Pelos
veios movediços te descalço
meu pé de aranhiço te encalço
um ré de corda e peito de fora
ardente arranhando a âncora
pega de arrasto toda a fúria
de tanto querer de ser vida
a linha que à boca se deixa
de haver água e ar e gente
tudo num gesto de mistura
de hélice abyssus bichos
levantando erguidos sonhos
de escravatura a sorte somos
de escravatura a sorte somos
terça-feira, 23 de setembro de 2014
Solhas fritas com amor
I
Logo na primeira garfada, o peixe estaladiço desfazendo-se na boca e ao pescoço aquele arrepio doce como se alguém estivesse fazendo festas no seu cabelo. E a chuva corria a cântaros. Este tocar é meramente metafórico, pensa que está relacionado com o acto de dar, como se uma energia fluísse de uma pessoa para a outra e a encantasse, embalasse, adornasse do mais puro sentimento de paz. Há muitos anos que não comia peixe frito. E a alface com os coentros e a cebola roxa e o arroz de cenoura com feijão verde. Ficou com pena, os biscoitos de manteiga não estavam à altura deste banquete preparado com tamanho carinho pela vizinha, haviam ficado demasiado tempo no forno e estavam um pouco duros. Enquanto comia, a sensação ia percorrendo cada parte do seu corpo.
O almoço merecia por isso um copo de vinho.
Quatro anos. Faz esse tempo que vive neste prédio. Recorda-se dos primeiros encontros com a vizinha na entrada do prédio, um desastre. Tudo servia para implicância, tudo estava mal, nada era bem vindo. Hoje, a senhora tem as chaves de sua casa para qualquer emergência e não passa dia que não conversem sobre qualquer coisa ou troquem mimos culinários. Fora ela quem lhe ensinara que um prato nunca se devolve vazio. E vários eram já os pratos que acumulavam na casa uma da outra por não darem vazão às trocas. Trinta a quarenta anos, não sabe ao certo, as separam e no entanto, os modos de vida aproximam-se por acaso de um destino que acaba por ser o de muitos numa grande cidade. Sozinhas. Uma reformada outra desempregada. Uma vive no rés-do-chão a outra no último andar, separando-as famílias e casas cheias de gente que em tudo têm o seu curso normal de existência. Encontrando-se a meio, nas escadas do prédio, a meio de vida, uma cedo para partir outra tarde para começar, uma cansada para subir outra farta de descer. A meio de qualquer coisa, pressupondo haver mais qualquer coisa. Pressupondo correctamente.
II
Bateram as duas da tarde. Preparava-se para sair para a fisioterapia quando ao abrir a porta está alguém do outro lado. A luz que penetrava da vidraça por cima da grande porta de madeira da entrada do prédio encobria-lhe a visão. Afastando-se para dentro conseguiu perceber o contorno das formas do homem. "Boa tarde, desculpe incomodar, gostaria de saber se tem um minuto para me escutar". A senhora ficou irritada. "Mas quem é que lhe abriu a porta do prédio? Esta gente deixa entrar qualquer pessoa. Eu estou com pressa, estava de saída, lamento". E empurrando o homem para o lado trancou a sua porta e dirigiu-se para a saída do prédio. Finalmente sol radioso e caloroso. O homem de fato castanho e sapatos de pele engraxada ficou no mesmo sítio olhando-a com ar de cachorro abandonado. "Vai ficar aí especado? Eu preciso de ir e não quero deixa-lo aí dentro, sei lá quem é o senhor". O homem moveu-se então lentamente de olhos postos no chão para a saída. Ela bateu com a grande porta do prédio e seguiu pela rua afoita, erguendo a cabeça no corpo cabaçoide e enferrujado até à paragem do autocarro. Lá aguardando olhou de relance para a porta que ficara para trás, o homem continuava de pé, parado olhando as pedras da calçada lavadas pela correnteza da chuva.
A vizinha da loja ao lado veio à porta para espreitar o dia que se compusera de uma forma tão brusca mas tão bem vinda. Vendo o homem parado perguntou "Precisa de alguma coisa? Está à procura de alguém?" e este levantou a cabeça e respondeu com uma voz muito calma mas triste "Estou à espera da Cremilde". "Mas a Cremilde..." e o homem sentando-se no lancil do passeio ainda húmido virou-lhe as costas. A vizinha acabou por encolher os ombros e voltar para dentro da loja, vazia como sempre, aguardando-a a novela no pequeno ecrã instalado entre os móveis que estavam para revenda amontoados uns nos outros. Sentada na poltrona plastificada pensava "Deus queira que esta porcaria nunca seja vendida, depois onde é que me vou sentar?" e assim passava as suas tardes interrompida algumas vezes pelo marido que vinha buscar alguma coisa para a oficina da rua em frente. Pelas oito horas, fechavam a loja, trancavam a oficina e partiam para casa. Agora que pensa nisso, da sua janela lá em cima, nunca os ouvira a discutir uma só vez. Ás vezes escutava um a chamar pelo outro, ou porque era o telefone ou porque eram horas de almoçar e a mesa estava posta, a mesa que também ela não daria certamente jeito nenhum ser vendida.
As tardes assim demoravam a passar, conhecia de cor as rotinas de todos os que moravam por perto. Já mudara a decoração vezes sem conta, arrumara e desarrumara os seus armários, todos os dias limpava o pó e aspirava a casa meticulosamente e cada vez tinha menos vontade de sair de casa. O emprego novo tardava e não sabia como entreter os seus dias, sentia-se triste e sem perspectivas de um futuro mais promissor. Ás vezes saía. Hoje parecia que o dia até se compusera e o vinho do almoço dera-lhe vontade de passear para se distrair com outras coisas. Tomara banho, arranjara-se em frente ao espelho e descera as escadas com um ar fresco e bem disposto. Ao sair do prédio deu de caras com um rapaz sentado no passeio. Quando a sentiu passar, o rapaz levantou-se e dirigiu-lhe a palavra "Estava à tua espera". A rapariga deu dois passos atrás "Espera? Mas nós conhecemo-nos?" e o rapaz respondeu-lhe "Ainda não" e abriu-lhe bem os olhos negros como duas azeitonas reluzentes. A rapariga assustou-se, pensando ser algum dos habitantes do prédio das traseiras e continuou o seu caminho rua fora sem olhar para trás.
Pelas quatro horas da tarde um grande alarido instalou-se por toda a rua. Havia fumaça na atmosfera, um cheiro terrível a queimado e sirenes apitando nas proximidades. A vizinha da loja abriu a porta das traseiras, ela de lá que vinha a grande central de fumo. Algo estava a arder no prédio das traseiras. "Desgraçados, lá pegaram fogo à barraca, haviam de arder todos, que Deus me perdoe mas não andam cá a fazer nada senão estragos". Por essa altura já um amontoado de pessoas comentava a situação junto do prédio cujas labaredas saíam em fúria de uma das janelas que já estivera tapada por tijolos e agora estava esburacada. De dentro do prédio saiu um casal de jovens magros e encardidos tossindo pedindo ajuda que lá dentro estava ainda uma criança de colo cuja mãe não se sabia se estava também. Por entre aquelas vozes atarefadas em perceber a situação escutava-se realmente um choro de criança e o homem que antes estava no lancil do passeio, dera a volta ao prédio e estava agora olhando de fora da multidão. Quando os bombeiros finalmente chegaram o prédio ardia incandescentemente por inteiro. As mangueiras começaram então a bombear jactos de água e em pouco tempo as chamas já não eram senão fumo cuspido aos engulhos. Veio também a polícia e todos foram questionados. O casal há muito que se escapulira. Quando a vizinha da loja voltou o homem já não estava mais no passeio. A tarde fora trágica, falecera uma criança.
III
Já a noite caíra e a senhora voltava arrastando a perna mais inchada. Ao colocar as chaves na porta sentiu um arrepio de frio e uma aproximação nas suas costas. "Outra vez o senhor? Mas afinal o que é que quer? Não estou a gostar nada disto". O homem tocou-lhe no braço e o frio tornou-se mais intenso. "Deixe-me entrar, é preciso que me deixe entrar, o que tenho para lhe dizer é muito importante". A senhora não sentindo perigo nas palavras do homem, abriu a porta e ele seguiu-a. Cansada, sentou-se no sofá e indicou-lhe a cadeira para que ele se sentasse também mantendo a postura desconfiada aguardou que ele falasse. "Cremilde" e depois de a tratar pelo nome retirou do bolso do casaco um envelope. Dentro do envelope estava um retrato muito antigo de um casal jovem a preto e branco. A senhora colocou os óculos de ver ao perto pendurados no pescoço por um cordão de prata. "Mas...o que vem a ser isto? Esta parece a rapariga lá de cima...". Atarantada, levantou-se e levou o retrato para a luz do candeeiro querendo confirmar. "Parece, é um facto..." disse o homem olhando o infinito com aquele olhar triste de antes. "E como sabe o meu nome?", foi quando o homem a olhou nos olhos e lhe disse "Cremilde, nós conhecemo-nos há muitos anos atrás..somos nós dois, nesse retrato". A senhora começou a sentir-se incomodada com a presença deste homem misterioso e levantou-se decidida "Saia, vamos, saia, isto só pode ser uma brincadeira...e pensar que lhe abri a porta da minha casa, saia". E correu para a porta aguardando que ele saísse. O homem saiu deixando-lhe o retrato nas mãos dizendo-lhe "É preciso que se encontrem, não há mais tempo".
Ao sair, a rapariga voltava a casa e voltando a ver o rapaz na porta da sua entrada hesitou em aproximar-se. O rapaz lá estava sorrindo aguardando que ela se aproximasse. Era atraente sem dúvida, cabelos negros compridos, elegante, rosto forte e um olhar penetrante, mas as roupas pareciam um pouco desactualizadas, "Ninguém tão jovem se veste assim, deve ser um sem abrigo, coitado...coitada de mim, agora não me deixa em paz porquê...só a mim" pensou. E o rapaz voltou a falar-lhe "Cremilde...", a rapariga franziu o sobrolho "Como sabe o meu nome?" e foi então que ele retirou um envelope de dentro do bolso e dentro do envelope estava então um retrato. A rapariga olhou e espantada disse-lhe incrédula "Mas esta é a minha vizinha do rés-do-chão, a D. Crema...e este quem é? É o marido dela? Nunca ouvi falar dele". O rapaz tocou-lhe na mão e ela sentiu aquele arrepio que hoje ao almoço sentira, aquela sensação novamente a percorrer-lhe todo o corpo como se estivesse a ser embalada por anjos em pétalas de rosa. "Este sou eu e esta és tu, daqui a muitos anos". A rapariga desmanchou-se numa gargalhada e continuando nessa risota entrou pelo prédio e fechou a porta atrás de si não fosse a brincadeira acabar mal e o rapaz até ser mesmo perigoso. Ao passar pela porta da D. Crema viu que havia luz acesa e pensou em agradecer-lhe uma vez mais o almoço mas achou que já era tarde e deixou para o dia seguinte a visita.
IV
Nessa noite a chuva voltou com uma intensidade febril. Demorou algum tempo a adormecer, como se sentisse que a presença do homem ainda estava na sua casa, sentiu-se mais segura em deixar o candeeiro aceso. Lá em cima, algumas horas depois a rapariga tentava também ela adormecer. Tentava adormecer sem a ajuda dos comprimidos porque lhe davam a sensação de não ser um sono verdadeiro, nunca se sentia a cair no sono e quando acordava não se recordava dos sonhos. E os sonhos sempre eram algo de novo que nas manhãs seguintes lhe ocupavam algum tempo na cama na recordação e na tentativa de os compreender e tempo era coisa que precisava de ser gasta para ver se passava mais depressa e a vida mudava qualquer coisa. Depois de algum tempo às voltas na cama, acabou por adormecer por si mesma.
Degrau a degrau, ela estava a descer as escadas na escuridão seguindo uma aureola que vinha do andar do meio. Degrau a degrau com algum esforço, ela subia as escadas agarrando-se ao corrimão. No silêncio, escutava-se o gotejar lá em cima na clarabóia do prédio. Seguido e intenso. No meio da escadaria, as duas encontram-se e abraçam-se e das duas, segue uma para cima, uma que não é mais nenhuma das duas.
V
Cremilde é acordada bem cedo pelos seus dois filhos que pulando em cima da cama reclamam o pequeno almoço. Toca no cotovelo do marido e este rebola para o outro lado. Suspirando mas contente levanta-se e vai até à cozinha com os dois pequenos colados nas suas pernas como dois gatos pedindo mimo. "Meninos hoje farei solha frita para o almoço, não quero que me incomodem toda a manhã, dá trabalho e a mamã precisa de concentração". Os dois pequenos olharam um para o outro e pegando nas taças de cereais dirigem-se para a sala procurando o canal dos desenhos animados. Discutem então carregando nos botões ao mesmo tempo da grande caixa de costas largas. A mãe vem da cozinha ralhando para que deixem a televisão, que a muito custo fora comprada, uma das primeiras da rua. Na cama o marido sorri olhando o tecto e pensando "tudo está no seu devido lugar" e expirando da sua boca sai uma labareda de fumo imensa, donde se escuta um choro de bebé. Quando, como se de uma convulsão tudo lhe viesse a si, pensa "o bebé...eu devia ter salvo o bebé...era eu...não!" e berrando correndo à cozinha agarra-se a ela dizendo "perdoa-me...por favor perdoa-me..eu tentei..e tudo foi em vão...tudo se perdeu de como foi...foi erro meu...perdoa-me..."
Nesse exacto momento a rapariga acorda, e escutam-se gritos da entrada do prédio. Desce as escadas ainda em pijama aflita e na entrada da porta da D. Crema estão os vizinhos e uma ambulância estacionada na frente do prédio. Da porta escancarada, numa maca segue um corpo tapado. A vizinha da loja do lado chora dizendo "Coitadinha, diz que foi durante a noite...e não há ninguém para tratar do assunto...ela não tinha ninguém além de nós."
quinta-feira, 18 de setembro de 2014
O Globo
Notas
Setembro, 2014
"Quando era pequena sonhava com um paraíso aqui na terra.
Que a vida só podia ser um tufo de algodão doce ou uma maçã caramelizada. Que tudo tinha um lugar certo de acontecer, uma sequência segura que se esperava e bastava deixar-se ir apreciando a paisagem dessa viagem que só podia ser maravilhosa. A vida, um mistério em que as expectativas seriam sempre surpresas boas".
Talvez por isso, Deolinda não estivesse preparada para as agruras, as despedidas ou a morte. E cedo o confronto com a dor, lhe foi lutificando a alma, por dentro e por fora. E desse negro, já com cinquenta anos, quando consegue falar dele, tem ainda uma leve esperança de voltar aos trilhos do seu devido lugar, de um direito de nascer para ser feliz e que já chegaria de tanta tristeza. E nesses momentos de olhos abertos, não dá senão aos outros, momentos felizes, que a fazem feliz também. Percebeu que seria agora nos outros, que podia agir e mudar a vida destes para a melhorar e que isso não podia ter mais eco dentro de si, de paz e comunhão com o globo, mas que tendo nos outros, já seria um começo.
I
Sessão 24
"Toda a estrada nos leva aos nossos pais, dentro da nossa casa em pequenos, no momento em que nos vemos do lado de fora da casa, ela não é mais a nossa casa, mas nunca deixa de ser a nossa pequena casa. Foi assim o meu sonho na noite passada. Eu via-me simultaneamente dentro e fora dessa casa e senti-me angustiada. Não consigo recorda-me de tudo, há momentos que estão apagados e outros enevoados mas sei que a casa estava vazia, como se tivesse sido abandonada à última da hora. Isso remete-me para a altura que rebentou a guerra e o meu pai nos disse que teríamos de fugir rapidamente. Que fossemos lá dentro buscar o essencial, apenas o essencial e eu fui e voltei com meia dúzia de coisas que cabiam num saco de plástico mas pedi-lhe para aguardar. Lembro-me do ar dele de pânico e de ver uma multidão de pessoas ao fundo da rua que se aproximavam em fuga, parecia uma nuvem negra de poeira que assustava. Eu era muito menina ainda e fui a correr então lá dentro e trouxe a peça mais importante para mim naquela altura. A minha pinça. Não podia deixar de arranjar as sobrancelhas. Hoje riu-me disso é claro. Mas aquela casa é provavelmente a casa do meu sonho, abandonada a correr, na mesa da cozinha ainda o leite e os cereais a meio, nos quartos as roupas espalhadas e as janelas trancadas na esperança de um regresso. Mas o regresso demorou, estivemos um mês barricados com outros dois casais na cave de uma casa. Foram tempos complicados, diferentes de qualquer infância de hoje, ou da maioria".
E onde entra o globo nesse sonho?
"Ah, sim o globo. Quando estavamos no carro durante a fuga, o carro ia cheio, eramos cinco e entre mim e a minha irmã mais velha estava um globo. Sabe daqueles da Terra que se acende por dentro e gira. Já não sei quem teve a necessidade de trazer o globo e nem sei se na verdade ele lá esteve ou se foi fruto do meu imaginário durante o sonho, mas é curioso não acha? Um mapa para uma viagem incerta. No começo de uma vida imposta".
Mas o Globo aparece mais tarde certo?
"Sim, foi um presente do meu primeiro namorado. Era um outro tipo de mapa mundo, um meio globo de papel que se colava no tecto do quarto e que brilhava de noite, um planeta iluminado no céu estrelado. Desse Globo não faço a mínima ideia do que terá acontecido, foi numa fase em que eu vivia já sozinha e a minha mãe acabou por desmanchar esse quarto, o meu quarto de criança mas de outra casa, isto já bem depois de ter terminado a guerra e de termos regressado a Portugal - solta uma lágrima que limpa com um lenço branco de pano guardado no casaco - esse foi o meu tal namorado que se suicidou. Querer dar-me o mundo para depois...Mas não lhe guardo rancor hoje...durante muito tempo odiei-o por isso, por me ter abandonado, mas hoje, penso que foi até corajoso...uma coragem que a mim me falta. Agora da morte do meu António, pensei nisso tantas vezes...e não fui capaz".
Quer contar um pouco dessa história?
"O meu António, que Deus o tenha, era um bom homem, foi um excelente marido. Sabe eu casei-me muito tarde, já tinha quarenta e poucos anos. Casei com o homem que eu escolhi e foi na hora certa. Amava-o, tudo nele era tudo o que eu sempre desejei. Foram cinco anos de um casamento feliz. Depois - e volta a soltar lágrimas que lhe escorrem pelo rosto ao pescoço, parando um pouco para se recompor - adoeceu e vertiginosamente faleceu. Foram apenas cinco anos de vida conjunta, mas deixou-me saudade para a vida toda, já lá vão dois anos mas parece que foi ontem, ainda me custa muito estar sem ele. Mas eu tento, seguir em frente, não por mim mas pelos que estão à minha volta. Já não tenho família e a minha cadela, a minha companheira destas andanças faleceu o ano passado, ainda por cima, mas eu tento como posso, continuar. Pedindo a Deus que me traga coisas boas porque já chega de tanta dor. E tenho sentido que ao fazer coisas pelos outros, tenho encontrado um certo conforto em mim".
E ontem voltou a sonhar com o globo?
"Sim, ontem foi um dia estranho. Foi o meu primeiro dia de férias deste ano. Decidi ficar por aqui mas retirando o trabalho manter algumas das minhas tarefas e fazer também algumas coisas que vou sempre deixando para depois, como por exemplo ir à feira da ladra. E foi isso que fiz. Confesso que não foi fácil sair de casa. Entrei e saí três vezes, uma para buscar um guarda chuva porque o céu estava cinzento, outra para mudar de sapatos porque tive receio de escorregar com os que tinha e ainda uma terceira porque já ia a meio do caminho e reparei que me tinha esquecido do porta moedas. Mas lá fui. Calhou bem, como estava de ameaça de chuva a feira estava mais tranquila, menos gente. Não tinha intenção de procurar nada de especial, queria passear e ver por ver, mas numa esquina numa das bancas, estavam candeeiros à venda e o que me chamou à atenção foram os globos, eram cada um de uma cor diferente e eu até tenho lá uma base em casa que aguarda por essa peça, partiu-se há uns tempos. Olhei-os, perguntei o preço, achei um pouco caro e resolvi dar mais uma volta. Mas dei por mim obsessivamente à procura de um globo e vi vários, vidros trabalhados, outros só se vendiam com a base, todo o tipo de bases. Corri a feira toda e só vi globos, mas não comprei nenhum. Senti-me um pouco cansada e parei numa esplanada para beber um refresco. Foi quando ao meu lado, numa outra mesa se sentou um casalinho jovem com dois filhos. Um dos meninos trazia um livro daqueles que as páginas são tridimensionais, e cada página era uma parte do mapa da terra. O livro era redondo na forma do globo. Não sei, fiquei um pouco perturbada, tentei afastar do pensamento a história do globo mas na verdade sonhei com ele nessa noite."
Bem, hoje ficamos por aqui. Espero que continue a aproveitar as suas férias, falaremos mais no próximo dia. Um grande abraço de força - e abraçaram-se.
II
Quando cheguei ao consultório na manhã seguinte à porta, encostada com um laço estava uma caixa de cartão. Levei-a para dentro. Passei pela secretária da Dulce que ainda a esperava fria, consultei a agenda, só tinha pacientes daí a uma hora. Na minha sala sobre a mesa, olhei a caixa de todos os ângulos. Seria algo perigoso? Os pacientes dos últimos tempos não revelavam tendências agressivas e senti-me tranquila para a abrir. Era então um globo. Vasculhei bem a caixa e não havia qualquer carta a acompanha-la, nem sinal de quem a enviara nem porquê. Recordei-me da história da paciente do dia anterior e ocorreu-me que podia ser um presente com alguma simbologia que ela mesma haveria de esclarecer na próxima sessão. Coloquei o globo na prateleira atrás da mesa à janela guardando a ficha que o iluminava para trás. Embrulhei-me nas minhas notas para me preparar para o primeiro paciente do dia e acabei por não me lembrar dele mais ao longo das horas.
Por volta das sete horas, terminando os últimos apontamentos e já depois da Dulce sair, quando procurava um livro que me ajudaria num tema sugerido na última sessão, olhei novamente o globo. O dia escurecera sem que desse por isso e pensei porque não acende-lo. Procurei por uma tomada, em baixo junto ao rodapé e liguei ao ficha. Mas quando me levantei para o observar o susto foi tremendo, uma mão do lado de dentro, nitidamente uma mão lá dentro! Como se estivesse presa ou sufocada. Afastei-me tremendo-me as pernas e voltei a desliga-lo e liga-lo. Lá estava a mão, nitidamente uma mão aberta do lado de dentro junto à parede do globo. Confesso que nunca fui supersticiosa, considero-me uma pessoa absolutamente racional mas a situação desorientou-me. Corri, apanhando a mala no caminho, fechei a porta do consultório e saí para a rua, respirando fundo. Estaria eu a enlouquecer?
A noite foi mal dormida, aquela imagem não saía da cabeça. No dia seguinte, despachei-me ainda mais cedo, queria chegar depressa e constatar que tudo não tinha passado de um momento alucinatório provavelmente de estar eu a precisar também de férias. Abri a porta do consultório, por estranho que fosse, a Dulce já lá estava. "Tão cedo companheira? Até estranho? Está tudo bem?", fresca e bem disposta respondeu "Tudo na boa patroa". Pensando no globo pensei que ela seria a testemunha perfeita para a realidade da situação. "Dulce vem comigo por favor aqui à minha sala". Ela veio atrás de mim. Quando entrei, o globo estava desligado. A sala estava iluminada pelos raios de sol da manhã, "Então ontem esqueceu-se de correr as persianas?", não lhe respondi, corri as persianas para que a sala escurecesse e acendi o globo. Nada. Absolutamente normalissimo. "É giro patroa, foi um presente?", não querendo passar por doida respondi-lhe que sim. Voltei a abrir as persianas e coloquei o globo apagado no canto oposto da sala meio tapado por uma planta. Confiei que tudo não tivesse passado de um disparate da minha imaginação e não pensei mais no assunto até ao dia de receber Deolinda no consultório.
O dia da semana chegou. Na hora marcada esperava-a na minha secretária. Olhando para o relógio, achei o tempo lento, estava ansiosa com alguma coisa. Seriam perto das seis horas, normalmente era a última paciente das quintas-feiras. Seis e cinco. Esta paciente nunca se atrasava mas dando-lhe o desconto de alguma situação anormal, levantei-me para ir fazer um café à copa. Passei pela Dulce "Podes ir embora, só já tenho uma paciente, não te preocupes fico bem, vai descansar". Quando voltei com a chávena de café que fervia nas mãos, para meu espanto o globo estava iluminado. Aproximei-me e a chávena caiu-me das mãos, manchando o tapete de castanho amarelado. A mão, lá estava ela. Não podia ser! Virei as costas e fechei a porta da minha sala. Sentei-me na sala de espera deserta tentado colocar toda a minha lógica em acção mas com dificuldade. Medo, era o que sentia, das profundezas do meu estômago. Olhei para o relógio da secretária da Dulce, seis e meia, a Deolinda faltara. Todos os pacientes sabem que uma das minhas regras é a tolerância dos quinze minutos, depois disso não os atendo e sem aviso prévio, cobro-lhes a consulta. Ela faltara de facto. Abri a porta da saída e espreitei, ninguém. Um silêncio aterrador da escuridão do interior do prédio. A maior parte dos andares são escritórios. Senti mais medo ainda, peguei na mala do cabide e saí. Trouxe comigo a agenda dos contactos dos pacientes e fora do prédio, sentindo-me mais protegida liguei para a Deolinda. Para casa e para o telemóvel. Nada. Geralmente quando um paciente falta aguarda-se a próxima sessão para ver se volta e só depois se tenta insistir para saber o acontecido mas a história do globo estava a atormentar-me e resolvi ir até casa dela. Tinha de apanhar dois autocarros e assim o fiz. Ao longo do caminho muitas ideias estapafúrdias me passaram pela cabeça. Mas talvez tudo estivesse bem e eu precisasse realmente de uma pausa.
As pessoas tinham um ar cansado de regresso a casa. O autocarro estava muito cheio e de pé, colavam-se os corpos de uma forma desagradável. Lembrei-me daquele dito que havia lido há pouco tempo já nem sabia bem onde, dizia que as pessoas no metro não estão tristes, devido à excessiva proximidade, estão apenas a tentar esconder as suas emoções. Depois de ter lido isso começou a causar-me menos impressão o rosto cinzento que encontramos quer no inicio quer no final de um dia de trabalho nos transportes públicos à hora de ponta. Se o é ou não é, não sei. Ilude-se a minha ideia com esse dito. E sinto-me talvez um pouco melhor entre os demais. O dia escureceu de todo ao longo da viagem, agora os dias eram mais curtos.
III
Quando cheguei a casa dela, uma moradia pequena, reparei que tinha as luzes acesas. Estaria em casa, eu tinha feito um drama sem pés nem cabeça. Pensei em dar meia volta e esperar pela próxima consulta, não é bom habituar os pacientes a visitas domiciliárias sem razões extremas para o fazer. Mas quando ia a passar pelo portão para sair do pequeno jardim da frontaria da casa, reparei que a caixa de correio estava a abarrotar de cartas e algumas estavam caídas no chão. Havia folhetos de publicidade e um deles, reconheci-o de um dos supermercados, era da semana passada. Por norma nem olho para eles, deito-os directamente no lixo mas este tinha-me ficado na memória porque trazia artigos de escola e o regresso à escola trouxe-me nesse momento uma certa nostalgia, do primeiro dia de escola. Então a Deolinda não tinha recolhido o correio desde a semana passada, não combinava muito com ela, gostava de ter tudo arranjadinho e arrumado, era organizada, até porque a organização ajudava-a na estruturação e combate à solidão. Voltei atrás tocando na campainha. Voltei a tocar e nada. Espreitei pela janela ao lado da porta. Não parecia estar ninguém em casa. Mas não havia sinais de nada de diferente de uma sala normal. Pensei então em tocar na porta ao lado, as vizinhas saberiam de algo, ela já em várias sessões havia referido que se dava muito bem com elas. Bati na moradia ao lado. Uma senhora de bata e chinelos veio à porta. "A Deolinda? Ah realmente não a vejo há uns dias, ela costuma vir ver a novela a minha casa mas como está de férias até pensei que tivesse ido para algum lado, mas é estranho é, agora que penso nisso, não me avisava nem nada, então e o gato? Quem é que está a dar de comer ao Micas? Não me digas que ela pediu à Gertrudes e não me pediu a mim, que insulto!". Não querendo preocupar a senhora pareceu-me pertinente só por descarga de consciência saber se ela tinha uma chave. E tinha. Fomos então as duas e agora vendo as luzes acesas da outra, o ciúme da senhora dava lugar a uma preocupação genuína na sua expressão "Ai meu Deus, queres ver que lhe deu alguma coisinha ruim! E eu para aqui com estas ideias, Deus queira que não, Deus queira".
Foi preciso apenas rodar a chave, a porta não estava trancada. Entrando para a sala, tudo parecia no seu devido lugar. Havia em todo o espaço uma aura de conforto e cuidado manual, as almofadas pareciam bordadas à mão, as cortinas floridas, os vasos podados e na cozinha sobre a mesa, um copo de leite meio cheio, compota de figo e um pote de mel, ao lado um cesto de pão. Toquei no pão estava duro e cheirei o leite, estava azedo. O pequeno almoço ficara a meio. A senhora que me acompanhava agarrou-se ao meu braço com tamanha força que as unhas se me vincaram na pele, gemendo eu de dor. Passamos pelo quarto e a cama estava ainda desfeita mas de Deolinda nem sinal. Chamamos por ela e nada, corremos os cantos todos à casa, nada. A situação era alarmante e chamei então a polícia dando a ocorrência do desaparecimento.
Quando saí da casa senti no peito uma angústia estranha. Era noite cerrada já mas a ideia do globo badalava na minha cabeça como sino berrante. Eu tinha de voltar ao consultório, estaria lá a resposta.
IV
Hospital de Santa Maria, 4 da manhã
"E o que fez depois de ter saído da casa da paciente?"
Entrando no prédio deserto àquelas horas confesso que as pernas me tremiam perante a imagem daquela mão aterradora. Entrei, acendi as luzes e abri a minha sala. Lá estava o globo, no mesmo lugar. Carreguei no interruptor e ao acender da luz amarela interior, lá estava a mão colada na parede do mapa mundo. Imóvel e silenciosa. Sentei-me na poltrona dos pacientes olhando para ele. E com o passar dos minutos a familiaridade com o fenómeno acalmou-me. Nunca em doze anos de profissão me acontecera qualquer fenómeno paranormal e tudo em mim procurou sempre a explicação mais racional, considerando as emoções uma fraqueza que só aos pacientes seria permitida. Mas havia algo de espírito ou irracional nesta situação e não sei porquê aproximei-me do globo, estendi a mão aberta e toquei-lhe na superfície sobre a mão interior. Foi nesse momento ou a partir desse momento que nada mais me recordo. Acordei aqui, onde me encontro agora conversando consigo, doutor.
V
As duas mãos tocaram-se e a mão da terapeuta mergulhou então no espaço interior do globo, seguindo-se todo o seu corpo. Como se passando a outra dimensão, os sentidos demoraram algum tempo a adaptar-se à luz e aos contornos. Parecia que tudo estava em arrasto, num contínuo de cores e formas oníricas. Do outro lado estava Deolinda. As duas em silêncio contemplando agora lado a lado. Saídas de um arco-íris deslumbrante, as cores eram doces e ao mesmo tempo intensas. O céu rosado de laivos amarelos fortes, como se o sol tivesse sido espalhado tal gema num caldo de abóboda celestial. No horizonte colinas de um verde brilhante pingado de gotas de cristal aqui e ali e pássaros de azuis e vermelhos voando ao largo de inúmeras copas de árvores gigantescas.
Então ela deu-lhe a mãe e disse-lhe "Ainda bem que veio ter comigo, sempre gostei de si, não podia escolher outra pessoa para estar ao meu lado deste lado". A terapeuta meio adormecida pelos sentidos respondeu "Mas onde estamos Deolinda?". A outra levou-a pela mão e sentou-se na sombra, num baloiço branco onde cabiam as duas fazendo sinal para que se sentasse também.
"Não sei bem mas é tudo o que sempre sonhei. Recorda-se de um exercício que fiz no seu consultório aqui há uns tempos? A Arca de Noé? Eu lembro-me bem, lembro-me de ter de referir quem ou o que eu levaria para um lugar sem volta e na altura...". E a terapeuta completou-lhe a frase "não levaria nada nem ninguém, só a si e ficaria lá para sempre por ser um paraíso...por ser o lugar do mundo mais bonito e feliz, bem diferente deste...ou daquele em que estavamos, sim eu recordo-me bem Deolinda". "Pois sim, eu encontrei esse lugar, dentro do globo, e não podia deixar de partilhar consigo esta dádiva". A outra levantou-se e afastou-se preocupada. "Mas isto não pode ser real?! Estamos dentro de uma espécie de sonho ou algo delirante...é preciso voltar Deolinda, aqui não é a realidade!". A outra acompanhou um pássaro que levantava asas no céu para longe. "Real? A mim parece-me bem real não lhe parece a si? E o que é a realidade? Desde criança que só conheço a partida, a dor, a morte, a escuridão e a desesperança. Aqui tudo é perfeito. Tenho até esperança de encontrar o meu António, ele deve estar por aí, só preciso de acreditar."
A terapeuta não sabia bem o que dizer, estava também ela confusa. "A Dra deixa assim para trás uma vida tão interessante? Venho também a observa-la ao longo das nossas sessões, não é só o meu espelho, tenho sido também o seu. Sei que entra cedo e sai tarde, sei que vive sozinha e só ao Domingo reserva tempo para si e até ao Domingo a Dulce referiu na sala de espera que a Dra vai para lá muitas vezes. O que tem feito da sua vida? Escutar a vida dos outros? Ajuda-los? E a sua? Tem sido feliz? Quando a Dra me felicita por encontrar prazer em ajudar os outros e algum conforto para a minha solidão, não estará também a falar de si? Eu não a escolhi por acaso".
"Mas Deolinda..." e acabou por chorar, lágrimas compulsivamente soluçando-lhe de dentro. "Eu ainda tenho sonhos, eu ainda quero uma vida feliz para mim...não tenho corrido atrás dela é verdade, mas ainda a desejo...eu sei que sim e a Deolinda sabe que também tem à sua espera coisas boas, lá bem no fundo eu sei que tem esperança, sinto-a muitas vezes nas suas palavras". A outra aproximou-se dela e segredou-lhe ao ouvido como se um sopro encantador lhe trouxesse a paz percorrendo-lhe toda a espinha até ao arrepio dos cabelos na nuca "Aqui."
A terapeuta levantou-se e insistiu nas suas poucas forças endireitar-se "Não, aqui vejo realmente beleza e paz mas não vejo mais ninguém, não é menos solitário que do outro lado." "Aí é que se engana, a Arca de Noé é real, bem, ela existe num outro plano diferente da que nos conta a história e poucos são os que a podem conhecer, mas ela existe, estamos dentro dela. E acredite há outros como nós, eu já estive com eles, quando estiver preparada iremos ao encontro deles". "Outros?" e Deolinda reafirmou "Sim, outros como nós, que receberam esta dádiva". "Não, não posso cair consigo neste delírio, o meu papel aqui só pode ser tentar que volte comigo para a realidade, para a nossa realidade".
Perante estas palavras instantaneamente o céu cobriu-se de nuvens escuras e raios e trovões alcançando a copa das árvores e também elas se tornaram negras, secas, lascando e abrindo de ocas. As cores do arco-íris passaram ao espectro do preto como se absorvidas por uma agressão medonha e a terapeuta encolheu-se com um medo de terror infantil. O rosto de Deolinda mudou, parecia em fúria, a pele empalidecera a ponto de deixar transparecer a caveira ossuda que se escondia debaixo da pele. E falou com um tom que nunca lhe escutara antes "A Arca pode ser um sonho mas também pode ser um pesadelo, para aqueles que não acreditam, para aqueles que a negam depois de a receberem, para aqueles da ingratidão, o castigo da morte no limbo do nada, para sempre".
A terapeuta ajoelhou-se agarrada aos pés de Deolinda implorando "Por favor, venha comigo, eu irei ajuda-la, estarei sempre ao seu lado". A outra afastou-a de si com desprezo "Não, o meu lugar é aqui". "Mas então o meu lugar é lá, eu ainda tenho muito para fazer daquele lado, eu preciso de ajudar os outros, pense em todos os pacientes que deixo para trás, a Deolinda está só, eu compreendo que se sinta desligada e esteja em paz para partir mas eu não estou, muitos dependem de mim do outro lado, estão em risco, precisam de apoio, tal como a Deolinda precisou na morte do seu marido, eu estive lá, preciso de estar lá para eles, por favor deixe-me partir." A ideia da terapeuta era manipular a culpa de Deolinda para que a deixasse partir. E no rosto dela começou a distanciar-se a agressividade e aos poucos voltou a si. O céu levemente foi então limpando e tomando a tonalidade de rosa outra vez. Então a terapeuta rematou "Deolinda, eu gosto muito de si, quero todo o bem para si, se está certa de ser mais feliz aqui quem sou eu para lhe dizer o contrário. Eu não sou digna deste lugar, o meu sofrimento não foi nem de leve nem de longe igual ao seu ao longo da minha vida, tenho tido uma vida tranquila, sim talvez sossegada demais, mas tenho sido poupada de dores e perdas maiores e por isso, não conheço tamanha angústia nem posso julgar verdadeiramente os seus atos. Deixo-a com todo o meu carinho, estarei sempre lá".
E partiu.
VI
Notas Novembro, 2014
"Sinto-me no limite, de não aguentar mais. De ter perdido todo o sentido estar vivo. Afinal o que fazemos aqui na terra? Que a vida não é senão isto e nada mais que isto? Não posso crer que tanto custa a nascer, que berramos e choramos logo ao nascer e durante todo o caminho, acabamos por andar neste ciclo, de voltas e reviravoltas, para depois morrer, só isso. E o que deixamos para tras? Que legado esse pode ser assim tão precioso? Pois bem, vejo as minhas últimas forças para continuar em frente nos meus filhos, que por eles me levanto e continuo, não quero imaginar sequer a minha vida sem eles, já não estaria cá há muito tempo mas no entanto tenho sonhado insistentemente com o globo, não sei donde me vem essa ideia, o globo, em todos os sonhos ele aparece primeiramente acompanhado de uma sensação boa, como se estivesse a bordo de um carrossel e depois não sei, parece que caio num buraco e acordo".
Francisco, Sessão 15. Explorar melhor o sonho nas próximas sessões. Acompanhamento atento, noto sinais de fragilidade suicida.
segunda-feira, 15 de setembro de 2014
Um Tango à Janela
"O Tango é um pensamento triste que se pode dançar"
Discepolín
Discepolín
I
Pelos beirais corria uma brisa fresca rompendo os últimos raios de sol de um Verão quente e seco que se despedia pelos dias de Setembro. Descendo a colina, o olhar perdia-se nas margens do rio, onde um barco à vela se aproximava lentamente da outra margem, de outra cidade. As duas em espelho, revendo-se todos os dias, revelando-se na sua vida contínua em voos de pessoas para baixo e para cima. Do lado de cá, olhares curiosos em binóculos nos miradouros, os últimos turistas no deslumbre de terraços de sonho, telhas floridas e janelas indiscretas. Passagens de dentro e fora, rituais de casa, famílias barulhentas, roupa estendida sem vergonha, regando vasos de uma corrente cujas pinceladas dão cor a uma cidade calçada de romance.
São nove horas da noite.
Ele chega. Descendo do Ascensor, carregado com uma mochila e uma mala de mão. Traz consigo os primeiros nocturnos que se resvalam para encontrar uma mesa para jantar e os últimos diurnos cujos pés imploram por um banho quente e uma cama confortável. No topo da colina, uma a uma as luzes vão-se acendendo, dando uma áurea de encantamento de promessas de folia, a cidade que novamente desperta depois de uma breve sesta ao poente. Procura pela direcção da casa num pedaço de papel guardado no casaco onde havia rabiscado um mapa pelo caminho. Rua Direita, 4º andar.
São nove horas da noite.
Ela abre a janela do 4º andar. Pelas portadas vidradas entram agora os primeiros gestos da noite. Ajeita a planta no canto debruçada na varanda. Na rua estreita caminhando as pessoas conversam animadamente palavras de outros continentes. Descalça o fresco traz-lhe um arrepio ao pescoço, passando a mão e levando os cabelos à nuca, deixa-se envolver pelas onduras da cidade. A vista em frente é uma outra janela que a pouco mais de um braço se encontra ainda fechada. Há dois meses que vive nesta casa, uma mudança que ainda lhe deixa alguma estranheza sobretudo pelo aperto das ruas do bairro. Virando o rosto, o rio lá em baixo espelhando a lua redonda e amarela. Doce e solitária, compondo o céu de véus desnudos. Volta para dentro, deixando a janela na brisa.
Ele encontra a rua, na porta do prédio espera-o uma senhora rechonchuda sisuda. Sobem então e ela mostra-lhe a casa. "É um prédio antigo, não temos elevador e as escadas são estreitas, não têm luz, estamos a tratar disso, tenha cuidado. Então veio de viagem não é verdade? Vai ficar por cá muito tempo? O mínimo que alugo são três semanas, recorda-se disso? A casa está mobilada e aqui da sala, tem a melhor vista, venha ver o rio...". Ao abrir a janela, o olhar dele entra dentro da casa dela. Uma cortina leve branca deixando espreitar uma outra sala gémea desta. E a senhora volta-o para dentro "Então vem a trabalho ou vem passear?", "Venho a trabalho, sou jornalista. Trabalho para uma revista de viagens, sou português mas vivo em Londres desde criança e finalmente agora posso regressar por algum tempo". A senhora entregou-lhe as chaves despedindo-se "Tem aqui muito com que se entreter". A porta fecha-se e ele pode enfim despir-se e tomar um banho. A primeira noite nalgum lugar é sempre a mais difícil, por mais tempo que passe viajando, a solidão bate sempre nesse lugar ao chegar. Todas as divisões da casa eram pequenas e isso dava-lhe uma sensação de aconchego. Volta à janela para fumar um cigarro. São nove e meia da noite.
Na cozinha ela prepara o jantar. Nada de muito complexo, hoje é sexta feira e é noite de encontrar os amigos pelos bares apinhados do bairro. Enquanto a massa coze na panela ao lume, vai ao quarto e procura pelo vestido preto. "Está lá fora ainda na corda" pensa. "Não teve tempo de secar, é melhor escolher outra coisa". E dando volta ao armário, escolhe uma saia e uma blusa para combinar com os sapatos.
Ele tem fome. Vai até ao quarto e ainda com a mala meia aberta, espalha as roupas pela cadeira, "Depois arrumo isto". Vestiu umas calças e uma camisa, calçou-se e procurou pela carteira e as chaves. Iria procurar por um lugar simpático para jantar por aí. Fechou a janela e saiu, descendo as escadas encaracoladas e sombrias. Cá fora, espreitou debaixo a janela lá em cima do prédio da frente. A cortina continuava dançando tímida no mistério que a revelava isolada de tudo o resto. Não sabia se havia de subir a colina para o castelo, se descer ao rio. Na indecisão, e não querendo perder-se logo na primeira noite, procurou pelas ruas paralelas à sua por um restaurante. Amanhã teria tempo de olhar o mapa e os guias turísticos que trouxera para explorar a cidade, uma cidade que apesar de sua era totalmente desconhecida. As memórias que lhe espreitam são filigranas de um tempo de criança pequena, um tempo em que os pais pobres emigraram no sonho de uma vida melhor. De português sente a saudade de um nem saber de quê.
Passou por dois restaurantes onde não havia lugar e numa esquina mais recatada, um tasco mais singelo serviu-lhe sardinhas e salada de batatas e pimentos assados. Recordou-se do sermão aos peixes. As sardinhas "Tomai o exemplo das irmãs sardinhas...Porque cuidais que as multiplica o Criador em número tão inumerável? Porque são o sustento dos pobres". Mas hoje sentia-se rei porque numa boa mesa portuguesa estava um português de gema. Esta viagem há muito que a aguardava, que aqui havia de encontrar um elo, uma parte do seu código genético que permanecia na escuridão. Ao jantar bebeu um pouco de vinho e depois perguntou ao senhor do tasco se havia algum miradouro perto. Com expressões recatadas e viravoltas atrapalhadas o homem conseguiu orienta-lo.
O alarido nas ruas aumentara, parecia que a cidade estava em festa, copos, música, bares abertos e eléctricos passando.
São dez e meia. Ainda ajeitando atrasada o cabelo vermelho endiabrado, ela passa pelo miradouro para descer até ao rio. Sem tempo de grandes deslumbres apressa o passo que nos saltos dos sapatos é um tango numa linha de trapézio, arriscado. Já estariam à sua espera. Hoje havia concerto e os primeiros guardavam mesa para os últimos. Nesta altura do ano parecia que a cidade não era sua, como se viajasse para outro lugar sem sair do mesmo, porque menos estão os que lhe pertencem, a cidade toma múltiplas identidades confundindo-se com todos os lugares e nenhum. Odiava esta altura de facto. Odiava falsamente estar e não estar. Não tinha paciência para a euforia planeada das férias dos outros, e nunca tinha dinheiro para sair ela mesma daqui. As muralhas do castelo eram um calvário a que aprendera a amar, como cativa de um rapto a que se acomodara.
Ainda acusando o cansaço da viagem e da correria da entrega do último trabalho, ele despede-se da vista prometendo voltar de dia para outros espectros de vida. Lentamente e absorvendo cada encontro, regressa a casa. Adormeceu sem qualquer esforço sobre a cama vestido mas descalço.
São quatro da manhã. De sapatos na mão cambaleante ela empurra a porta do prédio procurando a luz das escadas. "Não funciona? Porcaria de casas velhas!", subindo quase de joelhos ao 4º andar entorna-se à porta de casa que quase sem resistência se abre, espanta-se "Então mas eu não fechei a porta de casa? Será que me assaltaram a casa?". Sem acender as luzes e destemida pelo álcool que trazia no corpo procura escutar por ruídos de dentro de casa. Escuta então uma respiração profunda e arrastada do quarto. E gatinhando até à cama encontra dois pés descalços dormindo. Toca-lhes e constatando a sua realidade, solta um grito. Ele acorda ofegante e assustado. E procura pela luz do candeeiro na mesinha de cabeceira. Diante de si uma rapariga atónica, de joelhos como um gato assanhado à sua beira. Abre bem os olhos e tocando no seu peito percebe que está de facto acordado.
Com a luz acesa, ela percebe então que não está na sua casa. Corada levanta-se "Peço desculpa, parece que me enganei de casa...". E dando meia volta corre para a porta descendo as escadas quase em escorrega. Cá em baixo olha para o seu prédio e envergonhada entra por ele a dentro como se fosse o buraco mais desejado do mundo.
Ele ficou sentado na cama pensativo. "Como fui esquecer-me de trancar a minha porta?" e voltando a deitar-se ficou ainda algum tempo a recordar os traços do rosto que tão abruptamente o acordara. Acabou por voltar a adormecer.
O dia amanheceu cinzento nos beiços das gaivotas e das velhas que afinando a voz se preparavam para mais um dia de feira ao largo da igreja. Ela e ele acordam. Ainda perdido nos acontecimentos da noite anterior, ele deixa-se ficar um pouco na cama pensando nela. Ainda dorida a cabeça da noite anterior, ela levanta-se quase de olhos fechados procurando por água e um comprimido. Senta-se no sofá da sala, olhando a janela fechada, pensando nele do outro lado. Estaria ele acordado? Estaria ela acordada?
Ele levanta-se e vai até à cozinha. A única coisa que a sua mala de viagem não dispensa é café solúvel para a primeira manhã. Seria prático. Era preciso descobrir uma mercearia, não tinha mais nada em casa para comer. Aqueceu a água, fez o café e sentando-se no sofá da sala olhou para a janela. Estaria aberta a dela? Levantou-se e aproximou a cabeça, afastando a cortina apenas um dos seus olhos podia ver e ser visto. Estava fechada. Voltou ao sofá para terminar o café e procurar orientação no mapa, planeando assim o seu dia. Uma sensação de curiosidade doce tomou-lhe novamente o pensamento. Quem seria ela? Achara-a francamente bonita e selvagem. Aqueles cabelos vermelhos. Labaredas faiscando um rosto pálido e assustado. Riu-se da situação e desejou encontra-la novamente, ardentemente depressa. Passou-lhe pela cabeça ir bater-lhe à porta, mas a situação havia sido constrangedora e podia ser mal recebido. Afastou a ideia dos seus pensamentos. Muito tempo em viagem sempre sozinho deixava-o assim, carente de aventuras, as quais a maior parte das vezes só decorriam mesmo no seu imaginário, quer por inércia de concretização quer por partidas e chegadas sucessivas, quebrando o elo de histórias entardecidas de dias sem história. Havia qualquer coisa no rosto dela que lhe remetia à sua infância. O desenho do queixo talvez. Alguém que conhecera em criança mas cuja recordação não lhe deixava senão uma quebreira de primeiro beijo. Alguém...
De volta ao quarto ela procura pelo telefone com a ideia de ver as horas. "Meu Deus, são onze horas! Já devia estar na mercearia desde cedo...Sábados! É sempre a mesma coisa...". Vestiu umas calças de ganga e uma blusa, calçou as sandálias e a correr desceu as escadas. Pelo caminho voando-lhe os pés o mais depressa que podiam, passou-lhe a sua vida pela cabeça. Três empregos...não seria demais? Não tinha tempo nem para ir à praia, estava pálida que nem uma parede de cal. Como podia ter uma relação com alguém se a sua vida era organizada por horas daqui para acolá? E sempre emparedada nestas ruas estreitas, cujo horizonte não passava de um mesmo rio, que por mais belo que fosse já enjoara a vista, de ser sempre ele mesmo. Nada acontecia de novo. Nada, com a excepção da noite anterior. Quem seria ele? Donde viera? Achara-o deliciosamente tentador. E aqueles pés...E aqueles olhos verdes...Entrando pela mercearia, dando de frente com os olhos furiosos do patrão, o encanto deu lugar a um ataque de raiva "Já sei...que quer que faça? Não tenho direito nem a dormir mais duas horas ao sábado, vida cruel! Que quer que lhe diga? Não posso ter outra...desculpe, para variar...". O patrão ia repostar em fúria escalando mas subitamente enterneceu-se com ela, "Miúda, eu sei que tens muitas dificuldades, que és jovem e gostas de te divertir mas se assumiste este compromisso...devias tentar...eu preciso mesmo da tua ajuda aos sábados...é o dia de mais movimento." Ela surpreendeu-se. Não estava habituada a atitudes paternais. Desde muito jovem que estava entregue a si mesma. Uma infância feliz mas curta. Para trás ficara uma aldeia e uma história de despedida em tristeza. Não queria pensar agora nisso "Tem razão..mãos ao trabalho. Vou para a caixa."
Meio dia. Depois de infindáveis esquinas labirínticas e já sem esperança, ele encontra finalmente a mercearia. Por uma porta de madeira escancarada, fazendo soar a campainha dos visitantes, dá sinal da sua entrada no pequeno espaço apinhado de prateleiras e mais corredores labirínticos. Da caixa, acabando de atender um casal de chineses ela olha para o espelho redondo no tecto, "Não param o raio dos clientes...mas...não pode ser, é ele, aqui?". Corada, deixa a caixa e procura pelo corredor onde ele circula. Não querendo ser vista, deixa-se observá-lo do fundo. Perdido nas conservas, parado com uma lata de sardinhas na mão. "Que fazes aí miúda? Tens clientes na caixa...hoje vens mesmo virada...". O alvoroço provocado pela repreensão do patrão fá-lo virar a cabeça na direcção deles. "É ela...", sorrindo aproxima-se. Mas ela fingindo não o conhecer, volta para a caixa fechando o olhar nas notas da gaveta, dedicando-se ao grupo de ingleses que já aquelas horas manifestavam uma euforia de pouca água. Atrás deles e esperando por um momento a sós com ela, ele aguarda nervoso, pensando no que lhe dizer.
Quando finalmente chega a vez dele, olha-a nos olhos e diz "Olá". Ela fica parada a olhar para ele sem reacção. E ele continua, "Eu...gostava de convidar-te para jantar". Não sabendo donde lhe vieram aquelas palavras, estendeu a lata de sardinhas na direcção do olhar dela. Ela não aguentou, explodiu de riso, "E é isso que vais oferecer-me para jantar? Estou tentada!". O riso dela descontraiu-o, "Ah, bem talvez fosse mais interessante seres tu a escolher um restaurante giro, não conheço nada daqui, cheguei ontem". A simplicidade dele encantou-a mais ainda. "Saio às oito" e sorriu-lhe com marotice covando-lhe apenas esse lado do rosto. "Boa, espero por ti em casa e vamos". E saiu extasiado, sem olhar para trás. Lá dentro o sorriso dela não se desfazia. Coçou a cabeça, passando a mão pela boca como se o quisesse esconder.
Ao longo do dia várias foram as repreensões do patrão dando graças a Deus quando chegou a altura dela ir para casa "Vê se descansas miúda, hoje estavas com a cabeça virada ao contrário...". Todo o dia ele não lhe saíra do pensamento. Estava nervosa com a situação, falta de prática nestas coisas, não sabia nem o que vestir. Chegando a casa, acendendo a luz da sala, ele sentiu a presença na janela dela, espreitando-a. Ela passou do quarto para a sala em cuecas e voltou a passar uma vez com algo que parecia uma saia rodada e outra com uma outra mais comprida. Tudo silhuetas que ele conseguiu perceber da janela dele, e este espreitar sem ver, abria-lhe ainda mais o apetite. Estava pronto há uma hora, todo o dia vagueara pela cidade com ela no pensamento. Como se a cidade tivesse agora os contornos de um só rosto e tudo fosse música aos seus ouvidos, uma música sensual e quente de encontro, mistério e corpo.
Oito e meia. A janela dela abre-se. Percebendo, instantaneamente ele abre a dele. Frente a frente, o 4º andar que os separa num abismo tentador é a ponte dos seus olhares. "Como és bonita!", ela voltou a dar-lhe aquele sorriso, sentindo envolver-se no verde profundo e calmo dos olhos dele, "Vamos?" e fechando-se as janelas, desceram as escadas e encontraram-se à porta.
Quando começaram a caminhar lado a lado, ela percebeu que ele era bem mais alto que ela e ele percebeu que ela era ainda mais bela, por ser delicada e pequena. Alguns metros à frente quando teria de escolher se iam para a esquerda ou para a direita, ela parou perdida. "Pensaste nalgum lugar?" e nas palavras dele ela viu então que ao longo do devaneio do dia se esquecera de pensar num restaurante. Rapidamente procurou visualizar na sua cabeça mas a presença dele atrapalhava-lhe o pensamento. Então ele sugeriu "Estava a ler num roteiro turístico que há um restaurante perto do castelo muito bonito, com a vista mais bela da cidade, queres ir a esse?", pela descrição pareceu-lhe um lugar que conhecia de nome mas por ser caro nunca lá fora. Como a viu de volta das mãos preocupada ele tranquilizou-a, "Não te preocupes é a revista que paga e além disso faz parte do meu trabalho recolher histórias e vivências contadas na primeira pessoa". "Bem sendo assim, será um prazer acompanhar-te".
Ela ficou deliciada com a ideia de jantar num lugar como aquele e sentiu-se aconchegada por ele ter adivinhado a preocupação dela, revelava sensibilidade nele e isso agradava-lhe e muito. A caminhada até ao castelo ainda era longa e ela foi-lhe mostrando pormenores da cidade aqui e ali. "Sabes que eu nasci nesta cidade...mas parti muito pequeno", "Sabes que eu cheguei aqui muito nova, mas nasci numa aldeia" e assim foram preenchendo algumas lacunas da estranheza que os envolvia, sem no entanto quebrar o desejo de conhecer algo que não se traduzia por palavras entre eles.
O restaurante era um lugar de sonho. Toalhas de linho imaculadamente branco, três copos de cristal, empregados fardados a rigor e uma vista daquelas de fotografia de catálogo de luxo. Ela não teria imaginado tanto, que a cidade conseguia ainda surpreende-la. "Aposto que nas tuas viagens estás sempre a conhecer lugares como este e raparigas como eu?, aquelas palavras souberam-lhe a veneno na própria língua. Ele demorou algum tempo a responder e acabou por calmamente lhe dizer "Deus está na poesia entre os homens e são poemas como tu que nos fazem querer ser os olhos desta cidade. Como nenhuma outra". Ela encolheu-se envergonhada, "Vejo que também gostas de dizer coisas bonitas", "Sim, tenho muito tempo livre nas minhas viagens para que o pensamento se perca nas palavras bonitas e ás vezes guardo-o num caderno, talvez um dia possa publica-lo, não sei...mas respondendo à tua questão...lugares bonitos sim, pessoas bonitas nem por isso, estou só há muito tempo". Ficou mais tranquila. "E tu? Tens alguém?", neste tipo de questões era justo que o outro também fosse tranquilizado, "Não, trabalho demais, nem tenho tempo para encontrar alguém". E com esta informação puderam seguir para outros voos sem preocupações minantes. "Talvez me possas mostrar esse caderno mais tarde" e voltou àquele sorriso maroto. "Mais tarde terei todo o gosto".
Mais tarde chegou. Onze horas da noite.
Na rua lado a lado das portas, os dois estavam agora calados. No desconforto da demora do dizer alguma coisa, ele perguntou então "Queres subir para veres o tal caderno?", ela sabendo que o convite era outro coçou a cabeça e voltou a mão à boca. Vendo-a indecisa ou provocando-lhe insegurança ele aproxima-se do pescoço dela "Vem", arrepiando-a. Dando-lhe a mão entraram no prédio dele. No escuro, a proximidade dos corpos passo a passo numa escada inclinada e apertada, o calor dava a ideia de estarem no pico do Verão debaixo da torreira do sol. Sem acender as luzes de casa ele levou-a para a sala passando pela janela, abrindo-a. O fresco do luar trouxe-lhe das profundezas do corpo a sensualidade de outro à vontade. Por detrás, no parapeito aproximou as mãos da anca dela, descendo pelas pernas, subindo a saia. Alguém que passasse na rua olhando para cima podia vê-los e isso era a pimenta no chocolate que fervia. Quando as mãos dele alcançaram o meio das pernas dela, ela deteve-o com a mão "Não". Então ele levou a boca ao pescoço dela e começando por detrás da orelha beijou-a agarrando-a para si. Voltou a vira-la de costas e desta vez com mais convicção despiu-lhe a saia e começou a desapertar-lhe a blusa procurando pelos seios. Eram duros e redondos, pousou-lhe os dedos nos lábios e com a outra mão voltou ao meio das pernas. "Deixa que os nossos corpos se entendam, estão coisas a mais aqui que não lhes pertencem". E pegando-a ao colo levou-a para a cama, terminando de a despir. Nua sobre a cama o escasso luar que chagava da janela da sala e ele a despir-se. "Como era belo" pensou. Sentiu-o nos seus braços, os corpos encaixando-se, depressa e devagar, no ritmo de uma dança de paixão que chegava a doer de tão penetrante.
Depois, deixando-se abraçados ficaram em silêncio.
Ela desceu deixando a cabeça no peito dele e ele acariciando-lhe o cabelo.
"Como é estar sempre de um lado para o outro? Sentes falta de algo ou alguém?". Ele respirou fundo. "Acho que não chegas a sentir falta daquilo que nunca chegaste a ter...", "Queres dizer saudade?" pergunta-lhe baixinho, "Saudade...essa palavra tão portuguesa...talvez seja isso sim, talvez eu tenha começado a viajar por não ter saudade de ninguém...". Ela ficou calada. "E tu? Já soubeste o que é ter saudade de alguém assim?"...não sabe de onde lhe chegou uma lágrima no canto do olho que chegou ao centro do peito dele. Ele tocou-lhe no rosto trazendo-a ao seu olhar "Que se passa? Ficaste triste? Não queria aborrecer-te com esta questão".
Ela sentou-se na cama. "Acho que acabo de sentir saudade, já...de ti. Desculpa nem entendo de onde isto vem, acabamos de nos conhecer. Talvez esteja com medo..." Ele sentou-se também, ligou a luz do candeeiro e acendeu um cigarro. E a expressão dele mudou, rígida e distante. E disse finalmente como se lhe estivesse a sufocar "Era um risco que sabias estar a correr". Estas palavras bateram-lhe como uma pedra no charco e numa onda de ódio e mágoa, ela levantou-se agarrou nas roupas e saiu, vestindo-se como pode pelas escadas abaixo. Entrou em casa e deixou-se cair de joelhos atrás da porta, chorando.
Ele deixou-se ficar na cama. Caindo lágrimas pelo rosto, molhando a almofada. Sentia-se terrivelmente triste. "Talvez esta viagem tenha sido má ideia. E porque lhe dissera aquilo? Por medo também?", por momentos não se reconheceu. E foi ficando prostrado olhando a janela desviada lá na sala, vazia.
Nos tempos que se seguiram, os dias tomaram uma cor triste. De cada vez que ele abria a janela tinha esperança de que ela estivesse lá, mas a janela estava fechada, de cada vez que saía de casa tinha esperança de se cruzar com ela, mas as ruas estavam desertas, e ansiava chegar sábado para voltar à mercearia onde esperava encontra-la. E sábado chegou.
Ele acordou cedo, tomou o café e pela rua seguiu procurando acertar no labirinto da memória. O patrão estava a abrir a loja. "Bom dia, sabe se a rapariga que trabalha aqui aos sábados hoje vem?", o patrão olhou para ele e paciente repenicou "Olá meu rapaz, isso gostava eu de saber, ela vir vem sempre nunca se sabe bem é a que horas, só me dá dores de cabeça aquela". Em frente à mercearia havia um pequeno café com duas mesas à porta. Pensou em sentar-se e esperar por ali. Para se entreter trouxera o último guia que comprara na cidade, uma semana já lá ia e o trabalho estava lento. Tirara poucas fotografias e havia recolhido apenas uma ou duas histórias interessantes, sentia que lhe estava a escapar algo, a essência da cidade, que lhe tocara por breves instantes e lhe fugira das mãos como areia fina da praia.
As horas foram passando e viu algumas vezes o patrão assomar-se à porta na procura dela. Nada. Pelo meio dia decidiu regressar a casa e bater-lhe à porta. Toda a semana tentara apanha-la na saída de casa nem que fosse para olhar para ela, mas nem todo o tempo estivera em casa e achava-se em desencontro. Tocou na campainha e voltou a tocar e nada. Esperou mais um pouco e insistiu uma última vez. Do andar debaixo viu então a janela abrir-se. Uma senhora de meia idade apareceu com um ar pouco amistosa. "Ela não está, a senhoria comentou na quarta feira que a rapariga tinha pago até ao fim do mês mas que apanhara um comboio e não sabia se voltava, disse-lhe que se não voltasse no último dia do mês que lhe metesse tudo no lixo, é mesmo louca...mas isso não é novidade".
Ela partira. Ele subiu as escadas com o peso de um corpo desalentado. Arrastou-se até à cama. Não mudara os lençóis para que o cheiro dela não desaparecesse mas na verdade já só sentia o azedo do seu próprio suor. Agarrou-se à almofada e em sufoco voltou a chorar. No final do mês...ainda faltavam duas semanas e depois ele iria partir nessa altura. Não podia ficar muito mais tempo, era preciso entregar o trabalho e talvez ela nem voltasse.
A ideia de não voltar a vê-la começou a ruminar-lhe o pensamento de dia para dia. Sentia-se vazio, do seu olhar nenhuma poesia se projetava, que ideia de um lugar assim iria divulgar? Esta viagem estava a ser um fiasco emocional e profissional. E estava a pensar nisso no claustro de um velho mosteiro para os lados do castelo quando olhando para o tecto reparou num fresco. Era uma mulher de longos cabelos floridos que trazia nos seus braços um homem que parecia embriagado pelo seu olhar. Ao lado lia-se numa placa de bronze "Que Vénus com prazeres inflamava, Milhor é exprimentá-lo que julgá-lo; Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo. Os Lusíadas (Canto IX, 83). E uma voz aproximou-se de si "São Ninfas".
Era ela.
Ele estendeu-lhe a mão "A menina dança?" e ela deu-lhe aquele sorriso maroto olhando em volta, não estava mais ninguém. E imaginando que um Tango se escutava, deslizaram enlaçados e desenlaçados até á janela da sala. Olhando lá para fora o sol caía desmaiando na margem do rio. Ele abraçou-a envolvendo-lhe as costas como se fosse um xaile e disse-lhe ao ouvido "Não desfaças a mala, tu vens comigo no final da semana". Ela virou-se e com um olhar profundo e triste ia dizer "Eu..." e nesse momento aparece um homem na sala "Elisa, estou a procurar-te há horas...estavas aqui?" Ela afastou-se dele e aproximou-se do outro, ele olhando para o chão de mármore dura e fria passou por eles como se não estivessem lá e murmurou "Elisa..."
A viagem estava terminada. Não havia mais nada a fazer daquele lugar senão esquecê-lo. Ligou para a companhia aérea procurando antecipar o voo para o dia seguinte, queria partir o mais depressa possível. Nascera ali alguém que podia ter sido diferente mas que não foi. Ele. Não pertencia ali, nunca pertencera e não queria que estas memórias, por mais curtas que tivessem sido, lhe criassem raízes num lugar estéril. Partir, era tudo o que desejava agora. Em casa, arrumou a mala e sem jantar deixou-se sobre a cama procurando no tecto a imagem da Ninfa. Fora uma desilusão mas em parte, a culpa do seguimento da história havia sido sua, a outra parte, quem sabe do universo, da natureza, de Deus. "Elisa..." O nome dela afinal era esse, por estranho que parecesse não tinham trocado os nomes, como se não fosse preciso dar um nome a um corpo e um coração que batem juntos naturalmente. E aliás haviam sido as palavras que os denunciaram como frágeis. Dançar. Não teria sido preciso mais nada para se entenderem e as malditas das palavras haviam criado abismos nos seus pés e por eles havia caído um sonho. Olhou para a sua mala, uma vez mais pronta para partir, levando não mais do que trouxera, apenas..."Que curioso...", do fecho da mala ainda por correr saía a ponta de um vinil que comprara na feira em segunda mão..."Para Elisa...Beethoven". E com o passar das horas acabou na exaustão do pensamento por adormecer.
Sorrateira, pé ante pé, despindo-se passo a passo ela procura a cama. E aqueles pés descalços num corpo vestido em respiração profunda. Nua, deita-se por cima dele, procurando-lhe a boca. "Elisa..." ele acorda e ela corta-lhe as palavras deixando-lhe apenas no ouvido..."Voltaste a deixar a porta aberta, vim despedir-me de ti". Assim, como se fosse o eco de um momento.
Na manhã seguinte quando acordou estava só na cama. Não sabia bem se sonhara com ela mas quando se virou para a mesa de cabeceira havia uma carta "Para Ti". Olhou para o relógio, tinha meia hora para apanhar o avião. Nas palavras dela "despedir-me" não havia volta e nesse sentido apressou-se para partir. Estava muito atrasado e nos momentos seguintes a correria não lhe dera tempo de abrir a carta. Já sentado no avião aguardando levantar procura então a carta no bolso do casaco com o coração apertado.
"Gostava de ter sabido o teu nome para poder começar esta carta mas creio que não importa mais. As coisas correram de uma forma que eu não pedi, ou talvez tivesse pedido e não soube ter. Quando parti, regressei à minha aldeia, sentia-me perdida e muito triste com a situação. Não sabia o que pensar de ti e procurei não pensar nada. Podíamos ter sido tudo. E acabamos por ser apenas, um tango à janela. Quente e triste. Tudo o que queria era partir contigo mas quando regressei a casa percebi que havia alguém à minha espera lá, desde criança. O meu primeiro amor. Como o universo conspira de uma forma perversa não sei, mas sei que se me pudesse dividir em duas, uma partia contigo e outra ficava com ele. Não posso nem sei neste momento o que sinto mais. Creio que possa dizer que esta é a tua primeira partida com saudade, na verdade, é a minha segunda. Deduzo então que harmoniosamente muito em breve encontrarás a tua segunda, seria lógico. Mas nada tem lógica pois não? Quem sabe se eu serei a tua segunda, ou em vez de partida, novo encontro. Nada sei, apenas que metade de mim fica em pedaços. Desculpa tudo ter sido como foi. Elisa."
Amarrotou a carta como se conseguisse abafar o que sentia. "Metade dela..." e foi nesse momento que um alvoroço de gritaria tomou a tripulação do avião. "Ameaça de bomba...socorro...deixem-nos sair..." as pessoas atropelavam-se na porta querendo todas sair. Não se percebia nada e as hospedeiras no pânico tentavam acalmar as pessoas que a custo lá foram saindo. Fora do avião a atrapalhação era ainda maior, as pessoas queriam informações do que se passava mas parecia que ninguém sabia ao certo. Foi quando escutou novamente a voz "É o coração que vai explodir", era ela.
"Mas...foste tu?" ela corou. "És completamente doida, mas parece que não é mais novidade para mim" e sorriu-lhe abraçando-a com força. Quando se separou dos seus braços ela disse-lhe "Lamento que tenhas lido a carta, arrependi-me...há um avião que parte para Buenos Aires em meia hora, que dizes de o apanharmos? Sempre sonhei em lá ir". Ele olhou-a nos olhos e achando-a mais bonita do que nunca deu-lhe a mão "A menina dança?".
Meio dia. O avião partiu e com ele levantando voo um sonho.
São nove horas da noite.
Ela abre a janela do 4º andar. Pelas portadas vidradas entram agora os primeiros gestos da noite. Ajeita a planta no canto debruçada na varanda. Na rua estreita caminhando as pessoas conversam animadamente palavras de outros continentes. Descalça o fresco traz-lhe um arrepio ao pescoço, passando a mão e levando os cabelos à nuca, deixa-se envolver pelas onduras da cidade. A vista em frente é uma outra janela que a pouco mais de um braço se encontra ainda fechada. Há dois meses que vive nesta casa, uma mudança que ainda lhe deixa alguma estranheza sobretudo pelo aperto das ruas do bairro. Virando o rosto, o rio lá em baixo espelhando a lua redonda e amarela. Doce e solitária, compondo o céu de véus desnudos. Volta para dentro, deixando a janela na brisa.
Ele encontra a rua, na porta do prédio espera-o uma senhora rechonchuda sisuda. Sobem então e ela mostra-lhe a casa. "É um prédio antigo, não temos elevador e as escadas são estreitas, não têm luz, estamos a tratar disso, tenha cuidado. Então veio de viagem não é verdade? Vai ficar por cá muito tempo? O mínimo que alugo são três semanas, recorda-se disso? A casa está mobilada e aqui da sala, tem a melhor vista, venha ver o rio...". Ao abrir a janela, o olhar dele entra dentro da casa dela. Uma cortina leve branca deixando espreitar uma outra sala gémea desta. E a senhora volta-o para dentro "Então vem a trabalho ou vem passear?", "Venho a trabalho, sou jornalista. Trabalho para uma revista de viagens, sou português mas vivo em Londres desde criança e finalmente agora posso regressar por algum tempo". A senhora entregou-lhe as chaves despedindo-se "Tem aqui muito com que se entreter". A porta fecha-se e ele pode enfim despir-se e tomar um banho. A primeira noite nalgum lugar é sempre a mais difícil, por mais tempo que passe viajando, a solidão bate sempre nesse lugar ao chegar. Todas as divisões da casa eram pequenas e isso dava-lhe uma sensação de aconchego. Volta à janela para fumar um cigarro. São nove e meia da noite.
Na cozinha ela prepara o jantar. Nada de muito complexo, hoje é sexta feira e é noite de encontrar os amigos pelos bares apinhados do bairro. Enquanto a massa coze na panela ao lume, vai ao quarto e procura pelo vestido preto. "Está lá fora ainda na corda" pensa. "Não teve tempo de secar, é melhor escolher outra coisa". E dando volta ao armário, escolhe uma saia e uma blusa para combinar com os sapatos.
Ele tem fome. Vai até ao quarto e ainda com a mala meia aberta, espalha as roupas pela cadeira, "Depois arrumo isto". Vestiu umas calças e uma camisa, calçou-se e procurou pela carteira e as chaves. Iria procurar por um lugar simpático para jantar por aí. Fechou a janela e saiu, descendo as escadas encaracoladas e sombrias. Cá fora, espreitou debaixo a janela lá em cima do prédio da frente. A cortina continuava dançando tímida no mistério que a revelava isolada de tudo o resto. Não sabia se havia de subir a colina para o castelo, se descer ao rio. Na indecisão, e não querendo perder-se logo na primeira noite, procurou pelas ruas paralelas à sua por um restaurante. Amanhã teria tempo de olhar o mapa e os guias turísticos que trouxera para explorar a cidade, uma cidade que apesar de sua era totalmente desconhecida. As memórias que lhe espreitam são filigranas de um tempo de criança pequena, um tempo em que os pais pobres emigraram no sonho de uma vida melhor. De português sente a saudade de um nem saber de quê.
Passou por dois restaurantes onde não havia lugar e numa esquina mais recatada, um tasco mais singelo serviu-lhe sardinhas e salada de batatas e pimentos assados. Recordou-se do sermão aos peixes. As sardinhas "Tomai o exemplo das irmãs sardinhas...Porque cuidais que as multiplica o Criador em número tão inumerável? Porque são o sustento dos pobres". Mas hoje sentia-se rei porque numa boa mesa portuguesa estava um português de gema. Esta viagem há muito que a aguardava, que aqui havia de encontrar um elo, uma parte do seu código genético que permanecia na escuridão. Ao jantar bebeu um pouco de vinho e depois perguntou ao senhor do tasco se havia algum miradouro perto. Com expressões recatadas e viravoltas atrapalhadas o homem conseguiu orienta-lo.
O alarido nas ruas aumentara, parecia que a cidade estava em festa, copos, música, bares abertos e eléctricos passando.
São dez e meia. Ainda ajeitando atrasada o cabelo vermelho endiabrado, ela passa pelo miradouro para descer até ao rio. Sem tempo de grandes deslumbres apressa o passo que nos saltos dos sapatos é um tango numa linha de trapézio, arriscado. Já estariam à sua espera. Hoje havia concerto e os primeiros guardavam mesa para os últimos. Nesta altura do ano parecia que a cidade não era sua, como se viajasse para outro lugar sem sair do mesmo, porque menos estão os que lhe pertencem, a cidade toma múltiplas identidades confundindo-se com todos os lugares e nenhum. Odiava esta altura de facto. Odiava falsamente estar e não estar. Não tinha paciência para a euforia planeada das férias dos outros, e nunca tinha dinheiro para sair ela mesma daqui. As muralhas do castelo eram um calvário a que aprendera a amar, como cativa de um rapto a que se acomodara.
Ainda acusando o cansaço da viagem e da correria da entrega do último trabalho, ele despede-se da vista prometendo voltar de dia para outros espectros de vida. Lentamente e absorvendo cada encontro, regressa a casa. Adormeceu sem qualquer esforço sobre a cama vestido mas descalço.
São quatro da manhã. De sapatos na mão cambaleante ela empurra a porta do prédio procurando a luz das escadas. "Não funciona? Porcaria de casas velhas!", subindo quase de joelhos ao 4º andar entorna-se à porta de casa que quase sem resistência se abre, espanta-se "Então mas eu não fechei a porta de casa? Será que me assaltaram a casa?". Sem acender as luzes e destemida pelo álcool que trazia no corpo procura escutar por ruídos de dentro de casa. Escuta então uma respiração profunda e arrastada do quarto. E gatinhando até à cama encontra dois pés descalços dormindo. Toca-lhes e constatando a sua realidade, solta um grito. Ele acorda ofegante e assustado. E procura pela luz do candeeiro na mesinha de cabeceira. Diante de si uma rapariga atónica, de joelhos como um gato assanhado à sua beira. Abre bem os olhos e tocando no seu peito percebe que está de facto acordado.
Com a luz acesa, ela percebe então que não está na sua casa. Corada levanta-se "Peço desculpa, parece que me enganei de casa...". E dando meia volta corre para a porta descendo as escadas quase em escorrega. Cá em baixo olha para o seu prédio e envergonhada entra por ele a dentro como se fosse o buraco mais desejado do mundo.
Ele ficou sentado na cama pensativo. "Como fui esquecer-me de trancar a minha porta?" e voltando a deitar-se ficou ainda algum tempo a recordar os traços do rosto que tão abruptamente o acordara. Acabou por voltar a adormecer.
II
O dia amanheceu cinzento nos beiços das gaivotas e das velhas que afinando a voz se preparavam para mais um dia de feira ao largo da igreja. Ela e ele acordam. Ainda perdido nos acontecimentos da noite anterior, ele deixa-se ficar um pouco na cama pensando nela. Ainda dorida a cabeça da noite anterior, ela levanta-se quase de olhos fechados procurando por água e um comprimido. Senta-se no sofá da sala, olhando a janela fechada, pensando nele do outro lado. Estaria ele acordado? Estaria ela acordada?
Ele levanta-se e vai até à cozinha. A única coisa que a sua mala de viagem não dispensa é café solúvel para a primeira manhã. Seria prático. Era preciso descobrir uma mercearia, não tinha mais nada em casa para comer. Aqueceu a água, fez o café e sentando-se no sofá da sala olhou para a janela. Estaria aberta a dela? Levantou-se e aproximou a cabeça, afastando a cortina apenas um dos seus olhos podia ver e ser visto. Estava fechada. Voltou ao sofá para terminar o café e procurar orientação no mapa, planeando assim o seu dia. Uma sensação de curiosidade doce tomou-lhe novamente o pensamento. Quem seria ela? Achara-a francamente bonita e selvagem. Aqueles cabelos vermelhos. Labaredas faiscando um rosto pálido e assustado. Riu-se da situação e desejou encontra-la novamente, ardentemente depressa. Passou-lhe pela cabeça ir bater-lhe à porta, mas a situação havia sido constrangedora e podia ser mal recebido. Afastou a ideia dos seus pensamentos. Muito tempo em viagem sempre sozinho deixava-o assim, carente de aventuras, as quais a maior parte das vezes só decorriam mesmo no seu imaginário, quer por inércia de concretização quer por partidas e chegadas sucessivas, quebrando o elo de histórias entardecidas de dias sem história. Havia qualquer coisa no rosto dela que lhe remetia à sua infância. O desenho do queixo talvez. Alguém que conhecera em criança mas cuja recordação não lhe deixava senão uma quebreira de primeiro beijo. Alguém...
De volta ao quarto ela procura pelo telefone com a ideia de ver as horas. "Meu Deus, são onze horas! Já devia estar na mercearia desde cedo...Sábados! É sempre a mesma coisa...". Vestiu umas calças de ganga e uma blusa, calçou as sandálias e a correr desceu as escadas. Pelo caminho voando-lhe os pés o mais depressa que podiam, passou-lhe a sua vida pela cabeça. Três empregos...não seria demais? Não tinha tempo nem para ir à praia, estava pálida que nem uma parede de cal. Como podia ter uma relação com alguém se a sua vida era organizada por horas daqui para acolá? E sempre emparedada nestas ruas estreitas, cujo horizonte não passava de um mesmo rio, que por mais belo que fosse já enjoara a vista, de ser sempre ele mesmo. Nada acontecia de novo. Nada, com a excepção da noite anterior. Quem seria ele? Donde viera? Achara-o deliciosamente tentador. E aqueles pés...E aqueles olhos verdes...Entrando pela mercearia, dando de frente com os olhos furiosos do patrão, o encanto deu lugar a um ataque de raiva "Já sei...que quer que faça? Não tenho direito nem a dormir mais duas horas ao sábado, vida cruel! Que quer que lhe diga? Não posso ter outra...desculpe, para variar...". O patrão ia repostar em fúria escalando mas subitamente enterneceu-se com ela, "Miúda, eu sei que tens muitas dificuldades, que és jovem e gostas de te divertir mas se assumiste este compromisso...devias tentar...eu preciso mesmo da tua ajuda aos sábados...é o dia de mais movimento." Ela surpreendeu-se. Não estava habituada a atitudes paternais. Desde muito jovem que estava entregue a si mesma. Uma infância feliz mas curta. Para trás ficara uma aldeia e uma história de despedida em tristeza. Não queria pensar agora nisso "Tem razão..mãos ao trabalho. Vou para a caixa."
Meio dia. Depois de infindáveis esquinas labirínticas e já sem esperança, ele encontra finalmente a mercearia. Por uma porta de madeira escancarada, fazendo soar a campainha dos visitantes, dá sinal da sua entrada no pequeno espaço apinhado de prateleiras e mais corredores labirínticos. Da caixa, acabando de atender um casal de chineses ela olha para o espelho redondo no tecto, "Não param o raio dos clientes...mas...não pode ser, é ele, aqui?". Corada, deixa a caixa e procura pelo corredor onde ele circula. Não querendo ser vista, deixa-se observá-lo do fundo. Perdido nas conservas, parado com uma lata de sardinhas na mão. "Que fazes aí miúda? Tens clientes na caixa...hoje vens mesmo virada...". O alvoroço provocado pela repreensão do patrão fá-lo virar a cabeça na direcção deles. "É ela...", sorrindo aproxima-se. Mas ela fingindo não o conhecer, volta para a caixa fechando o olhar nas notas da gaveta, dedicando-se ao grupo de ingleses que já aquelas horas manifestavam uma euforia de pouca água. Atrás deles e esperando por um momento a sós com ela, ele aguarda nervoso, pensando no que lhe dizer.
Quando finalmente chega a vez dele, olha-a nos olhos e diz "Olá". Ela fica parada a olhar para ele sem reacção. E ele continua, "Eu...gostava de convidar-te para jantar". Não sabendo donde lhe vieram aquelas palavras, estendeu a lata de sardinhas na direcção do olhar dela. Ela não aguentou, explodiu de riso, "E é isso que vais oferecer-me para jantar? Estou tentada!". O riso dela descontraiu-o, "Ah, bem talvez fosse mais interessante seres tu a escolher um restaurante giro, não conheço nada daqui, cheguei ontem". A simplicidade dele encantou-a mais ainda. "Saio às oito" e sorriu-lhe com marotice covando-lhe apenas esse lado do rosto. "Boa, espero por ti em casa e vamos". E saiu extasiado, sem olhar para trás. Lá dentro o sorriso dela não se desfazia. Coçou a cabeça, passando a mão pela boca como se o quisesse esconder.
Ao longo do dia várias foram as repreensões do patrão dando graças a Deus quando chegou a altura dela ir para casa "Vê se descansas miúda, hoje estavas com a cabeça virada ao contrário...". Todo o dia ele não lhe saíra do pensamento. Estava nervosa com a situação, falta de prática nestas coisas, não sabia nem o que vestir. Chegando a casa, acendendo a luz da sala, ele sentiu a presença na janela dela, espreitando-a. Ela passou do quarto para a sala em cuecas e voltou a passar uma vez com algo que parecia uma saia rodada e outra com uma outra mais comprida. Tudo silhuetas que ele conseguiu perceber da janela dele, e este espreitar sem ver, abria-lhe ainda mais o apetite. Estava pronto há uma hora, todo o dia vagueara pela cidade com ela no pensamento. Como se a cidade tivesse agora os contornos de um só rosto e tudo fosse música aos seus ouvidos, uma música sensual e quente de encontro, mistério e corpo.
Oito e meia. A janela dela abre-se. Percebendo, instantaneamente ele abre a dele. Frente a frente, o 4º andar que os separa num abismo tentador é a ponte dos seus olhares. "Como és bonita!", ela voltou a dar-lhe aquele sorriso, sentindo envolver-se no verde profundo e calmo dos olhos dele, "Vamos?" e fechando-se as janelas, desceram as escadas e encontraram-se à porta.
Quando começaram a caminhar lado a lado, ela percebeu que ele era bem mais alto que ela e ele percebeu que ela era ainda mais bela, por ser delicada e pequena. Alguns metros à frente quando teria de escolher se iam para a esquerda ou para a direita, ela parou perdida. "Pensaste nalgum lugar?" e nas palavras dele ela viu então que ao longo do devaneio do dia se esquecera de pensar num restaurante. Rapidamente procurou visualizar na sua cabeça mas a presença dele atrapalhava-lhe o pensamento. Então ele sugeriu "Estava a ler num roteiro turístico que há um restaurante perto do castelo muito bonito, com a vista mais bela da cidade, queres ir a esse?", pela descrição pareceu-lhe um lugar que conhecia de nome mas por ser caro nunca lá fora. Como a viu de volta das mãos preocupada ele tranquilizou-a, "Não te preocupes é a revista que paga e além disso faz parte do meu trabalho recolher histórias e vivências contadas na primeira pessoa". "Bem sendo assim, será um prazer acompanhar-te".
Ela ficou deliciada com a ideia de jantar num lugar como aquele e sentiu-se aconchegada por ele ter adivinhado a preocupação dela, revelava sensibilidade nele e isso agradava-lhe e muito. A caminhada até ao castelo ainda era longa e ela foi-lhe mostrando pormenores da cidade aqui e ali. "Sabes que eu nasci nesta cidade...mas parti muito pequeno", "Sabes que eu cheguei aqui muito nova, mas nasci numa aldeia" e assim foram preenchendo algumas lacunas da estranheza que os envolvia, sem no entanto quebrar o desejo de conhecer algo que não se traduzia por palavras entre eles.
O restaurante era um lugar de sonho. Toalhas de linho imaculadamente branco, três copos de cristal, empregados fardados a rigor e uma vista daquelas de fotografia de catálogo de luxo. Ela não teria imaginado tanto, que a cidade conseguia ainda surpreende-la. "Aposto que nas tuas viagens estás sempre a conhecer lugares como este e raparigas como eu?, aquelas palavras souberam-lhe a veneno na própria língua. Ele demorou algum tempo a responder e acabou por calmamente lhe dizer "Deus está na poesia entre os homens e são poemas como tu que nos fazem querer ser os olhos desta cidade. Como nenhuma outra". Ela encolheu-se envergonhada, "Vejo que também gostas de dizer coisas bonitas", "Sim, tenho muito tempo livre nas minhas viagens para que o pensamento se perca nas palavras bonitas e ás vezes guardo-o num caderno, talvez um dia possa publica-lo, não sei...mas respondendo à tua questão...lugares bonitos sim, pessoas bonitas nem por isso, estou só há muito tempo". Ficou mais tranquila. "E tu? Tens alguém?", neste tipo de questões era justo que o outro também fosse tranquilizado, "Não, trabalho demais, nem tenho tempo para encontrar alguém". E com esta informação puderam seguir para outros voos sem preocupações minantes. "Talvez me possas mostrar esse caderno mais tarde" e voltou àquele sorriso maroto. "Mais tarde terei todo o gosto".
III
Na rua lado a lado das portas, os dois estavam agora calados. No desconforto da demora do dizer alguma coisa, ele perguntou então "Queres subir para veres o tal caderno?", ela sabendo que o convite era outro coçou a cabeça e voltou a mão à boca. Vendo-a indecisa ou provocando-lhe insegurança ele aproxima-se do pescoço dela "Vem", arrepiando-a. Dando-lhe a mão entraram no prédio dele. No escuro, a proximidade dos corpos passo a passo numa escada inclinada e apertada, o calor dava a ideia de estarem no pico do Verão debaixo da torreira do sol. Sem acender as luzes de casa ele levou-a para a sala passando pela janela, abrindo-a. O fresco do luar trouxe-lhe das profundezas do corpo a sensualidade de outro à vontade. Por detrás, no parapeito aproximou as mãos da anca dela, descendo pelas pernas, subindo a saia. Alguém que passasse na rua olhando para cima podia vê-los e isso era a pimenta no chocolate que fervia. Quando as mãos dele alcançaram o meio das pernas dela, ela deteve-o com a mão "Não". Então ele levou a boca ao pescoço dela e começando por detrás da orelha beijou-a agarrando-a para si. Voltou a vira-la de costas e desta vez com mais convicção despiu-lhe a saia e começou a desapertar-lhe a blusa procurando pelos seios. Eram duros e redondos, pousou-lhe os dedos nos lábios e com a outra mão voltou ao meio das pernas. "Deixa que os nossos corpos se entendam, estão coisas a mais aqui que não lhes pertencem". E pegando-a ao colo levou-a para a cama, terminando de a despir. Nua sobre a cama o escasso luar que chagava da janela da sala e ele a despir-se. "Como era belo" pensou. Sentiu-o nos seus braços, os corpos encaixando-se, depressa e devagar, no ritmo de uma dança de paixão que chegava a doer de tão penetrante.
Depois, deixando-se abraçados ficaram em silêncio.
Ela desceu deixando a cabeça no peito dele e ele acariciando-lhe o cabelo.
"Como é estar sempre de um lado para o outro? Sentes falta de algo ou alguém?". Ele respirou fundo. "Acho que não chegas a sentir falta daquilo que nunca chegaste a ter...", "Queres dizer saudade?" pergunta-lhe baixinho, "Saudade...essa palavra tão portuguesa...talvez seja isso sim, talvez eu tenha começado a viajar por não ter saudade de ninguém...". Ela ficou calada. "E tu? Já soubeste o que é ter saudade de alguém assim?"...não sabe de onde lhe chegou uma lágrima no canto do olho que chegou ao centro do peito dele. Ele tocou-lhe no rosto trazendo-a ao seu olhar "Que se passa? Ficaste triste? Não queria aborrecer-te com esta questão".
Ela sentou-se na cama. "Acho que acabo de sentir saudade, já...de ti. Desculpa nem entendo de onde isto vem, acabamos de nos conhecer. Talvez esteja com medo..." Ele sentou-se também, ligou a luz do candeeiro e acendeu um cigarro. E a expressão dele mudou, rígida e distante. E disse finalmente como se lhe estivesse a sufocar "Era um risco que sabias estar a correr". Estas palavras bateram-lhe como uma pedra no charco e numa onda de ódio e mágoa, ela levantou-se agarrou nas roupas e saiu, vestindo-se como pode pelas escadas abaixo. Entrou em casa e deixou-se cair de joelhos atrás da porta, chorando.
IV
Nos tempos que se seguiram, os dias tomaram uma cor triste. De cada vez que ele abria a janela tinha esperança de que ela estivesse lá, mas a janela estava fechada, de cada vez que saía de casa tinha esperança de se cruzar com ela, mas as ruas estavam desertas, e ansiava chegar sábado para voltar à mercearia onde esperava encontra-la. E sábado chegou.
Ele acordou cedo, tomou o café e pela rua seguiu procurando acertar no labirinto da memória. O patrão estava a abrir a loja. "Bom dia, sabe se a rapariga que trabalha aqui aos sábados hoje vem?", o patrão olhou para ele e paciente repenicou "Olá meu rapaz, isso gostava eu de saber, ela vir vem sempre nunca se sabe bem é a que horas, só me dá dores de cabeça aquela". Em frente à mercearia havia um pequeno café com duas mesas à porta. Pensou em sentar-se e esperar por ali. Para se entreter trouxera o último guia que comprara na cidade, uma semana já lá ia e o trabalho estava lento. Tirara poucas fotografias e havia recolhido apenas uma ou duas histórias interessantes, sentia que lhe estava a escapar algo, a essência da cidade, que lhe tocara por breves instantes e lhe fugira das mãos como areia fina da praia.
As horas foram passando e viu algumas vezes o patrão assomar-se à porta na procura dela. Nada. Pelo meio dia decidiu regressar a casa e bater-lhe à porta. Toda a semana tentara apanha-la na saída de casa nem que fosse para olhar para ela, mas nem todo o tempo estivera em casa e achava-se em desencontro. Tocou na campainha e voltou a tocar e nada. Esperou mais um pouco e insistiu uma última vez. Do andar debaixo viu então a janela abrir-se. Uma senhora de meia idade apareceu com um ar pouco amistosa. "Ela não está, a senhoria comentou na quarta feira que a rapariga tinha pago até ao fim do mês mas que apanhara um comboio e não sabia se voltava, disse-lhe que se não voltasse no último dia do mês que lhe metesse tudo no lixo, é mesmo louca...mas isso não é novidade".
Ela partira. Ele subiu as escadas com o peso de um corpo desalentado. Arrastou-se até à cama. Não mudara os lençóis para que o cheiro dela não desaparecesse mas na verdade já só sentia o azedo do seu próprio suor. Agarrou-se à almofada e em sufoco voltou a chorar. No final do mês...ainda faltavam duas semanas e depois ele iria partir nessa altura. Não podia ficar muito mais tempo, era preciso entregar o trabalho e talvez ela nem voltasse.
A ideia de não voltar a vê-la começou a ruminar-lhe o pensamento de dia para dia. Sentia-se vazio, do seu olhar nenhuma poesia se projetava, que ideia de um lugar assim iria divulgar? Esta viagem estava a ser um fiasco emocional e profissional. E estava a pensar nisso no claustro de um velho mosteiro para os lados do castelo quando olhando para o tecto reparou num fresco. Era uma mulher de longos cabelos floridos que trazia nos seus braços um homem que parecia embriagado pelo seu olhar. Ao lado lia-se numa placa de bronze "Que Vénus com prazeres inflamava, Milhor é exprimentá-lo que julgá-lo; Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo. Os Lusíadas (Canto IX, 83). E uma voz aproximou-se de si "São Ninfas".
Era ela.
V
A viagem estava terminada. Não havia mais nada a fazer daquele lugar senão esquecê-lo. Ligou para a companhia aérea procurando antecipar o voo para o dia seguinte, queria partir o mais depressa possível. Nascera ali alguém que podia ter sido diferente mas que não foi. Ele. Não pertencia ali, nunca pertencera e não queria que estas memórias, por mais curtas que tivessem sido, lhe criassem raízes num lugar estéril. Partir, era tudo o que desejava agora. Em casa, arrumou a mala e sem jantar deixou-se sobre a cama procurando no tecto a imagem da Ninfa. Fora uma desilusão mas em parte, a culpa do seguimento da história havia sido sua, a outra parte, quem sabe do universo, da natureza, de Deus. "Elisa..." O nome dela afinal era esse, por estranho que parecesse não tinham trocado os nomes, como se não fosse preciso dar um nome a um corpo e um coração que batem juntos naturalmente. E aliás haviam sido as palavras que os denunciaram como frágeis. Dançar. Não teria sido preciso mais nada para se entenderem e as malditas das palavras haviam criado abismos nos seus pés e por eles havia caído um sonho. Olhou para a sua mala, uma vez mais pronta para partir, levando não mais do que trouxera, apenas..."Que curioso...", do fecho da mala ainda por correr saía a ponta de um vinil que comprara na feira em segunda mão..."Para Elisa...Beethoven". E com o passar das horas acabou na exaustão do pensamento por adormecer.
Sorrateira, pé ante pé, despindo-se passo a passo ela procura a cama. E aqueles pés descalços num corpo vestido em respiração profunda. Nua, deita-se por cima dele, procurando-lhe a boca. "Elisa..." ele acorda e ela corta-lhe as palavras deixando-lhe apenas no ouvido..."Voltaste a deixar a porta aberta, vim despedir-me de ti". Assim, como se fosse o eco de um momento.
Na manhã seguinte quando acordou estava só na cama. Não sabia bem se sonhara com ela mas quando se virou para a mesa de cabeceira havia uma carta "Para Ti". Olhou para o relógio, tinha meia hora para apanhar o avião. Nas palavras dela "despedir-me" não havia volta e nesse sentido apressou-se para partir. Estava muito atrasado e nos momentos seguintes a correria não lhe dera tempo de abrir a carta. Já sentado no avião aguardando levantar procura então a carta no bolso do casaco com o coração apertado.
"Gostava de ter sabido o teu nome para poder começar esta carta mas creio que não importa mais. As coisas correram de uma forma que eu não pedi, ou talvez tivesse pedido e não soube ter. Quando parti, regressei à minha aldeia, sentia-me perdida e muito triste com a situação. Não sabia o que pensar de ti e procurei não pensar nada. Podíamos ter sido tudo. E acabamos por ser apenas, um tango à janela. Quente e triste. Tudo o que queria era partir contigo mas quando regressei a casa percebi que havia alguém à minha espera lá, desde criança. O meu primeiro amor. Como o universo conspira de uma forma perversa não sei, mas sei que se me pudesse dividir em duas, uma partia contigo e outra ficava com ele. Não posso nem sei neste momento o que sinto mais. Creio que possa dizer que esta é a tua primeira partida com saudade, na verdade, é a minha segunda. Deduzo então que harmoniosamente muito em breve encontrarás a tua segunda, seria lógico. Mas nada tem lógica pois não? Quem sabe se eu serei a tua segunda, ou em vez de partida, novo encontro. Nada sei, apenas que metade de mim fica em pedaços. Desculpa tudo ter sido como foi. Elisa."
Amarrotou a carta como se conseguisse abafar o que sentia. "Metade dela..." e foi nesse momento que um alvoroço de gritaria tomou a tripulação do avião. "Ameaça de bomba...socorro...deixem-nos sair..." as pessoas atropelavam-se na porta querendo todas sair. Não se percebia nada e as hospedeiras no pânico tentavam acalmar as pessoas que a custo lá foram saindo. Fora do avião a atrapalhação era ainda maior, as pessoas queriam informações do que se passava mas parecia que ninguém sabia ao certo. Foi quando escutou novamente a voz "É o coração que vai explodir", era ela.
"Mas...foste tu?" ela corou. "És completamente doida, mas parece que não é mais novidade para mim" e sorriu-lhe abraçando-a com força. Quando se separou dos seus braços ela disse-lhe "Lamento que tenhas lido a carta, arrependi-me...há um avião que parte para Buenos Aires em meia hora, que dizes de o apanharmos? Sempre sonhei em lá ir". Ele olhou-a nos olhos e achando-a mais bonita do que nunca deu-lhe a mão "A menina dança?".
Meio dia. O avião partiu e com ele levantando voo um sonho.
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