terça-feira, 29 de novembro de 2011

Só um desabafo

Os gatos continuam num desassossego que quase parece humano. Meia noite e meia. Com mais meia será uma. Só mais este cigarro e vou dormir. Dá-me tempo para o fazer e contigo partilho o meu último pensamento antes de ir. Pergunto-me o que fazes tu agora. Dormes? Escreves?Vegetas na frente da televisão ou simplesmente olhas para o tecto do teu quarto. Dantes o meu tecto tinha várias constelações e duas luas. Sim, não me chegava uma. Assim como não me chega uma vida. Várias são as vezes que sinto não ter horas suficientes nos dias para explorar e desenvolver tudo o que tenho em mente. E há ainda o dormir. Perde-se tanto tempo a dormir, mas sabe tão bem! A minha cabeça não acorda bem quando durmo demais e na noite passada dormi demais. Já lá vão duas casas mãe! Da primeira arrumaste todos os meus brinquedos e escolheste aqueles que estavam velhos para dar. Quando vieram as caixas da mudança procurei e já não os encontrei mais. Como podias tu saber quais eram os brinquedos que para mim tinham importância? Certamente os mais velhos e mais podres, sim, esses eram aqueles que mais valor tinham para mim. Porque mais tempo brinquei com eles. Depois na segunda mudança ficaram para trás todos os objectos que compunham paredes que mais pareciam um museu. Sempre gostei de guardar tralha. Desta vez, ciente de que podias fazer as escolhas erradas pedi-te: os meus livros mãe, não os deixes para trás! O resto podes dar tudo. Assim ficaram as constelações e as luas, bem como malas, sapatos, roupas e tantas outras tralhas que não teria onde guardar hoje na minha casa nem me fariam falta nenhuma. Mas há uma coisa que não cabia em lado nenhum nem era passível de ser transportada e que se perdeu em todas essas mudanças. Na roda do volta e sai, do muda de cidade e do muda de vida, ficaram as memórias de uma casa de família. Só consigo encontrar pequenos momentos poucos na minha memória. Eu sei, não foste tu que os apagaste e sim eu. Apaguei-os porque não podia voltar a vivê-los. Agora tenho a minha casa. Pequena e cheia de tudo o que me faz falta e até o que não faz. Quando mudar, espero não ter de escolher. Que seja uma casa maior para lá tudo caber. Estou cansada de perder momentos. Só os livros não se cansam nem se esquecem. Cada livro que li sou capaz de me lembrar onde, quando e o que estava a viver nesse momento. Já os brinquedos, esses podes finalmente dá-los. Serão demasiado pesados para servirem aos meus filhos. Mas deixei na tua casa todos esses livros. Um dia serei eu a fazer a tua mudança e quando estiver sentada no teu quarto vou poder ir ás caixas onde os tens guardados. Posso ser eu a ler-te como fazias quando era pequena. É uma ideia que preciso de começar a plantar na minha cabeça. Para que cresça com suporte. Se nunca o fizer ela cairá no vazio e será muito mais difícil de a entender. Mas alguém consegue entender a morte? Não me conformo com a ideia de sermos obrigados a nascer, de passarmos uma vida inteira a lutar e depois, no fim, desaparecermos. Eu espero morrer de velha. E nessa altura já estar cansada de viver. E nessa altura já não ter medo de partir. No outro dia disseram me que aos quarenta os amigos já só se encontram nos funerais dos pais. Dei-me conta de que tenho trinta e só faltam dez. Pensava eu. Mas há sempre quem veja os pais partirem antes do tempo. Eu vivo com a ideia de morte iminente do meu pai há doze anos. Já não é tão iminente ou cada vez é mais iminente. Desculpa estar te a contar estas coisas a estas horas. Devia ter ficado pelo primeiro cigarro e ter ido dormir meia hora antes. Mas assim como me faz bem pensar sobre o assunto talvez a ti também faça. Custa mas depois sentimos alívio. Respiramos fundo e pronto, recordamos que estamos vivos e que é aproveitando cada momento que damos valor a esta viagem. E os gatos olham os dois para mim como quem diz "vai-te deitar" e para reforçar a ideia entornam o chá pela mesa. Eu vou. Eu fui. 

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