terça-feira, 27 de junho de 2017

ENCARNAÇÃO revisitado



Há uma criança a ser descarnada pelo tempo
os galhos ramos de silêncio estalam                                           
dedos de feiticeira magros cadavéricos                                          
entes erguidos no seu posto zelam
pelos portais de outro hemisfério

do vírus vida, tudo brota luz rasgo de folha
lagos santuários de musgo desfigurados
fissurando os muros dos caminhos estreitos
as palavras que rumam ventos mistérios

as falhas dos seus corpos
deuses contemplam a imperfeição
o olhar da noite sem fim
cada rosto de criança planta
o pronunciar lento de um tempo sem ampulheta
arenoso, pó de canela, que não avança
essas crianças que nunca saíram das entranhas

uma lembrança
uma memória que antes de nós era
os rios rasgam a terra com as mãos
escravas da lavoura mais próxima do chão
a sombra que atravessa a vida
o vagar das horas para o aceno de ocaso das copas

meu anjo negro obstinado
segura-me pelas arcadas paciente
para me soltar da carne
das chibatas do coração
do caminho

meu anjo negro obstinado
revira-me de azul
das pernas dobrar-me ao animal
as malditas incendiarem-se
e vezes sem conta morrer de novo


e vezes sem conta morrer de novo

quinta-feira, 22 de junho de 2017

o pericárdio



das férreas linhas que decompõem
as vozes, serei sempre uma e tua
ferve no caudal uma emoção tresloucada
como se todas as palavras fossem uma e tua
nos declives da mente o sangue queima
desordeiro de uma fome de ruído
a gata que arranha as folhas saboreando
a saliva que sabe a inferno
na noite ignorante que nos espia
a cama giratória a mó
vai encolhendo de mim o nó em uma
tudo o que nos cobre de entes
que nos estendem os seus pericárdios
na complexidade de mundos que não se tocam
bate parte quando se começa por doer
o grão que depois dá em palavrão
que já não cabe na alcofa
quando o poeta criança pede por uma trança
e em três, a três vozes se escutam, uma esta e outra
as fibras que nos apertam de opacas e finíssimas
ternuras, sempre a mesma, esta não outra
mas tudo isso faz parte dessa locomotiva
que nos leva aos dois de mãos dadas pela vida



domingo, 18 de junho de 2017

horas mortas


abro a janela porque não posso mais com a escuridão
a cama arde-me por dentro da carne
enfrento o temor acelerado do medo
o quarto é um mirante colado aos céus ardentes
levanto-me, dou voltas pela casa, há um terrível propósito
nos infaustos pensamentos que se me murcham
não há vista, as paredes brancas do reflexo são eu
de que faleço, o diálogo é um inferno em constante repetição
havia cinzas e fumo no quarto, línguas remotas nos meus passos
o universo tal como o conheço parou.
preciso que um esqueleto, uma câmara fotográfica ou um lápis
nada podem, o que há de definido são as sombras
o sonho está como o ar quente que não refresca
também ele é a ilusão que nos resta
o corpo tenta combater um não sei quê que lhe falta
mas os orgasmos saem pela janela e batem nas paredes da frente
num agonizar disfarçado de pássaro ou de bicho rastejante
são os olhos vivos dos demónios que me ensanguentam os olhos
numa marcha de terrores que me trazem um amanhã de mais medo
que de hora para hora vai vencendo as minhas palavras
e nem os silêncios dão tréguas.
é uma tarefa interminável, a de esperar, que as faces de um prisma
se conjuguem em concreto e ainda sempre nebuloso
que eu possa sentir nas minhas mãos a vida sem fúria
finalmente afagada por um entendimento onde o inadiável
não terá mais momento.
é que o medo deste medo, é daqueles que queima por dentro
e que me traz de volta para se renovar de energia de mais medo
por isso abro a janela, o combate cessa quando aceito a minha impotência
porque não é a temperatura que me deixa nesta agonia
aceitar a escuridão ou aceitar também a luz, porque não é isso que importa
das ausências de sintonia ou nas ausências de sintonia
nesse descompasso onde de facto estamos perdidos,
o medo talvez faça sentido


sábado, 17 de junho de 2017

o dia mais belo


os caminhos dos céus bifurcam
só se sente a tormenta física
como um antepassado coberto
de negras compactas asas
depois de fénix pássaro de fogo
a cidade cobrindo-se de chuva
os nossos corpos colados de suor
o disco do gramofone
da lâmina que sustenta a agulha
o anonimato caindo pela distância
de uma garganta sem fonemas
riscada em forma de ondas de anca
no vaivém de uma janela de ventaneira
a noite ou o dia, já não se sabe
lá fora pirilampos girando sobre o disco
que apenas em horas de extremos
se sabe que está girando
na intolerável precisão
com que nos desencontramos
ao fundo do rio
do resultado final da combustão
os resíduos de um trovão
lavados e esfregados no passeio
anulados pela corrente
nesse quase imediato abstracto
é uma claridade que parece madrugar
mas sempre diferente
quando tudo parece melódico
recordar é caminhar chuvendo
de gota em gota, de boca em boca
como aquele que dorme nas mantas
lá fora
ou aquela que já perdeu um chinelo
pela rua fora
e que só a melancolia nos teus braços
encontra e pode cobrir de belo



sexta-feira, 2 de junho de 2017

mas as asas combatem o chão



as asas combatem o chão
com o vagar do desalento
do sol inteiro
do gingar do corpo
com esses olhos ladrilhos
a ceia que veio com fomes tristes
para o reforço do prolongar das linhas
desse sol já posto
no içar de todas as bravuras
das marés e dos barcos sem faroleiro
o apontar do céu
cascos rasgados de céus anémicos
crias entregues à luz
o cordão das sombras
as mãos que descobrem o vago
das encostas âncoras
é sempre vago o olhar da ferida
dissolve-se a dor no paladar ácido
o que cai pousando
depois do movimento gasto
a lembrança do fim
as velas à revelia içadas
respiram como se estivessem destinadas
pairam como nuvens brancas
as palavras choram
dentro de cada homem
e a maré vai espelhando
o que está de passagem
mulheres vestidas de histórias
barcas de ventre e memória
dentro de cada homem
o que está de passagem
como o Inverno que ficou
e deus sabe como ficou
asas geladas para as águas
que de mágoas não passaram