segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019
Todos os dias morrem pessoas
A minha avó chama-me nos sonhos. Outra vez.
Puxa-me pela mão para a casa do forno.
O forno está frio, a casa tem teias de abandono
e talvez ratos pelos buracos de companhia.
Era uma casa grande. Foi-se tornando só.
Os armários, as louças, as chávenas pintadas de flores brancas.
Quando ela penteava os cabelos longos de cinza.
Eu assistia como as crianças assistem ao que ainda não compreendem.
Era a morte que ela penteava. Eu assistia ao futuro.
Talvez nenhuma outra casa me tenha marcado tanto como essa.
Como um ferro marca as costas.
Depois deitava-me naquele quarto de metro quadrado.
E olhava pelo janelídio que dava para o pomar.
Pomar? Seriam maçãs? Ou pêras ou laranjas ou loureiros.
Na eira secavam as pevides. O pão não crescia no forno frio.
Minha avó era religiosa, eu não.
No dia em que morreu senti tristeza pelo meu pai, no ciclo
seria o próximo. Minha irmã disse-me o mesmo.
Eu senti-lhe as lágrimas correrem me minhas.
Abraçamo-nos como se abraça o sangue para a vida inteira.
Foi a primeira a morrer da geração que conheci em vida.
A primeira do nosso sangue.
Quando penso nela sinto-me descer à terra.
É a descida do corpo junto à campa.
Não sei como viveu tantos anos só.
Junto à televisão e à águia empalhada.
Aquela águia causa-me arrepios.
Diz que o meu pai precisou de banhos de ervas. O cobrão.
Era assim naqueles tempos. Outrora, bruxas.
Quando visitei aquela casa no dia da sua morte as molduras apodreciam
de pó na mesa redonda do centro da sala.
Todos os anos ela coleccionava um novo retrato nosso.
Doeu-me o passado ali esquecido.
A escuridão dos quartos no dia do funeral.
Era uma mulher bruta, gorda e à sua maneira terna para as netas.
Visitavamos a casa uma vez por ano. Depois no lar nem isso.
Uma vez visitei o lar. Ofereceu-me uma camisola e um anel de prata.
Era a sua maneira de pedir atenção, visitas para a solidão.
Não a visitei mais.
E depois há o jazigo.
Que é afinal uma família partida em dois?
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