecto à erosão do tempo
a mulher cisne negro na barca que atravessa
esse pântano de macieiras e enlouquecimento
extático
a amnésia de outro mundo dos crepúsculos
para a reclusão da floresta
e o reduto temporário da solidão
caminho tão lento que caio na eternidade
à beira dos passos os penhascos da contemplação
catalepticamente na doença das fadas
no metabolismo sepulcral das serras
e todo o corpo fenótipo de autodestruição
letargia teriomórfica
e o reflexo do espaço límbico abate-se nas têmporas
caixa ou gaiola para uma espécie desplumada
ou o retorno migratório a casa
a árvore cósmica habita-se no peito
para o flutuar dos ventos
ou ave voando no limbo
tenho habitado nos anéis de saturno
e a epifania da rena tomada pelo transe
transgredir o natural híbrido ou ébrio
a fantasia o santo graal ou uma macieira de carne
depois a epifania do sonho num grito
devorar uma mandrágora no jardim dos opiáceos
o corpo dança fornalha mítica
tenho fogo na cabeça e o sono perpétuo
de uma deusa desencarnada
e a demanda inacabada do resgate da alma
segunda-feira, 3 de dezembro de 2018
exilados da terra
um dia serei cinza e vento barítono
e do meu lar crescerão feras
e as árvores cairão sobre grandes pedras
das janelas pontas para o céu alongando-se
para que se me partam os ossos
uma ave despregada e o sol em vermelha dilatação
o animal arqueja
no último degrau depois de subido
a cratera mortal do último sopro
as vozes agudas dos pássaros gente em volta
nessa corrida contra poente
o rugido constante turbo sombrio
nenhum ser vivendo mais nas entranhas
a flauta serpente que anuncia o final do tempo
o lugar da cabeça à mesa ou um prato vazio
e o animal eriçado do azul mais duro
o palatino das estações orbitais oculares
abate-se-me como uma floresta despida
a ferida injectada de dor profunda
no zumbido das bobinas de tortura ondulada
são árvores negras
fios de seda electrificados
fitas de plumas em tubos metálicos
partem do funcionamento pantanoso dos órgãos
ao travão do impacto sectorial horizonte
capaz de gelar o sangue
um suspiro fertilizado de cólera
no equilíbrio do caos bioquímico
bonecos fleumáticos na poeira cósmica irradiar
absorvermo-nos muito depressa
o passageiro na cabine da mente
animal gentil pendente nas lajes onde cai a chuva fria
confessar-se o terror no colo prateado da lua
de tudo o que fica para além da vida
um disco rígido uma arma fina de agulhas
a chuva cristalizada vagarosamente
no limite somos sobreaquecimento
e a noite apenas o começo
acabada de cair do ventre
dos ramos dos mantos das cortiças
o ar carregado de radiações oníricas
e o estalar dos tímpanos
nas paredes montanhosas do peito
redes de aço em trapézios de beijos
uma garrafa atirada ao pavimento da alma
para o ruído revirado do silêncio
apunhalamos as sombras
os rostos magros da morte
para se rasgar o tecto e os tecidos do real
as mãos abrirem o corpo em passeio
a coagular o fosso das horas
gárgulas guardiãs das paredes do sonho
e da metamorfose do nosso amor
a cadeira baloiça desengonçada nos braços maternos
para embalar a saudade
e o chão range de chocalhos
para uivar as fronteiras
a pulvorização sulfúrica que erguemos
depois de tudo
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