quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

uma casa assombrada

 

é...quando me sento na beira da cama 
arrumada no canto do quarto
quando olho para as paredes
que dia após dia se vão cobrindo de figuras projetivas
melancólicas e bolorentas...
por vezes as casas respiram 
mesmo quando muitos anos depois 
mantendo-se firmes na luta contra o peso atmosférico da morte
casas como castelos de beira de bosque ou pequenos quartos de beira de rio
mesmo depois de vandalizadas, mesmo depois de roubados os vitrais
lá em baixo, nos seus alicerces, a água incessante
mesmo depois, quando os ramos se entranham a dentro
e as raízes rebentam o soalho, o que cresce pelo mesmo caminho
conivente como teia de aranha e enredo
a cabeça uma casa de tetos de folhas delgadas de carência de inverno
por toda a parte borboletas e lagartas, lâminas concomitantes de tempo
a noite escorrega para fora, como se cortinas aveludadas baloiçando 
para fora, é que há todo um movimento espírita interno
como se nos tivessemos tornado mais leves depois de mortos
parte das árvores, faias, agora fungos de beira de lareira cinza
troncos direitos esculpidos pelo vento dos dias seguidos
e lá das águas furtadas, espreitar o mundo atrás da copa inquieta
pedaços de terra mergulhados na penumbra 
é todo um sol matinal que desperta de noite
irrompe como procissão de gnomo ou pequenas criaturas etéreas
é...quando penso na leveza que ignoro a razão 
que não pode outra explicação que não a solidão
ao lugar só da própria casa que fica desabitada
e um lugar desabitado...é...perigoso
assim me vejo encurralada num dos cantos assimétricos
deixou-se ficar um altar de pedra e tudo o que a cal comporta
deixaram-se  acordados pedaços de outros mundos
o contorno dos objetos outrora pendurados com intento
creio no ferimento dessas paredes, a lágrima húmida que se condensa
placas de estuque e portas arrancadas, talvez
fosse capaz de entrar
por meio de uma palavra ou num risco de fumo suculento
na expressão soturna de um estômago vazio 
o movimento lento de uma larva que se vai astutamente compondo
para acolher o bosque dentro de si
Agora...somos nós os intrusos
a sombra negra que penetra no interior que incomoda que aflige
quem por lá mora
é como quando partimos e alguém nos visita a campa
nos acorda a dor suprema da ausência
e nos devora com o horror do vazio
Agora...esse lugar é promíscuo onírico abismal
tão mais fácil o abandono da alma nesse conceito 
que outrora habitava sem jeito...sem grito de socorro
sem cálculo ou fome de vácuo
e rápido como um raio de disparo...poder acordar 
o crânio docilmente depositado num vão de escada
um pulso delicadamente diluído numa beira de fonte
cabelos que se enrolam na fibra da madeira
e a seiva que em força pertence assim...a uma nova nascente

seria uma casa igual a tanta gente...
                                ....gente outra se não fosse a nossa



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