segunda-feira, 26 de março de 2018

da pupila do olho, a escuridão


rebentam das fendas fogos de fuga

o dia nasce faraónico
para a luxúria da intimidade
criatura cadabra do grande barulho

o tempo ainda húmido
do azedado fabricado das tinas
que lavam para o rosto da laboura
na cadeira baloiçante golpes duros
atravessam o alcatrão lamentos
para uma imagem de rosto ácido
o alívio no alastro de pontos de clímax
veias que se brincam por entre os dedos
embalsamadas as formas gritam
degraus metalúrgicos cem polegadas
os paladares os cheiros a fórmula
dava-se à confissão a disposição anémica
uma gota de esterco no grau zero do oculto
o fervente despertar das trevas
as fissuras que nos atravessam com pressa
o trajecto poeirento clorofilino
rótulo endereçado ao comboio de néon

a cidade nascida das caves
projectores com lábios e línguas bifurcadas
uma espécie de serpente de viveiro
corda infernal para o enforcamento
a luz desterrada dos nossos olhos
que se encontram no invisível murmúrio
de uma meia noite sem amante
beijos de veludo engolidos a seco
a língua alcatifa infernal do medo
copulando dos arranha céus
abrem contra o peito projectores astral
a violência de nos condenarmos sós
a língua materna balbuciada de morte
na catalepsia de um amor débil

o dia nasce do leque de penas
um pavão de negros e vermelhos
pedindo esmolas para o ascensor
de quem não pode morrer de dor

as penas batem contra a fachada
de uma velha cidade oxidada
contorcida de cabos de aço
e débeis gritos de fracasso
velho rouco atarantado
descrevendo voltas no asfalto
espectro de mundos em colisão
omnipotente de urina sem tesão

do subterrâneo batalhas remotas
uma tocha no fundo do túnel
cambiadas almas motorizadas
a palidez fúnebre do homem trágico
mercado negro de dignidade
sensações olfactivas de contrabando
pelas arcadas sem proprietário
através do vidro sem guarita
nascem dias de sémen vulgar
a carne atmosférica escarradeira
de uma ideia de cela e vácuo
o homem retrato anjo negro
película gelatinosa mutante
mamando do seio de um cabra
de pele enrugada e pernas arqueadas
o homem espelho em queda
gato de repugnância sem entranhas
insecto cabalístico da loucura
emergente de todas as coisas
filhas trágicas da meia noite

rebentam das fendas fogos de fuga
orelhas de elefante serpentes gigantes
o dia sepultando o veneno do adeus
engomado o amor da língua negra
da fuligem das asas de uma borboleta
comboio destino amestrado
pescadores de edifícios sem alicerces
guarda da infância nostalgias
o custo do choro que atravessa o sangue
a poesia de ancas roliças
pernas abertas ao comandante
filho errante da meia noite
putas de nova geração
novas viúvas de coração
bebedouros para rins artificiais
uma nova aurora infectada pelo vírus
de úteros podres de tecnológico
a licantropia privada de telepatia
de uma meia noite sobrenatural
filhos odiados sem ódio
peito sem ruínas e algemas sem punhos
pendura-los pelos pés
para que rebentem como fendas
e ardam como fogos sem fuga
encarcerados pelo dia sem luta
e o cheiro nauseabundo de corpos
que nunca sentiram o apelo da alma
o odor a fórmula a putrefacção
das celas que ficam abertas à escuridão


terça-feira, 20 de março de 2018

mãe, já te choro


subias agora o monte de areia
as redes cabelos embrenhados de algas
sigo-te pela teia no arrasto
sou pequena e reclamo com a temperatura do vento
vai devagar que não me quero soltar
peixe fora de rede molusco sem concha
no apego à vida a última golfada de sangue
para galgar a terra e os homens e a morte
a morte surgindo terrivelmente selectiva
da membrana das crateras que se esculpem
para o tempo ingrato dos ritmos
da impotência dos ciclos da placenta
da síntese da terra dos abismos
que de geração em geração se revelam
depois a mão trémula e o coração de mãe
chegar-me um colo um beijo um abraço
chegar-me o medo terrível do desamparo
o mundo dos elefantes que choram
as reviravoltas acrobáticas de um avião
que não parte do chão
o céu retirado de pedaços de vidro
e uma praia imensa de inverno e nevoeiro
depois tu mãe à minha mão entregas
duas bolas de gelado e um penhasco
há um arco-íris que se desenha
quero mergulhar no oceano mas está frio
sinto pedra nos pés
entre mim e o infinito esse penhasco
depois uma ilha
é preciso deixar a boleia e caminhar
procurar a esplanada mais deserta
a paisagem mais iluminada mais idílica
e o mar no horizonte a encaracolar devagar
na promessa de sermos parte mais bela
meses de verão que não findam
crianças correndo na areia
inteiramente nua a crença na vida
uma súbita nuvem que desaba
para xailes negros de enterro
uma onda gigante que cresce para o céu
a nossa pequenez emerge da sombra
as pernas mecânicas não correm
o nosso corpo levanta levita
uma massa de água envolvente
ainda a crença sem corrente nem abismo
dizes mãe que sonhavas do mesmo
se me incarnam os sonhos de terror
formigueiros de gente boiando
uma tripulação de gritos onde
ninguém se despede convicto
baloiço na vela de um barco salvador
cego de cólera na voz estranguladora
os punhos cerrados contra deus
quero acordar e não posso
abrir uma cova e enterrar o oceano
o próprio imaginário das coisas naturais
a imagem intolerável do fim
encarnar o diabo para não despertar
como o ser mais só
na imagem intolerável sem ti







quinta-feira, 15 de março de 2018

mãe de água


para medir forças podia estar descalça
a pulsação da água circulando nas têmporas
as paredes escorrendo o etílico da noite
gotas carpideiras do vício ou inverno
sigo pelos passeios que a alma glaciou
bebemos da taça do cristal necrófilo
e de socalco em socalco nos vertemos
a densidade do soro da morte
no alheamento da estátua mãe
a alma animal levanta-se primitiva
vagas de pedra para lambermos
ao longe escutam-se rugidos
propaga-se como oferenda trilhos fenda
os cães tropeçam-me nas pernas
nascidos de uma paisagem árida de alimento
porque nos vêm velar o esquecimento
e a pequenez de ramos elos
a chuva leva o que de mau há na gente
com os seus modos ancestrais
cabelos, unhas, pele, língua
nas curvas ossadas acariciando-me
cardumes de dedos escorregadios
os olhos presos como âncoras de saudade
mordes a quebra do silêncio para gemeres
as mãos nodosas saturadas de arrepio
vai crescendo entre as pernas o mastro
para naufragarmos nesse chão viral
imitas dos deuses a sua presença
estarmos aqui captura reagentes
as tuas mãos tremem-me na retina
nas linhas envenenadas de sangue
corpos nus carros de bois
vidrados na fadiga de não mais galgar
corpos alados ávidos
farejando buracos tocas para hibernar
o solo transbordando de impaciência
a natureza revolta-se trovejando
eriçam-se as escamas do vento
para a possessão de todas as fibras
os quadris arbustos para o desequilíbrio
sinto-me incontinente de dor
chega-me o atrito da falta de fronteira
não sou ilha, nem banco de areia, nem alga
tudo tem a desproporção do infinito
a inércia dos cascos onde a água chega agora
o pescoço à boca ao ouvido
nascido afogamento do espírito
nascidas de uma ferida desesperada
da tentativa inquietante do romper das sombras
golpeando ondas hologramas
das caves céu evadidos
nos descobrirmos perdidas uma na outra
e a chuva continua no febril abismo
para nós cai, para eles parte
é como um grito ou um beijo que morde
quando tu és eu ou eu sou...
danço porque no ar há menos morte
as raízes já seguiram o seu curso e eu danço
levada por uma emoção desastrosa
típica das estrelas inacessíveis
ou da civilização dos deformados
arrasto do desprezo de me precipitar
tenho o corpo corrupto de seco
na euforia do remédio ofício
de querer das vagas um mantra
e eu sei que danço para não estar parada
quando é a água na sua virilidade
e a alma afinal amestrada
que me satura de espasmo







terça-feira, 6 de março de 2018

carnal


o desprender de algo material
a radiografia espiritual de um osso quebrado
osso sacro do peregrino que vai descalço
espreitando pela cortina de rasgos
o lado obscuro da cidade perdida
segurando uma pomba uma mulher queimada
o coração gentil enrugado pelo sol
captura Leica leiga
o barro ondulado barro de sangue
as chuvas caíram
nos campos agoirados as mãos amarradas
os ciclos agora afogados nas cheias
pedaços de tampos de morte boiam
lâmpadas foscas e tombos de carcaças vividas
está o sol partido arrefecido
a pomba acorda das mãos da senhora
o manto de retalhos divinos
o corpo vazio
para sentir apenas o crepitar das estrelas
a sombra morena da fé que desce pelas encostas
nasce o início
do lugar terreno absoluto
as crianças brincam com pedras e vestidos velhos
a decadência anémica decalca os prédios
a pele mais dura de vultos de sorriso pisado
sigo o vago horror de por lá ter passado
os intermináveis corredores
das conchas falamos naquela cidade estranha
atravessamo-nos sem reconhecimento
enlaçados os ombros de um monge mordia os lábios
contava que fosse a hora
aquele intervalo de vida
a chuva refrescante no rosto fosca
vastidões de nenhures desabitados
falta uma folha quadriculada para uma autoestrada
o sol das praias a decantação das fábricas
uma cidade domesticada a respeito decotes e seios
florestas decorativas do apocalipse
e uma estufa com corpos de flores
para a seiva ácida de um arco íris ao peito
embaciada do sonho
a impressão de tudo aquilo ter sido guia
um mundo sem objectos de amor
dulcíssima e casta a pele sonâmbula
pela manhã penetrando
a mesma pedra aveludada atirada antes por arcos flamejantes
e anseio por um milagre de colonização
pisar virgem essa terra com sonho
correr as mãos pelo cabelo
com uma vontade absurda de soprar vento
com uma vontade absurda de esmagar a pomba