quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

história sem absurdo

Tu és o meu parque infantil. O meu baloiço e o meu escorrega. O meu bebedouro e o meu cavalo. Já chega. De porta fechada dizia: não é mais permitida a entrada! Rapariga tens formigas no bolo e eu sou guloso! Agita mais um pouco. Gosto do leite bem misturado com o chocolate. Bato com os dedos na mesa, e os meus pés querem dançar. Roda esse vestido. Gasta a sola do sapato. Vamos até à aranha. Massaja a barriga até às entranhas. Mete-me o dedo no umbigo e salta comigo. Olha, alguém deixou uma carta dentro do lago. Embrulhada num saco de plástico. Anda ajuda-me. Traz uma cana. Deixa-me ler, o que diz?
Quem procura no fundo pelo sentido do absurdo tem obrigação de devolver a resposta ao mundo.
Olhamos um para o outro e fugimos. Para lados opostos. Esconde esconde. Corre corre, que eu te apanho. Mas algures a meio do caminho perdemos a carta e esquecemos o recado. E os anos passaram e quando lá voltamos dizia: não é mais permitida a entrada! E tudo passou a correr. Não como escorrega, não como baloiço, não como bolo guloso. Escadas, só escadas. Degraus e lances de chances perdidas. Numa corrida para chegar ao topo. Para pisar o sonho e deitar fora o prémio. Tu foste o meu parque infantil. Hoje eu penso que nunca conheci outro. Mas não tenho que me sentir triste com isso. Tenho a certeza de que alguém encontrou a carta e deu continuidade à resposta. Eu terei sempre as nossas memórias e o bolo, bem esse, já nem as formigas lhe pegam mas aposto que tu continuas guloso!
Estava a pensar em dar um final diferente a esta história mas francamente, penso que não sei a resposta e talvez nem a pergunta ela própria me faça sentido. Porque nada disto é absurdo. Se nós perdemos a carta foi porque não merecíamos a pergunta.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Relógio de Sol II

Não há nada que me dê mais prazer do que ler ou escrever ao Sol de Inverno. Porque é quente e calmo. Pacífico. Na mesa ao lado, um riso absolutamente sinistro dá pela cara de Lili. Uma mulher alta, sempre vestida de preto que sempre que aqui vem bebe por três. E três minutos bastam para que se ria com se estivesse num velho cabaret embebedada até aos ossos. E as amigas falam não se percebe de quê, não importa saber de quê. Foi a golden retriever que por momentos impôs silêncio na Esplanada. Bendita. Que atravessou a correr o estrado atropelando tudo o que se meteu na frente. E ao silêncio seguiram-se os gritos das amigas. Bendita abocanhou a cachorra da D. Brígida, uma chihuahua que em segundos ficou esfanicada. Foi apenas um susto, nada de danos. A bem dizer a cachorra já manifestava o feitio da dona há algum tempo. ~
Meto à boca um rebuçado de amora. Se fosse a minha cadela dava me a mim o fanico. Sempre critiquei aquelas pessoas que falavam dos seus animais como filhos, tanto gatos como cães. Primeiro apareceram os gatos na minha vida, amor à primeira vista. Animal independente com carácter único. Quando o meu gato adoeceu com aquela gripe horrível e ficou internado sem saber se voltava para casa, aí eu percebi o quanto nos ligamos a eles. Tenho alguma reticência quanto ao inverso, se fosse eu a desaparecer da vida deles, será que sentiam a minha falta? Quando chego a casa lá estão eles, os dois de pé a olharem fixamente para mim à espera do mimo que me permitem dar-lhes. Sim que ninguém se iluda, os gatos são os nossos donos. Tudo funciona quando eles querem e como querem, excepto à lei do chinelo, aí eles reconhecem por momentos uma autoridade. Quando a cadela foi lá para casa, ainda nem tinha dois meses, aí eu descobri que os cães de facto são mais evoluídos emocionalmente. Quando falo com ela há alguma coisa no olhar dela que me responde. Teimosa como qualquer criança, meiga e resmunguona, mas sobretudo, ligada a mim. Ou pelo menos tenho essa ilusão. Sim, todos eles dormem na minha cama. E sim, já não encarava o meu dia da mesma forma sem eles.

Aquele que conhece verdadeiramente os animais é por isso mesmo capaz de compreender plenamente o carácter único do homem. Penso que Lorenz não chegou à parte do homem. Eu pelo menos cada vez estou mais longe disso. Não é só porque a mulher ri como uma puta, não é só porque a D. Brígida é um ser insuportável, não é só porque se critica tanto o amor das pessoas aos animais. É porque a expectativa da relação criada é imprevisível. Estímulo-Reaccção. No caso do homem, a equação nem sempre é linear. Mas isto também não é novidade nenhuma, todos nós todos os dias nos surpreendemos com alguém. Para o mal ou para o bem. E até temos algum prazer nessa surpresa. Cria dinâmica nas rotinas de mesmidade. Mas quando sistemáticamente, alguém nos surpreende pela negativa, aí devemos pensar se na verdade essa pessoa tem algum afecto bom por nós. E podemos mesmo perguntar-lhe. E podemos mesmo responder-lhe: vai-te foder. Estou calma, muito calma. Se estivesses aqui podias observar-me a sorrir. Nada disto tem importância nenhuma porque uma vez mais, o sol já se pôs.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Pólos

O mar enrola na areia, ninguém sabe o que ele diz. E eu prometi voltar na hora em que o sol estivesse mais quente. Na hora em que o conforto me permite viajar ora no ontem, ora agora, e já era. Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...Do fado à festa, da ciência ao coração, da razão à sua ausência. Nos dois pólos a oscilação permite-me criar. E acelero e ascendo, ou directo à decadência. Umas vezes em nada e eu vegeto outras a um ritmo extenuante. Assim eu vivo. Na boleia de tudo o que existe à minha disposição, eu sinto. Não sou várias, sou uma só em muitas disposições. Também à volta assim o é, não é? Não vês?


- Sabe o que é que aconteceu ao meu vizinho? A mulher estava a levantar dinheiro no multibanco, apareceu um indivíduo que tentou assaltá-la, o meu vizinho tentou defendê-la, o indivíduo sacou de uma arma deu-lhe um tiro no peito e matou-o. O meu vizinho era missionário, distribuía a reforma dele por quem tinha mais necessidade. Foi piloto da Tap.



O que é que Deus anda a fazer? Se a morte colhe ao acaso sem critério de bem ou mal. A Teoria do Equilíbrio do Universo é curiosa. Se alguma coisa de errado acontece que prejudique alguém, noutro lugar algo de muito bom beneficia outro alguém. E não é nenhum Deus que promove este equilíbrio, é a ordem da Natureza.



Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...Mas na ausência de um sentido que dê sentido aos meus sentidos, também eu preciso de filosofias. Mas a minha filosofia é primária, olho por olho, dente por dente. Animal pouco crente na ideia de dar a outra face. Dar a outra face pressupõe inactividade e fé na iluminação da culpa interior do outro. Tretas, quem não tem moral, nunca a terá. Protejam a vossa família e os vossos amigos. Protejam os vossos bens e o vosso carácter. Protecção ou justiça pelas próprias mãos? Para além de Deus, também não creio na nossa justiça. É lenta, burocrática e sobretudo pouco eficaz. Qual é o papel da justiça se não impor limites no cidadão. Ci da dão, outra expressão curiosa que me leva a mais uma descrença: a sociedade onde supostamente me deva inserir. Com impostos, com imposições, com restrições e sem nenhuma ou qualquer protecção ou garantia individual de saúde, educação e projectos de vida. É esta indignação que me faz descer à terra. É este não querer pertencer a nada disto, porque não concordo, porque não o elegi, porque não o compreendo.


Na simplicidade de um ignorante guardador de rebanhos reside por ventura a solução para as sociedades doentes deste século. No regresso à terra, à comunidade, à cooperação e reunião familiar, à produção do essencial. Quem acredita nisto, precisa de uma fé maior: a fé nos homens, na sua capacidade de fazer o bem. Mas o homem é um animal. Territorial, egocêntrico e cada vez mais, desenraizado da terra que o sustenta.



Anti-metafísico. Em última instância para quem se sente atormentado com tudo isto. Para quem se sente pequeno para agir. Quanto a mim, desejo que permaneça num dos pólos a minha filosofia animal e no outro uma força imensa que me leve a crer que aonde as minhas mãos alcancem, eu posso fazer melhor.