terça-feira, 22 de dezembro de 2020

peixe morto

 
talvez
os tempos nos tenham baixado a proa
a mosca presa na teia ardilosa da metrópole
nem pássaros ou flores absolutos elos de dor
uma ideia de eclosão frágil do mundo
à roda do sereno retomar das aves 
o vocábulo prenho
escondido como bruxos apocalíticos
na beira de um poço seco e fundo
atira-se ao chão o que nos leva a reboque
a mulher terra um cocheiro desvairado
habitamos um pátio de galinhas
o ovo espreita no parapeito sem nascer de facto
acidentes que a goela socalca ao fundo
um sentimento de estar sempre atento
flores de beladona ao deus-dará
como se as manhãs já fossem tardes
e o envelhecer por três-vinténs fosse um disparate
no canto mais obscuro é lá que as gatas
têm os seus próprios filhos
braços telepáticos de amor incandescente 
o timbre dos elétricos volumes agudos
o coração dilatando de angústias de adeus
o fim da seiva abrindo as portas da grande selva
o felino solitário que se aventura pelos telhados
coisas banais que constroem o imaginário
a quem bebe sofregamente pela boca da verdade
e que verdade mais crua que o deglutir de um filho
para o proteger da enfermidade do vazio
se retirássemos o fundo e a mosca pudesse cair
um lugar de passagem lentíssima e imperecível
podermos vibrar conectados com as paredes do espaço
espécie de gaiolas de pássaro que não voa mas plana
pássaros ou peixes estáticos trementes e anulados 
é como se fossemos agora a própria gaiola
na aceitação de não haver mais pássaro ou peixe
haverá peixe no fundo do poço?
não é essa a paz que numa espécie de nó 
uma labora antiga e até agressiva
um céu de nimbos quase sufocante
o espelho do próprio espelho 
nos desconfia do quieto?
peixe quieto está morto
é que a miséria tem o seu próprio alimento
para os miseráveis do vento
e a dor tem a sua íntima presa
para os comiserados do tempo
tudo próprio do seu próprio lugar de fundo
que se mata mentalmente de boca a boca
                                     de hora a hora
                   de vocábulo em popa pelo mundo
                                          







sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

review do poeta

 

estas ruas dão para Oriente

polígrafos do silêncio que atravessa os antigos prédios 

a noite vê-se rogada de atalhos 

e candeeiros dirigíveis que apagam e acendem 

da janela marteladas de máquina 

uma queda húmida no arranque do carro

que insiste em não pegar na esquina

às vezes parece que as palavras estão gastas

o fio de prumo na asa pomba

esses mesmos glóbulos brancos que por monóculo extasiantes

talvez a vista nunca se canse

-não estão mortos, mas também não vivos

como pardais na linha de água estarrecidos

o teu rosto a quem se deu vida

esta cidade que nos volta costas 

que nos empurra suicida

são as colinas dos injustos

para a benção e misericórdia dos desejos

como quando deixamos a roupa estendida e chove

são montes estacionados em Meca

ou a alma arquitectada no além 

no primeiro andar mora o resistente do fogo

vai às putas deita-se com a calamidade

e quem não perdoa é a cinza viúva 

história...do oculto das paredes

a palavra fundação salta pela janela

traz o processo de arrasto

-me invoca, me invoca que sou fraco

anda filha, anda lá com isso que estou velho

um moinho torto de asco

e a corrupção de carne doente alucinose

alguns de nós deambulam espectros

bumerangues pelas causas nominais

ano após ano, incansáveis

a roupa balança na corda, amanhã está morta 

cada um de nós puxa pelos outros

na imagem de quem puxa as redes no areal

assim, quando se sente alguém ser escoado à margem

uma mão estendida agarra e trás de volta à vida 

diz-se. Que esses desígnios  estão saturados de rima mas esfomeados de sangue pulsante

esse mesmo deus fecha e abre a sua mão 

um fole de respiração combatida

vocábulo opcional a combalida. Melhor para ovelha

então olha-se para o senhor da bengala pé de cabra

pequenos gestos para longos passos de arrasto

pergunta-se o que move ainda o espírito 

que carrega às costas um corpo quase anjo

é tão lindo chegar-se a velho, tão bonito envelher-se

sem fenda, esmola, a alma em brasa lenta

e um jardim repleto de adendas

naquele tempo todos casavam uns com os outros, e quem não casa...viaja

sente saudade das avós, de um último dia 

um dia não calibrado de horas. Eterno.

a sensação de que todas as almas se parecem com petúnias

opulentos pentagramas carnados

é tão quieta a noite da deambulação 

-poderíamos estar horas nisto...

E os seus frutos duplicam, desejo de satisfazer-se no alto

as suas almas pertencem-se.

-é..como se parassemos o tempo

por favor não deixes de martelar no vazio 

de tanto bater...voou








quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

uma casa assombrada

 

é...quando me sento na beira da cama 
arrumada no canto do quarto
quando olho para as paredes
que dia após dia se vão cobrindo de figuras projetivas
melancólicas e bolorentas...
por vezes as casas respiram 
mesmo quando muitos anos depois 
mantendo-se firmes na luta contra o peso atmosférico da morte
casas como castelos de beira de bosque ou pequenos quartos de beira de rio
mesmo depois de vandalizadas, mesmo depois de roubados os vitrais
lá em baixo, nos seus alicerces, a água incessante
mesmo depois, quando os ramos se entranham a dentro
e as raízes rebentam o soalho, o que cresce pelo mesmo caminho
conivente como teia de aranha e enredo
a cabeça uma casa de tetos de folhas delgadas de carência de inverno
por toda a parte borboletas e lagartas, lâminas concomitantes de tempo
a noite escorrega para fora, como se cortinas aveludadas baloiçando 
para fora, é que há todo um movimento espírita interno
como se nos tivessemos tornado mais leves depois de mortos
parte das árvores, faias, agora fungos de beira de lareira cinza
troncos direitos esculpidos pelo vento dos dias seguidos
e lá das águas furtadas, espreitar o mundo atrás da copa inquieta
pedaços de terra mergulhados na penumbra 
é todo um sol matinal que desperta de noite
irrompe como procissão de gnomo ou pequenas criaturas etéreas
é...quando penso na leveza que ignoro a razão 
que não pode outra explicação que não a solidão
ao lugar só da própria casa que fica desabitada
e um lugar desabitado...é...perigoso
assim me vejo encurralada num dos cantos assimétricos
deixou-se ficar um altar de pedra e tudo o que a cal comporta
deixaram-se  acordados pedaços de outros mundos
o contorno dos objetos outrora pendurados com intento
creio no ferimento dessas paredes, a lágrima húmida que se condensa
placas de estuque e portas arrancadas, talvez
fosse capaz de entrar
por meio de uma palavra ou num risco de fumo suculento
na expressão soturna de um estômago vazio 
o movimento lento de uma larva que se vai astutamente compondo
para acolher o bosque dentro de si
Agora...somos nós os intrusos
a sombra negra que penetra no interior que incomoda que aflige
quem por lá mora
é como quando partimos e alguém nos visita a campa
nos acorda a dor suprema da ausência
e nos devora com o horror do vazio
Agora...esse lugar é promíscuo onírico abismal
tão mais fácil o abandono da alma nesse conceito 
que outrora habitava sem jeito...sem grito de socorro
sem cálculo ou fome de vácuo
e rápido como um raio de disparo...poder acordar 
o crânio docilmente depositado num vão de escada
um pulso delicadamente diluído numa beira de fonte
cabelos que se enrolam na fibra da madeira
e a seiva que em força pertence assim...a uma nova nascente

seria uma casa igual a tanta gente...
                                ....gente outra se não fosse a nossa