I
Logo na primeira garfada, o peixe estaladiço desfazendo-se na boca e ao pescoço aquele arrepio doce como se alguém estivesse fazendo festas no seu cabelo. E a chuva corria a cântaros. Este tocar é meramente metafórico, pensa que está relacionado com o acto de dar, como se uma energia fluísse de uma pessoa para a outra e a encantasse, embalasse, adornasse do mais puro sentimento de paz. Há muitos anos que não comia peixe frito. E a alface com os coentros e a cebola roxa e o arroz de cenoura com feijão verde. Ficou com pena, os biscoitos de manteiga não estavam à altura deste banquete preparado com tamanho carinho pela vizinha, haviam ficado demasiado tempo no forno e estavam um pouco duros. Enquanto comia, a sensação ia percorrendo cada parte do seu corpo.
O almoço merecia por isso um copo de vinho.
Quatro anos. Faz esse tempo que vive neste prédio. Recorda-se dos primeiros encontros com a vizinha na entrada do prédio, um desastre. Tudo servia para implicância, tudo estava mal, nada era bem vindo. Hoje, a senhora tem as chaves de sua casa para qualquer emergência e não passa dia que não conversem sobre qualquer coisa ou troquem mimos culinários. Fora ela quem lhe ensinara que um prato nunca se devolve vazio. E vários eram já os pratos que acumulavam na casa uma da outra por não darem vazão às trocas. Trinta a quarenta anos, não sabe ao certo, as separam e no entanto, os modos de vida aproximam-se por acaso de um destino que acaba por ser o de muitos numa grande cidade. Sozinhas. Uma reformada outra desempregada. Uma vive no rés-do-chão a outra no último andar, separando-as famílias e casas cheias de gente que em tudo têm o seu curso normal de existência. Encontrando-se a meio, nas escadas do prédio, a meio de vida, uma cedo para partir outra tarde para começar, uma cansada para subir outra farta de descer. A meio de qualquer coisa, pressupondo haver mais qualquer coisa. Pressupondo correctamente.
II
Bateram as duas da tarde. Preparava-se para sair para a fisioterapia quando ao abrir a porta está alguém do outro lado. A luz que penetrava da vidraça por cima da grande porta de madeira da entrada do prédio encobria-lhe a visão. Afastando-se para dentro conseguiu perceber o contorno das formas do homem. "Boa tarde, desculpe incomodar, gostaria de saber se tem um minuto para me escutar". A senhora ficou irritada. "Mas quem é que lhe abriu a porta do prédio? Esta gente deixa entrar qualquer pessoa. Eu estou com pressa, estava de saída, lamento". E empurrando o homem para o lado trancou a sua porta e dirigiu-se para a saída do prédio. Finalmente sol radioso e caloroso. O homem de fato castanho e sapatos de pele engraxada ficou no mesmo sítio olhando-a com ar de cachorro abandonado. "Vai ficar aí especado? Eu preciso de ir e não quero deixa-lo aí dentro, sei lá quem é o senhor". O homem moveu-se então lentamente de olhos postos no chão para a saída. Ela bateu com a grande porta do prédio e seguiu pela rua afoita, erguendo a cabeça no corpo cabaçoide e enferrujado até à paragem do autocarro. Lá aguardando olhou de relance para a porta que ficara para trás, o homem continuava de pé, parado olhando as pedras da calçada lavadas pela correnteza da chuva.
A vizinha da loja ao lado veio à porta para espreitar o dia que se compusera de uma forma tão brusca mas tão bem vinda. Vendo o homem parado perguntou "Precisa de alguma coisa? Está à procura de alguém?" e este levantou a cabeça e respondeu com uma voz muito calma mas triste "Estou à espera da Cremilde". "Mas a Cremilde..." e o homem sentando-se no lancil do passeio ainda húmido virou-lhe as costas. A vizinha acabou por encolher os ombros e voltar para dentro da loja, vazia como sempre, aguardando-a a novela no pequeno ecrã instalado entre os móveis que estavam para revenda amontoados uns nos outros. Sentada na poltrona plastificada pensava "Deus queira que esta porcaria nunca seja vendida, depois onde é que me vou sentar?" e assim passava as suas tardes interrompida algumas vezes pelo marido que vinha buscar alguma coisa para a oficina da rua em frente. Pelas oito horas, fechavam a loja, trancavam a oficina e partiam para casa. Agora que pensa nisso, da sua janela lá em cima, nunca os ouvira a discutir uma só vez. Ás vezes escutava um a chamar pelo outro, ou porque era o telefone ou porque eram horas de almoçar e a mesa estava posta, a mesa que também ela não daria certamente jeito nenhum ser vendida.
As tardes assim demoravam a passar, conhecia de cor as rotinas de todos os que moravam por perto. Já mudara a decoração vezes sem conta, arrumara e desarrumara os seus armários, todos os dias limpava o pó e aspirava a casa meticulosamente e cada vez tinha menos vontade de sair de casa. O emprego novo tardava e não sabia como entreter os seus dias, sentia-se triste e sem perspectivas de um futuro mais promissor. Ás vezes saía. Hoje parecia que o dia até se compusera e o vinho do almoço dera-lhe vontade de passear para se distrair com outras coisas. Tomara banho, arranjara-se em frente ao espelho e descera as escadas com um ar fresco e bem disposto. Ao sair do prédio deu de caras com um rapaz sentado no passeio. Quando a sentiu passar, o rapaz levantou-se e dirigiu-lhe a palavra "Estava à tua espera". A rapariga deu dois passos atrás "Espera? Mas nós conhecemo-nos?" e o rapaz respondeu-lhe "Ainda não" e abriu-lhe bem os olhos negros como duas azeitonas reluzentes. A rapariga assustou-se, pensando ser algum dos habitantes do prédio das traseiras e continuou o seu caminho rua fora sem olhar para trás.
Pelas quatro horas da tarde um grande alarido instalou-se por toda a rua. Havia fumaça na atmosfera, um cheiro terrível a queimado e sirenes apitando nas proximidades. A vizinha da loja abriu a porta das traseiras, ela de lá que vinha a grande central de fumo. Algo estava a arder no prédio das traseiras. "Desgraçados, lá pegaram fogo à barraca, haviam de arder todos, que Deus me perdoe mas não andam cá a fazer nada senão estragos". Por essa altura já um amontoado de pessoas comentava a situação junto do prédio cujas labaredas saíam em fúria de uma das janelas que já estivera tapada por tijolos e agora estava esburacada. De dentro do prédio saiu um casal de jovens magros e encardidos tossindo pedindo ajuda que lá dentro estava ainda uma criança de colo cuja mãe não se sabia se estava também. Por entre aquelas vozes atarefadas em perceber a situação escutava-se realmente um choro de criança e o homem que antes estava no lancil do passeio, dera a volta ao prédio e estava agora olhando de fora da multidão. Quando os bombeiros finalmente chegaram o prédio ardia incandescentemente por inteiro. As mangueiras começaram então a bombear jactos de água e em pouco tempo as chamas já não eram senão fumo cuspido aos engulhos. Veio também a polícia e todos foram questionados. O casal há muito que se escapulira. Quando a vizinha da loja voltou o homem já não estava mais no passeio. A tarde fora trágica, falecera uma criança.
III
Já a noite caíra e a senhora voltava arrastando a perna mais inchada. Ao colocar as chaves na porta sentiu um arrepio de frio e uma aproximação nas suas costas. "Outra vez o senhor? Mas afinal o que é que quer? Não estou a gostar nada disto". O homem tocou-lhe no braço e o frio tornou-se mais intenso. "Deixe-me entrar, é preciso que me deixe entrar, o que tenho para lhe dizer é muito importante". A senhora não sentindo perigo nas palavras do homem, abriu a porta e ele seguiu-a. Cansada, sentou-se no sofá e indicou-lhe a cadeira para que ele se sentasse também mantendo a postura desconfiada aguardou que ele falasse. "Cremilde" e depois de a tratar pelo nome retirou do bolso do casaco um envelope. Dentro do envelope estava um retrato muito antigo de um casal jovem a preto e branco. A senhora colocou os óculos de ver ao perto pendurados no pescoço por um cordão de prata. "Mas...o que vem a ser isto? Esta parece a rapariga lá de cima...". Atarantada, levantou-se e levou o retrato para a luz do candeeiro querendo confirmar. "Parece, é um facto..." disse o homem olhando o infinito com aquele olhar triste de antes. "E como sabe o meu nome?", foi quando o homem a olhou nos olhos e lhe disse "Cremilde, nós conhecemo-nos há muitos anos atrás..somos nós dois, nesse retrato". A senhora começou a sentir-se incomodada com a presença deste homem misterioso e levantou-se decidida "Saia, vamos, saia, isto só pode ser uma brincadeira...e pensar que lhe abri a porta da minha casa, saia". E correu para a porta aguardando que ele saísse. O homem saiu deixando-lhe o retrato nas mãos dizendo-lhe "É preciso que se encontrem, não há mais tempo".
Ao sair, a rapariga voltava a casa e voltando a ver o rapaz na porta da sua entrada hesitou em aproximar-se. O rapaz lá estava sorrindo aguardando que ela se aproximasse. Era atraente sem dúvida, cabelos negros compridos, elegante, rosto forte e um olhar penetrante, mas as roupas pareciam um pouco desactualizadas, "Ninguém tão jovem se veste assim, deve ser um sem abrigo, coitado...coitada de mim, agora não me deixa em paz porquê...só a mim" pensou. E o rapaz voltou a falar-lhe "Cremilde...", a rapariga franziu o sobrolho "Como sabe o meu nome?" e foi então que ele retirou um envelope de dentro do bolso e dentro do envelope estava então um retrato. A rapariga olhou e espantada disse-lhe incrédula "Mas esta é a minha vizinha do rés-do-chão, a D. Crema...e este quem é? É o marido dela? Nunca ouvi falar dele". O rapaz tocou-lhe na mão e ela sentiu aquele arrepio que hoje ao almoço sentira, aquela sensação novamente a percorrer-lhe todo o corpo como se estivesse a ser embalada por anjos em pétalas de rosa. "Este sou eu e esta és tu, daqui a muitos anos". A rapariga desmanchou-se numa gargalhada e continuando nessa risota entrou pelo prédio e fechou a porta atrás de si não fosse a brincadeira acabar mal e o rapaz até ser mesmo perigoso. Ao passar pela porta da D. Crema viu que havia luz acesa e pensou em agradecer-lhe uma vez mais o almoço mas achou que já era tarde e deixou para o dia seguinte a visita.
IV
Nessa noite a chuva voltou com uma intensidade febril. Demorou algum tempo a adormecer, como se sentisse que a presença do homem ainda estava na sua casa, sentiu-se mais segura em deixar o candeeiro aceso. Lá em cima, algumas horas depois a rapariga tentava também ela adormecer. Tentava adormecer sem a ajuda dos comprimidos porque lhe davam a sensação de não ser um sono verdadeiro, nunca se sentia a cair no sono e quando acordava não se recordava dos sonhos. E os sonhos sempre eram algo de novo que nas manhãs seguintes lhe ocupavam algum tempo na cama na recordação e na tentativa de os compreender e tempo era coisa que precisava de ser gasta para ver se passava mais depressa e a vida mudava qualquer coisa. Depois de algum tempo às voltas na cama, acabou por adormecer por si mesma.
Degrau a degrau, ela estava a descer as escadas na escuridão seguindo uma aureola que vinha do andar do meio. Degrau a degrau com algum esforço, ela subia as escadas agarrando-se ao corrimão. No silêncio, escutava-se o gotejar lá em cima na clarabóia do prédio. Seguido e intenso. No meio da escadaria, as duas encontram-se e abraçam-se e das duas, segue uma para cima, uma que não é mais nenhuma das duas.
V
Cremilde é acordada bem cedo pelos seus dois filhos que pulando em cima da cama reclamam o pequeno almoço. Toca no cotovelo do marido e este rebola para o outro lado. Suspirando mas contente levanta-se e vai até à cozinha com os dois pequenos colados nas suas pernas como dois gatos pedindo mimo. "Meninos hoje farei solha frita para o almoço, não quero que me incomodem toda a manhã, dá trabalho e a mamã precisa de concentração". Os dois pequenos olharam um para o outro e pegando nas taças de cereais dirigem-se para a sala procurando o canal dos desenhos animados. Discutem então carregando nos botões ao mesmo tempo da grande caixa de costas largas. A mãe vem da cozinha ralhando para que deixem a televisão, que a muito custo fora comprada, uma das primeiras da rua. Na cama o marido sorri olhando o tecto e pensando "tudo está no seu devido lugar" e expirando da sua boca sai uma labareda de fumo imensa, donde se escuta um choro de bebé. Quando, como se de uma convulsão tudo lhe viesse a si, pensa "o bebé...eu devia ter salvo o bebé...era eu...não!" e berrando correndo à cozinha agarra-se a ela dizendo "perdoa-me...por favor perdoa-me..eu tentei..e tudo foi em vão...tudo se perdeu de como foi...foi erro meu...perdoa-me..."
Nesse exacto momento a rapariga acorda, e escutam-se gritos da entrada do prédio. Desce as escadas ainda em pijama aflita e na entrada da porta da D. Crema estão os vizinhos e uma ambulância estacionada na frente do prédio. Da porta escancarada, numa maca segue um corpo tapado. A vizinha da loja do lado chora dizendo "Coitadinha, diz que foi durante a noite...e não há ninguém para tratar do assunto...ela não tinha ninguém além de nós."
Sem comentários:
Enviar um comentário