De entre sons de marteladas, picaretas e tábuas se alojando, escutava-se o hino num assobio intercalado com pedaços de letra..heróis do mar, nobre povo...Da janela o sol timidamente se esgueirava, hoje o dia parece estar chuvoso. Pesado, este céu cinzento. Mas dentro de si uma leveza de tranquilidade iluminava-lhe o rosto. Respirava profundamente devagar. Chegava do exterior também um odor de bifes na frigideira, louro e alho. São onze da manhã. Ao menos se...
-Bom dia! Então já arranjou alguma coisa?
-Difícil, isto está muito complicado, nunca me vi assim tão enrascado!
-A taxa de desemprego está nos píncaros! Tenho tanta pena dos jovens...
-Que se há-de fazer, é continuar...
-Vai ver que sim, esperança, é disso que precisa!
Seguiu pela rua baixo, levando na mala um molho de currículos. Cansado de horas perdidas em frente do computador decidiu procurar pessoalmente, deambulando pelas ruas em busca do tão desejado precisa-se. Andando atento deu-se conta de que teria estado demasiado tempo fechado em casa, meses talvez. As coisas tinham mudado. Muitas lojas encerradas, cafés, restaurantes. As ruas em obras davam a sensação de tudo estar desaparecido. Uma cidade fantasma, pelo menos nesta zona. E as pessoas com que se ia cruzando...tristes, pobres, pedindo, encostadas nas esquinas...nunca esteve em tamanha degradação...não serão só os meus olhos que assim vêm...Se a vida fosse uma película cinematográfica agora...
Sentou-se numa paragem de autocarro. Sem intenção de apanhar algum, apenas para descansar as pernas. Já caminhava havia um par de horas, os pés doíam-lhe. A leveza que sentira de manhã começava a chamar pelo regresso a casa. Dentro de casa sentia-se tranquilo, apenas dentro de casa. Onde as suas coisas o protegiam da feitude do mundo exterior, da degradação, da pobreza da alma e da vida. Não havia um jardim, uma flor crescendo, uma criança correndo, um sorriso saindo. Gente, gente passando apressada, mal amanhada, pálida e cansada. O horizonte já não existe mais aqui...Talvez seja hora de partir...E os seus olhos preferiam agora contemplar sarjetas, passeios, cães vadios. Tudo isso era normal, excepto o resto.
No conforto do esperado, repousando a atenção num contentor, um homem aproximou-se. Observou-o. Remexia procurando no lixo, talvez comida, talvez coisas objectos úteis. Quando conseguiu ver-lhe o rosto, inspirou de susto. Porque a sua cara era estranhíssima. Era a cara de um palhaço! Sem pintura, sem nariz vermelho, sem vestígios de circo ou de sorriso esgarrado. Um palhaço, ali mesmo, remexendo no lixo. E a vizinha falava de esperança...Era mesmo um palhaço, a fisionomia do rosto, o cabelo, o próprio nariz...até os sapatos por sugestão de tudo o resto lhe pareceram ligeiramente grandes e arredondados na biqueira. Provavelmente são grandes porque os encontrou...Então uma ideia tomou-lhe de imediato o pensamento...vou segui-lo.
Esperou que o homem terminasse e a uns metros de distância começou a segui-lo. Devagar lá ia ele andando, com os pés um pouco angulados, como se patinhasse pela rua. Coçava o rabo, coçava a cabeça mas ia a direito. Bêbedo não está...Ao curvar da rua deteve-se um pouco para não ser descoberto na sua perseguição. O outro era bem mais lento e ia carregado com dois sacos de plástico com o que pareciam ripas de madeira. O homem seguiu por uma rua mais estreita que logo dava a outra e a outra, saindo da zona, para uma mais periférica da cidade. Acho que nunca estive aqui...Pequenos pátios, casas sem passeios que se revelavam por ruas estreitas, tão estreitas que talvez os carros tivessem dificuldade em passar. Afunilando, bifurcando, perguntava-se aonde iria ele. E parou na porta de uma padaria discreta despercebida denunciada apenas pelo odor de pão acabado de fazer. Como é que será que alguém sobrevive aqui tão escondido?
Viu ele a entrar, esperou e viu ele a sair com um outro saco transparente carregando papo-secos. Passou então por um jardim, com árvores pequenas, laranjeiras jovens, como aquelas que na sua rua de infância vieram substituir árvores centenárias sabe-se lá porquê. Havia também algumas mesas de ferro com cadeiras pregadas ao chão. Havia um bebedouro e o homem encheu uma garrafa. Do outro lado do jardim, estava uma casita que não devia ter mais de quatro metros quadrados, parecia uma casota de cão, de cimento e telhado, sem janela, com uma porta de madeira semi aberta. Será que mora aqui? Lembrou-lhe também os jardins de outros tempos, havia sempre um lago com cisnes e umas casinhas pequeninas onde recolhiam os bichos durante a noite. Nesses jardins, moravam sempre, os guardas dos jardins, numas outras casitas, não muito maiores que estas.
O homem entrou. Atrás de uma árvore que não o escondia totalmente, creu que até aí o outro não tinha dado por si e aguardou. Mas o tempo passou, não escutava nada e o homem não saía de lá. Será que adormeceu? Aproximou-se muito zeloso da porta e procurou escutar. Nada. Nem uma respiração. Empurrou a porta que mal dava para ser totalmente aberta. Ninguém! Não havia rigorosamente nada lá dentro. Excepto um alçapão de madeira no chão, atrás da porta. Como tinha uma argola de ferro, puxou-a abrindo-se uma escadaria que desaparecia na escuridão por ali abaixo. Nada se escutava de lá. Então foi por aqui que ele foi...não sei que faça..pode ser perigoso...Perseguir alguém de dia pelas ruas não lhe parecera nada de extraordinário, mas agora, as coisas tomavam outro rumo, não sabia o que o esperava lá em baixo. E sozinho temeu. Do bolso retirou o telefone que tinha uma aplicação de lanterna. Conseguiu então perceber os contornos do caminho e dos degraus, mas em curva, pouco mais se via à frente...este palhaço anda às voltas...E desceu, um pouco mais seguro pela precária iluminação.
Era húmido o caminho. Lembrou-se do seu pânico de animais, ratos e ratazanas, morcegos, sabe-se lá o que anda por aqui...Talvez seja uma passagem do tempo da guerra, já me tinham falado disto...Sabia que estava a descer em caracol. E desceu até encontrar uma sala com várias saídas. Bonito..agora por qual terá ido ele? Em silêncio tentou escutar um sinal do homem. Deitou-se e encostou o ouvido ao chão em cada uma das saídas.
Quatro caminhos possíveis, se errasse não só estaria igualmente perdido, como tudo isto teria sido em vão. Mas na terceira saída, havia algo de diferente, não sonoramente. Quando se chegou ao chão percebeu pegadas parciais na viscosidade que o tinha acompanhado nos pés todo o tempo. Foi por aqui...E por lá seguiu. Agora o caminho era mais amplo e horizontal. Realmente pareciam esgotos, porque se começava a escutar água correndo ao longe, por entre as paredes. Sempre tive curiosidade em saber o que se escondia debaixo dos nossos pés...É provável que o homem viva mesmo aqui em baixo...O corredor dava agora para vários compartimentos ao longo, entradas para lugares vazios, mas numa delas, havia coisas. Tralha arrumada a um canto e uma cama de cobertores no chão. Devagar entrou não havendo sinal do homem, nem de nenhum outro. Um bafio de meias usadas e reusadas invadiu-lhe as narinas. Saiu e continuou. Nada havia ali que lhe desse pistas da vida de alguma coisa concreta, porque em nada diferenciava a cama improvisada dos mesmos mendigos de rua lá em cima. Mas na porta mais à frente, havia movimento. De fora, escondido, procurou perceber o que se passava. Ouviu sacos sendo mexidos, depois um barulho de alguma coisa a partir-se e finalmente marteladas.
Era ele. Eram as ripas de madeira. De dentro do compartimento saía uma luz trémula de uma vela. Se fosse descoberto...e se o homem palhaço tiver um desequilíbrio? E se ele for perigoso? Um palhaço assassino! Procurou desenvencilhar-se destas ideias que neste momento não ajudavam ao batimento cardíaco que já ia mais que acelerado. Espreitou e sentado no chão, construindo qualquer coisa, estava ele de costas. Sentou-se também no escuro a observar. Enérgico, o homem atarracado estava absolutamente concentrado na tarefa. De início não se percebia o que era. Era apenas ainda uma base não muito grande. Depois parecia que estava a dar-lhe paredes, uma caixa talvez. Algum tempo passou e o homem finalmente levantou-se deixando ver na íntegra o objecto. Era...não..não pode ser, para que é que ele quer isto...uma caixa que baloiça? Então o homem foi buscar uma manta azul encardida e dobrou-a na caixa...um berço?
Nesse momento o seu coração disparou, recuou e pensou que era hora de regressar. Porque esta história estava definitivamente a sair da estranheza para algo perigoso. Um mendigo solitário a construir um berço num esgoto no fim do mundo. Não se escutava choro nenhum de criança e mais ninguém parecia estar por ali. Sentiu o homem a caminhar e correu para se esconder mais no fundo do corredor. O outro virou na direcção oposta levando no braço o que parecia ser a manta, como se fosse a carregar uma criança. Mas se não vira criança nenhuma...Continuou a segui-lo. E uns passos à frente ouviu: chorar. Choro de bebé pequeno. O homem parou e embalando o embrulho no colo começou a assobiar...sim reconhecia essa melodia..música de circo, de malabarismos e...palhaços. E a criança calou-se. O homem continuou e foi desemborcar numas outras escadas que desta vez subiam. Viu-o abrir um outro alçapão. Aguardou um pouco e também ele passou para o exterior. Estava novamente na cidade. Desta vez reconhecia em redor. Estava nas traseiras da estação de comboios...não me tinha apercebido de ter andado tanto...pelas minhas contas estava bem longe da estação...Em volta, procurou pelo homem. Havia muita gente que passava. Umas entrando na estação, outras seguindo. Do homem nem sinal. Desespero! Depois de tudo, perdera-o. Entrou na estação, procurou junto dos comboios, nas bilheteiras, nas casas de banho, no exterior, nas paragens de autocarro, nos cafés...nada. Que desalento...
Nos dias que se seguiram procurou em jornais e noticiários por raptos de crianças de colo na cidade. Esperava encontrar algum sentido na história que tinha seguido. Voltou ao contentor onde tinha visto o homem pela primeira vez, à mesma hora durante todos os dias da semana que se seguiu. Procurou fazer o mesmo caminho que dava ao jardim e por mais voltas que desse para a frente, para a esquerda, para a direita, as ruas pareciam todas iguais, baralhando-se num mapa que parecia alterar-se à sua passagem. Não o encontrou. Nem sequer conseguiu dar com a padaria. Chegou a ponderar ter sonhado acordado, uma espécie de surto ou delírio. Foi passando o assunto a secundário e outros do seu quotidiano empurrando-o para o esquecimento. Chegou numa última tentativa a pesquisar na biblioteca municipal por mapas de esgotos e antigas passagens de guerra. Mas nada de concreto encontrou.
Estávamos no Inverno. Dois meses depois do encontro com o Homem Palhaço.
Dez da noite. Terminara finalmente o dia exaustivo de telefonemas comerciais. Doía-lhe tudo. Oito horas do seu dia perdidas naquela rotina, numa sala fechada, onde dezenas de outros operadores faziam o mesmo. Os dias eram de facto, todos, infernalmente iguais. Caminhando para casa, apressado porque a zona cada vez estava mais violenta e os assaltos àquela hora eram frequentes, escutou do nada, um assobio...o assobio da melodia do circo. Parou e olhou em volta. Estava naquela mesma rua do contentor. E de volta do mesmo contentor, estava o homem. O homem remexia em roupas que estavam abandonadas num caixote. Roupas de criança! E agora? Vou falar com ele? A rua está deserta...E se chamasse a polícia e contasse tudo...provavelmente não chegariam a tempo ou não acreditariam em mim ou seria tudo um miserável engano e...E o homem virou-se e fitou-o. Estava poucos metros à sua frente a olhar para si, olhos nos olhos.
As suas pernas tremeram. Procurou desviar o olhar e na sua mochila fingir que estava à procura de qualquer coisa. Na verdade estava, do seu canivete, um minúsculo canivete suíço que quando muito lhe serviria para cortar as unhas do outro. Conseguiu abri-lo e entalá-lo nos dedos da mão, disponível para sua defesa. Quando recuperou o homem no olhar, ele estava na sua frente. Tudo isto em escassos segundos de terror. Balbuciou um ridículo berro rouco. E o homem tocou-lhe na mão. Sem reacção, paralisou.
-Sei que me seguiste há uns tempos atrás.
-Eu..ah...
-Não tenhas medo. Não faço mal a ninguém. Respira - e sorriu, e esse sorriso pareceu-lhe mais macabro do que nunca, só lhe vinham à cabeça histórias de palhaços assassinos e até aqueles bonecos aterradores que matavam criancinhas - Eu conto tudo.
- Não..ah..não é preciso, eu estou com pressa...peço..desculpa - e tentou desembaraçar-se da mão pesada do homem.
- Se vieres comigo, eu explico-te tudo - largando enfim o braço dele - anda. E começou a caminhar dando-lhe as costas com confiança.
Não sabe porque não aproveitou o momento para correr desenfreadamente na direcção contrária. Em vez disso, caminhou atrás dele ainda desorientado. Não tinha a certeza de se ter urinado pelas pernas abaixo.
- Mas..onde vamos?
-Não muito longe daqui. Vens?
E fez-lhe sinal para se colocar a seu lado. Com o ar mais descontraído do mundo, andando devagar com o olhar caído. Havia tristeza profunda nele e isso começou a tranquiliza-lo. Talvez tudo isto tenha uma explicação lógica...
O caminho foi então familiar. Mas antes de chegarem ao jardim o homem passou por um pátio que dava para um pedaço de terreno abandonado. E lá estava ele. O cemitério do que fora em tempos, um circo. Pedaços de lona riscada caída, cartazes com caras de palhaços desbotados e uma caravana que...parecia ter sobrevivido a um incêndio...
-Foi aqui. Que elas...naquela noite..eu tinha ido reunir-me com o resto da trupe num bar lá em baixo na avenida. Estávamos no auge das nossas vidas...toda a gente ia ao circo...éramos amados e aplaudidos, havia artistas de todo o mundo aqui e viajávamos por onde queríamos. Éramos tão felizes...Sabes que os palhaços nunca choram? - e riu-se - a minha bebé ainda nem andava...e já tinha um minúsculo narizinho vermelho. Lizzi. A palhacinha Lizzi. Aurora, era o nome da minha mulher. Era uma acrobata lindíssima, quando ela voava pelos céus do trapézio o meu coração...e tudo naquela noite, ardeu...
- Mas...eu escutei naquele dia um choro...- e começou a chorar desalmadamente - que história triste...tudo é tão triste..não há esperança de nada...que desespero...
- Quem disse? Vem comigo...
Caminharam até ao jardim. Na mesma casita lá estava o alçapão.
-Confia em mim..os palhaços são todos boas pessoas.. - e começou a assobiar aquela melodia.
Descendo e percorrendo corredores, chegaram ao compartimento. Acendeu a vela. E lá deitada no berço estava realmente, uma criança dormindo com um pequeníssimo nariz vermelho.
-Quem é? - arriscou a perguntar...
-Lizzi, a palhacinha. Não vês que é ela? Oh minha pequenina...vem ao colinho.
A criança abriu os olhos e choramingou. Depois acomodada nos braços do homem voltou a fechar os olhos. Tocou-lhe para que as suas mãos sentissem que era real.
-Mas o incêndio..tu disseste que...e o tempo que passou..ela teria crescido...não entendo...
-Não entendes? Porque os teus olhos não têm esperança...Toma - e da sua mão abriu-se um nariz de palhaço vermelho - põe no teu nariz.
Iria entrar dentro do delírio do homem quando muito para não o irritar, havia ainda em si a leve desconfiança de que irritado poderia ser perigoso. Levou o nariz vermelho ao seu nariz e encaixou-o. Piscou os olhos porque lhe fazia impressão nas pestanas e quando levantou a cabeça, na sua frente estava...
-Eu? - deu um salto para trás.
-Quando foi que te mataste? Lembras-te?
-Eu..não..não..eu estou bem vivo..vivo - e desatou a correr aos gritos pelo corredor no caminho de volta. Abriu o alçapão e correu mesmo sem saber para onde, correu até conseguir reconhecer a sua própria rua, a sua própria casa. Fechou a porta trancando-a correu ao espelho. De olhos esbugalhados, lá estava ele, um nariz de palhaço, preso, incorporado no seu rosto. Incapaz de o remover, com todas as suas forças, tentou até a pele sangrar em redor. Não, nada disto é real..não pode ser..eu..um palhaço? Porquê?
Em desespero deixou-se cair sobre a cama olhando o tecto...e dos seus lábios, da sua boca, escutou-se então a melodia..do circo.
:) lindo
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