quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019
Os pregos da cruz
Seguimos os pregos.
Contemplam-se as planícies do tecto
o tecto que acompanha a medula
de máscaras insubmissas
a noite roxa dos limites do empedrado
o charco das aves da madrugada
imitando-se o feliz
Estradas de espelhos para morrer
nesse denso breve prematuro
as ruínas erguem-se à minha volta
levantam-se como sóis de madrugada
caminho por ripas de sonho débil
a falta de luz na pele vítrea
Um xaile ao horizonte cobrindo-o
casas desamparadas em devaneio de sangue
o teu rosto do amanhã para depois
as saias rodadas ao vento redes do mar
apanha-lhes o sexo a volvição do mundo
os seios trovões rígidos da secura do sal
choraram no teu peito homens adultos
ossos de cristal para o mar a vulso
e acima de tudo a liberdade de partir
Pelas alamedas do crânio a dentro
minas profundas escavadas larvadas
para as alturas o coágulo do mundo
cães ferozes do estilhaço da carne
e pontes para a loucura
Sem ponteiros de relógios de parede
o enforcamento à beira do horror
tenho em mim a lama tecida triste
e o ruído da ferrugem e dos corvos
Deixei lívidos os lençóis que nos rasgaram
as linhas do rosto
Às vezes contesto-lhes o real
ou o arrombo do espírito por devastação
ou o pior do ranger dos dentes
E a manhã nasce como um aspirador
com a possibilidade transnormal
os dedos trémulos a um palmo de sonho
Afeiçoo-me
Há gente que morre por menos.
as serpentes da insónia guardam em espiral
os mistérios de nos extrairmos de dentro
vejo cadáveres flutuando no plasma interior
e o fim ilusório dos crepúsculos
Eu sou a membrana triste e trémula
com que do cimo do parapeito contemplamos a terra
a bílis do dia que ao dia torna
regurgitar de náusea as têmporas melancólicas
para aceitar as ruínas da lonjura
A noite monstra.
quando estás fora do teu corpo
e houve tempo íntimo para flutuar por céus de zinco
Houve a tarefa de plantar a lucidez
ou a pior das pestes no coração
Eu preciso de repousar na cabeceira do demónio
esta necessidade desossificada dos grandes restos
e a liberdade adormece agora
para o nada do tecer do crânio
e os instrumentos da rara felicidade exercerem a sua labora
A aproximação dos orvalhos chorados
cobras percorrendo-me o corpo
em parafusos de ânsia
o corpo encardido de excessos de luz
porque nos vence a teima do tempo
como aqueles girassóis da infância
uma ventosa para alma para o derradeiro fim
A noite de uivos incessantes
aqueles espaços ósseos
os membros espartados entre os dois
e losangos extremos de extrema unção
O corpo desaba no chão frio da cela
em duelos de maus tratos e toxicidades mundanas
O tempo vomita-se de sangue
a penumbra é um canto íntimo onde me recolho na alma
para me sacudir dos compassos do ventre
e bater-me no desastre da desintegração do meu último átomo
Os próprios ácidos do estômago para a desintegração da dor
e a sedimentação do ser
A mão trémula nos ferros. Agora pregos
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019
Todos os dias morrem pessoas
A minha avó chama-me nos sonhos. Outra vez.
Puxa-me pela mão para a casa do forno.
O forno está frio, a casa tem teias de abandono
e talvez ratos pelos buracos de companhia.
Era uma casa grande. Foi-se tornando só.
Os armários, as louças, as chávenas pintadas de flores brancas.
Quando ela penteava os cabelos longos de cinza.
Eu assistia como as crianças assistem ao que ainda não compreendem.
Era a morte que ela penteava. Eu assistia ao futuro.
Talvez nenhuma outra casa me tenha marcado tanto como essa.
Como um ferro marca as costas.
Depois deitava-me naquele quarto de metro quadrado.
E olhava pelo janelídio que dava para o pomar.
Pomar? Seriam maçãs? Ou pêras ou laranjas ou loureiros.
Na eira secavam as pevides. O pão não crescia no forno frio.
Minha avó era religiosa, eu não.
No dia em que morreu senti tristeza pelo meu pai, no ciclo
seria o próximo. Minha irmã disse-me o mesmo.
Eu senti-lhe as lágrimas correrem me minhas.
Abraçamo-nos como se abraça o sangue para a vida inteira.
Foi a primeira a morrer da geração que conheci em vida.
A primeira do nosso sangue.
Quando penso nela sinto-me descer à terra.
É a descida do corpo junto à campa.
Não sei como viveu tantos anos só.
Junto à televisão e à águia empalhada.
Aquela águia causa-me arrepios.
Diz que o meu pai precisou de banhos de ervas. O cobrão.
Era assim naqueles tempos. Outrora, bruxas.
Quando visitei aquela casa no dia da sua morte as molduras apodreciam
de pó na mesa redonda do centro da sala.
Todos os anos ela coleccionava um novo retrato nosso.
Doeu-me o passado ali esquecido.
A escuridão dos quartos no dia do funeral.
Era uma mulher bruta, gorda e à sua maneira terna para as netas.
Visitavamos a casa uma vez por ano. Depois no lar nem isso.
Uma vez visitei o lar. Ofereceu-me uma camisola e um anel de prata.
Era a sua maneira de pedir atenção, visitas para a solidão.
Não a visitei mais.
E depois há o jazigo.
Que é afinal uma família partida em dois?
sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019
esse trémulo pulso
a luz que pisca na intermitência
esparsa depois numa imanência boreal
a escada de corda por onde trepa a alma
e a primeira carruagem do embate:
agora rasando o horizonte próximo do frio
cabeças de nós dando um salto ao infinito
e o sol poente ardendo-me nas mãos
lume para cozinhar o espírito de medo
senta-te a meu lado e contempla o vácuo
não há estradas nem pontes nesta ilha
ou animais grandes e pequenos
a escuridão desafiando bancos de areia
que o mar engole e regurgita
as cavidades do tempo ecoando
cantilenas de choro e birra
as coisas torcidas agora de longe
num desleixo doentio
para a claridade intermitente de um sol ardente
àquela hora da noite
brotam-lhe dos olhos cristais
o rosto infantil do lamento
e uma bacia inteira onde aportam ruídos
que os homens quiseram esquecidos
são os pescoços de palmeiras e as cabeleiras
cometas rastos de estrelas
e a areia pálida movediça destapando
as vigas de uma estrutura insustentável
despir da terra as suas vestes
um prédio em abandono de construção
placas acimentadas deixando a nu os seus dedos
o mundo assente numa coluna vertebral
desorbitado no silêncio do espaço
depois as sílabas cruas
num esforço de arrimar as ruínas
e empurrar ao esquecimento as memórias
trepando por essa escada de corda
nesse lugar perdido de mim
um terraço de gritos e euforia
dos patamares da visão nocturna
ela contempla a milhas de distância
os campos livres as fogueiras autónomas
porque na simplicidade dos desertos
numa tangente de gente o vento
um vulto que cai nos seus braços
um peito de pára quedas
e no olhar o próprio rasgão das estrelas
a luz que pisca nas intermitências
traz e leva a pulsação da terra
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