quinta-feira, 29 de dezembro de 2016
mãos de areia
fio de prumo para atalhos de remendo
as mãos pálidas reconhecem o tecido da alma
essa pele céu de elástico horizonte
quando poentes se deixam em repouso
e a alma abandona o corpo para
desatar a correr pela margem fora
num gesto mutilado quase humano
curvando o declive da dor a dentro
dobrar-se contra a corrente do medo
porque o passado se deita em mãos de areia
pende uma folha num fio de seda
sede indolor dedilhada pelas patas da aranha
do alinhar das pirâmides vertebrais
prumos pesados não sensíveis ao vento
assim a alma que se acolhe do infinito
que aponta o céu na graça de se encontrar
nesse cromo movimento de mandalas
que recolhemos dos quatro cantos do tempo
da captura do magnetismo do que nos separa
são missangas de curtos beijos alinhados
a cor do sol em uníssono
das sombras espirais de pigmentos
deixados ao acaso nos dias
tinta à base de lágrima explodindo na tela
como se cuspida de uma garganta em sangue
estoiros de balões tal orquídeas
um túnel de ausência da decomposição das horas
deixadas ao acaso nas noites frias
lapsos de anos ficaram dentro de mim
esse fio de ariadne onde tudo foi em vão
e a alma abandona o corpo para
desatar a correr pela margem fora
sexta-feira, 23 de dezembro de 2016
Entardecer das alturas
são as almas que sulcam as pedras da calçada
que se abrem de revolta
dos aéreos acordes das gaivotas
que se desfazem de anil além portas
a nossa alma transfigurada no grito
o som grunhido do dia rendido
todo o lírio azul de intocável dor
tudo o que se sente de incorporado no ar
e há o gesto nostálgico
no coro das vozes que nos trazem o mar
o mundo redondo e polido
quantas vezes percorrido sempre o mesmo
quem nos sublima o caminho
para a vingança de continuar vivo
como um repuxo arqueado
no seu perpétuo instante
corre o murmúrio desse mar na fonte
embalando o abismo num só trago
são os traços que se diluem de absoluto
urge amordaçado o tempo da solidão
tempo secular de ninguém
delinear das alturas nuvens de espuma
um oásis impalpável de ternura
porque conversam as gaivotas com o cenário
nesse movimento sísmico de nos revirar do avesso
sombras que invadem o soalho
quando o dia entardece sem começo
são monólogos de pedras
da saudade bruta da entrega
o silêncio do vagar sem migrar
do vagar do sopro que nos vinga de pé
terça-feira, 20 de dezembro de 2016
pontes de céu
a paisagem obscena redime-se
às linhas mais concretas do esqueleto
as linhas que guardam os afectos puros
das mudas de inverno das aparências cruas
a apoteose de uma anamorfose
quando da fonte estreita alguém se afoga
mas a morte é apenas o começo
como retorno a uma infância tardia
o tempo sobe e desce pela coluna
pulsando de vivo o desejo frágil e antigo
reconheço o tempo por dentro
e como tantos outros pássaros
parto sem olhar ao espelho
parto de um próprio e livre sentido de ser livre
como se o fosse só porque o sinto em partir
cada elemento de dor que em mim não coube doer
rendilhando a armação de um corpo que se desprende
para voar deixando o chão
em anamorfose sou todos os olhos meus
e muitos foram os que me viram chorar
mas a paisagem é um regaço em aberto
coberta de farrapos de céu
que à noite, numa parcela de sonho
apenas se apalpa de azul
e do vagar do nascer, do vagar
que nos recorda as paredes do ventre
das primeiras horas da precipitação do amor
são esses braços extensos
que nos prolongam as linhas do esqueleto
o nascer das asas para depois
atirado o corpo contra a luz
nesse compasso de estar vivo
vê-lo partir
domingo, 18 de dezembro de 2016
a vida de um rio
as águas percorrem o monopólio dos afectos
desse rio que está ainda por nascer
da gestação de tudo o que está por chorar
dos movimentos de massacre do coração
o rio flui sem idade para desembocar num mar doce
querendo degraus para tropeçar em cascatas de paixão
nasce para o encontrar de um corpo impermeável
nasce do espírito abalado de interrogações
de estarmos à mercê de um ventre sem remoínho
subterrâneo um destino que acontece
que se prolonga do imaginário à ondulação
um movimento suave mas possante
que nos arrasta sem que abracemos as margens
porque uma mão não basta
mas nós somos um rio de valsa lenta
porque nascemos em olhos de água
pelas entranhas de cada bifurcação do depois
por onde a procura foi só o berço de devaneios
o pesar do enigma vivo..por aqui andamos..sem mais tempo
para o salivar do coração à tristeza
agarrar o lugar do instante..aqui de verdade
como salvação para uma vida inteira
porque a vida continua até à foz
a margem provocando os contornos do corpo
um corpo que sem fluir seria qualquer outro
águas clivadas a que chamámos de outras vidas
um rio sombra a que chamámos de eco sonho
mas quando parte, esse rio não é mais o mesmo
viajando-se a bordo de um caudal de esquecimento
alimento da hidratação de rios menores
há apenas o devaneio de transcendê-lo
nas imediações secretas do soalho chão terra
porque se fica. se vai ficando sem conhecer
um rio que nunca chegou a amadurecer
ficam os sedimentos no abandono das margens
e compreender o impulso da morte
indo ao encontro de um passado sem prenúncio
como a cadência desse rio que já partiu
invocando as texturas dos rituais do choro
porque esse rio nunca será encontro de si mesmo
revisitado de todos os lares sem porta
não precisar de ser entre paredes
encontrar-se perante a exaustão
de não ser mais água, nem céu, nem nada
porque a bruma da manhã nasce sem começo
o espaço oculto do número sem equação
as sombras elípticas que nos atravessam
todas as inquietações atraindo ao abismo
no gesto do despir das amarras sem depois
tudo fica, em bruto no fundo desse vulto rio
...fica o lugar de ser o vazio
domingo, 11 de dezembro de 2016
num vazio de quimeras
os pensamentos acordam com o cair da noite
o tempo do sol não sair da sombra
fogem do corpo contraídos gemidos
ao colo, uma cadeira que já não tem balanço
dos cestos novelos de pó, sobre a mesa frascos
um líquido corpo pastoso que talvez tenha sido choro
a neblina do encanto repassa a pele das cortinas
do longe animais varrem todos os caminhos de dentro
o barulho do vento imitando a aridez das cavidades
os olhos ardem de uma febre pouco terrena
como o fechar de todas as gavetas das coisas vencidas
ficará no fundo o primeiro momento da captura do mundo
da invenção do silêncio como frase pura de coerência
porque não haverá mais nada a dizer
trazer consigo a sintaxe de toda a eternidade
a solidão fecundando ecos no vale das aves quebradas
acorda-se com a vontade de levantar o tecto, de arrancar o chão
de deitar abaixo as paredes do coração
porque foi caindo a noite
e é tão difícil mover-se no intervalo das sombras
porque tudo resiste a nós e só mais tarde se desfaz
então o néctar é um grito desdobrável
de tecido de alma plástico
e anda-se uma vida inteira a borbulhar de lava e cólera
para brotarem apenas horas do ordinário
e das infinitas órbitas das faculdades do voo
que vão a enterro pelo chamado tempo
fica o tempo do verso que chama, que é chama
o prolongamento do verso sem tempo, a cinza
que não se renova das coisas entendidas
nesse bater metálico o extraordinário sentir mecânico
pela noite pelo dominar dos pés que vagueiam
ungidos de uma saudade desfigurada
do ser sempre ontem e mais nada
hão-de surgir palavras para quê?
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