quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

o cristo do avesso



infringe a imagem da fúria
e tudo o que fica no arrefecimento
quando apertas a mão na mortalha
e o esgar no rosto para a contracção do ódio
a consciência clara e fria da água
que escorre por esses lençóis
o soalho viscoso do choro dos peixes
que te assoma nos olhos
uma casa apeada na escuridão
onde só os passos e um cata vento metálico
do ventilador por onde respiras
um lugar simples para ficar
onde só se consegue dormir
as pedras no cumprimento do solo
que tu não podes mais atravessar
o tempo solidificado em âmbar
num quarto cinzento e limpo
a lanterna que atravessada pela noite
te procura nos olhos o sinal vital
o acordar dos espíritos deixados no limbo
silenciados na cova funda do peito
e um saudade triste e amarga
da força que tinham as palavras por dentro
agora registo retido num álbum
e espaços vazios dos que não se recordam
sobre a mesa uma colher de pau
um pote de vísceras em sal
a pele pendurada de avental
a porta escancarada levantando cabelos de teia
e os pés sempre de arrasto seguindo te os passos
os passos que imaginas percorrer pelos corredores
que acolhem outros gemidos outros terrores
viras o rosto na almofada
na convicção de um lume apagado
e um conforto que não chega
apertas o rosário na ponta dos dedos sangrados
para que as feras passem ao largo
e o tremor da terra em desabamento
não te chegue com a agonia da dor
as pernas amarradas os braços presos
as janelas do vento e do sustento do mal
emoldurado num esqueleto de ave fedorento
o cenário da ruína de um velho sem vista
que encontramos do lado de fora
uma bengala sem imaginário
e uma capela sem relicários
a fina casca de ovo porcelana para o ritual
de se chegar à medula da consciência gravítica
e do desfiladeiro da vida
aqui se apita de ruídos mecânicos
a locomotiva bafienta do arrasto
e baforadas de oxigénio em artifício
inundam os pulmões de preces para o fim
fechas os olhos para o fogo do movimento
quando dançavas nos braços dele
o vestido branco de pétalas de pêssego
aqui se apitam as máquinas da morte
e os corpos dependentes de soros
para o prolongamento do desespero
nesse limbo que te retém como um castigo
ou uma tinta que se esbate brutalmente contra a parede
do teu ventre





sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

murmúrio do belo


a síncope cardíaca num manto de espuma
por onde se é absorvido como uma força
ou lugar nunca atendido
o culto da imagem própria entorpecida
joelhos e mãos estendidas a altares vazios
e o acto violento do coração apeado
soletrar o caminho onírico lúcido
um mundo sempre temporal e nervoso
nativo dos confins dos ossos
havia prazer em trocar me as voltas
no desafio de superar a revolta do mar
a água sempre a água crescendo na boca
a tua presença holográfica de passagem
deixando de rasto uma inquietação antiga
liberal esta paz que depois de acordar fica
uma luta sem opositor ou um quadro sem pintor
a massa que corre ao exílio dos espíritos
lugares de pessoas que foram exiladas do corpo
pairam em solidão pelos cantos dos rochedos
a realidade pulsátil patente nas palavras
que ficam dentro da gente
numa precipitação de chuva que não molha
e momentos de euforia que não sentem
uma cartilha fisiológica de animais desatentos
os peixes deitam-se na areia... adormecem
as escamas secam as guelras fecham-se
a espinha agora consumida pelo sol
para deixar uma presença subtil na areia
que na primeira vaga de onda se desvanece
assim acontece com as carcaças dos barcos
e com a vida dos homens
só as conchas, escudos, búzios, pérolas
uma convulsão reversível dos ciclos
seres que se assumem objectos
do tempo mais longo além da negrura
comprimido numa constelação rítmica
a curiosidade sempre viva a consciência nuda
uma crosta de libertação uma viagem sem termo
prenúncios de vagas estrelares
amor e inspiração a obra lenitiva da luz
e outros dias virão




terça-feira, 15 de janeiro de 2019

a noite mais longa


o mar de arrasto
e o palpitar do anoitecer ancorado
viajo descapotável na asfixia
a nu a fantasia de um nevoeiro salino
abrindo paisagem de arbitrário
na vassoura antigravítica
na bigorna do ofício aéreo
para um mapa mundo inquieto
desenho de rasgo na plataforma sem estações
a planura dos assobios
tudo em mim ecos de corpo celular melancólico
recolha de imagens que pesadamente me servem
ou o peso de um pássaro sem asas
trago os olhos cansados na maioria dos tempos
e o arranhar da letra rude ou da raiva balística
tudo animado de animal ferido
a mão peneirante infernal
o abismo solene do teu olhar
são pedaços de alma em vénia
para uma alcateia de estrelas mansas
vejo a sombra dos telhados em escama
a mácula funda abissal dos homens
ou a fecunda paz das searas
como o imóvel vagar das rugas no rosto
aos espelhos dos lagos das fontes lá debaixo
diz que fui um ângulo inesperado
exasperado de aflições mundanas
o calvário foi o ventre das mães in vitro
agora sombras aninhadas nas paredes
o mundo florido de raiz débil
o mundo febril de lábios gretados
o espaço vítreo do pensamento derrotado
as pálpebras abertas ao espaço

fica a mais fina das flores colhida lá no alto
secando entre as páginas do caderno

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Trago na mão um totem


acordar do torpor do ecrã 

nos bancos esculpidos de pedra
a silhueta na transferência de nadas
e o abate dos silêncios
austeros e distantes nos cremos
um purgatório de pele e osso e saliva
vejo o caminho varrido pelos passos
e o vazio dos infernos de dantes
um suspiro espalhando as cinzas
e é possível desvanecer. desse suspiro
as válvulas assinaláveis da vida
os entretantos parasitas ávidos 
do espírito estilhaçado sem autópsia 
escutar se o lugar do abandono
o berço desse órgão por nascer
um quebra ondas sem mar
e a asfixia de um pedaço dilatado
que não se conhece do outro leito
a alma perde se de corpo em corpo
agrilhoada de estranheza e febre

e é possível escutar se o desapego 
tão subtil como o rasgar do fio da seda
e o desamparar da terra
de não haver retorno do teu peito

O desespero 

Quero acreditar que trago na mão um totem, talvez uma caixa de fósforos 
Vejo a espiral abismica da porta aberta 
a caixa que a morte dela não encerra
vejo nos a todas escoando sem mais presença 
E sonho lúcida nesse peito
porque abraçar te sem corpo 
porque abraçar te assim depois de morto