Notas
Setembro, 2014
"Quando era pequena sonhava com um paraíso aqui na terra.
Que a vida só podia ser um tufo de algodão doce ou uma maçã caramelizada. Que tudo tinha um lugar certo de acontecer, uma sequência segura que se esperava e bastava deixar-se ir apreciando a paisagem dessa viagem que só podia ser maravilhosa. A vida, um mistério em que as expectativas seriam sempre surpresas boas".
Talvez por isso, Deolinda não estivesse preparada para as agruras, as despedidas ou a morte. E cedo o confronto com a dor, lhe foi lutificando a alma, por dentro e por fora. E desse negro, já com cinquenta anos, quando consegue falar dele, tem ainda uma leve esperança de voltar aos trilhos do seu devido lugar, de um direito de nascer para ser feliz e que já chegaria de tanta tristeza. E nesses momentos de olhos abertos, não dá senão aos outros, momentos felizes, que a fazem feliz também. Percebeu que seria agora nos outros, que podia agir e mudar a vida destes para a melhorar e que isso não podia ter mais eco dentro de si, de paz e comunhão com o globo, mas que tendo nos outros, já seria um começo.
I
Sessão 24
"Toda a estrada nos leva aos nossos pais, dentro da nossa casa em pequenos, no momento em que nos vemos do lado de fora da casa, ela não é mais a nossa casa, mas nunca deixa de ser a nossa pequena casa. Foi assim o meu sonho na noite passada. Eu via-me simultaneamente dentro e fora dessa casa e senti-me angustiada. Não consigo recorda-me de tudo, há momentos que estão apagados e outros enevoados mas sei que a casa estava vazia, como se tivesse sido abandonada à última da hora. Isso remete-me para a altura que rebentou a guerra e o meu pai nos disse que teríamos de fugir rapidamente. Que fossemos lá dentro buscar o essencial, apenas o essencial e eu fui e voltei com meia dúzia de coisas que cabiam num saco de plástico mas pedi-lhe para aguardar. Lembro-me do ar dele de pânico e de ver uma multidão de pessoas ao fundo da rua que se aproximavam em fuga, parecia uma nuvem negra de poeira que assustava. Eu era muito menina ainda e fui a correr então lá dentro e trouxe a peça mais importante para mim naquela altura. A minha pinça. Não podia deixar de arranjar as sobrancelhas. Hoje riu-me disso é claro. Mas aquela casa é provavelmente a casa do meu sonho, abandonada a correr, na mesa da cozinha ainda o leite e os cereais a meio, nos quartos as roupas espalhadas e as janelas trancadas na esperança de um regresso. Mas o regresso demorou, estivemos um mês barricados com outros dois casais na cave de uma casa. Foram tempos complicados, diferentes de qualquer infância de hoje, ou da maioria".
E onde entra o globo nesse sonho?
"Ah, sim o globo. Quando estavamos no carro durante a fuga, o carro ia cheio, eramos cinco e entre mim e a minha irmã mais velha estava um globo. Sabe daqueles da Terra que se acende por dentro e gira. Já não sei quem teve a necessidade de trazer o globo e nem sei se na verdade ele lá esteve ou se foi fruto do meu imaginário durante o sonho, mas é curioso não acha? Um mapa para uma viagem incerta. No começo de uma vida imposta".
Mas o Globo aparece mais tarde certo?
"Sim, foi um presente do meu primeiro namorado. Era um outro tipo de mapa mundo, um meio globo de papel que se colava no tecto do quarto e que brilhava de noite, um planeta iluminado no céu estrelado. Desse Globo não faço a mínima ideia do que terá acontecido, foi numa fase em que eu vivia já sozinha e a minha mãe acabou por desmanchar esse quarto, o meu quarto de criança mas de outra casa, isto já bem depois de ter terminado a guerra e de termos regressado a Portugal - solta uma lágrima que limpa com um lenço branco de pano guardado no casaco - esse foi o meu tal namorado que se suicidou. Querer dar-me o mundo para depois...Mas não lhe guardo rancor hoje...durante muito tempo odiei-o por isso, por me ter abandonado, mas hoje, penso que foi até corajoso...uma coragem que a mim me falta. Agora da morte do meu António, pensei nisso tantas vezes...e não fui capaz".
Quer contar um pouco dessa história?
"O meu António, que Deus o tenha, era um bom homem, foi um excelente marido. Sabe eu casei-me muito tarde, já tinha quarenta e poucos anos. Casei com o homem que eu escolhi e foi na hora certa. Amava-o, tudo nele era tudo o que eu sempre desejei. Foram cinco anos de um casamento feliz. Depois - e volta a soltar lágrimas que lhe escorrem pelo rosto ao pescoço, parando um pouco para se recompor - adoeceu e vertiginosamente faleceu. Foram apenas cinco anos de vida conjunta, mas deixou-me saudade para a vida toda, já lá vão dois anos mas parece que foi ontem, ainda me custa muito estar sem ele. Mas eu tento, seguir em frente, não por mim mas pelos que estão à minha volta. Já não tenho família e a minha cadela, a minha companheira destas andanças faleceu o ano passado, ainda por cima, mas eu tento como posso, continuar. Pedindo a Deus que me traga coisas boas porque já chega de tanta dor. E tenho sentido que ao fazer coisas pelos outros, tenho encontrado um certo conforto em mim".
E ontem voltou a sonhar com o globo?
"Sim, ontem foi um dia estranho. Foi o meu primeiro dia de férias deste ano. Decidi ficar por aqui mas retirando o trabalho manter algumas das minhas tarefas e fazer também algumas coisas que vou sempre deixando para depois, como por exemplo ir à feira da ladra. E foi isso que fiz. Confesso que não foi fácil sair de casa. Entrei e saí três vezes, uma para buscar um guarda chuva porque o céu estava cinzento, outra para mudar de sapatos porque tive receio de escorregar com os que tinha e ainda uma terceira porque já ia a meio do caminho e reparei que me tinha esquecido do porta moedas. Mas lá fui. Calhou bem, como estava de ameaça de chuva a feira estava mais tranquila, menos gente. Não tinha intenção de procurar nada de especial, queria passear e ver por ver, mas numa esquina numa das bancas, estavam candeeiros à venda e o que me chamou à atenção foram os globos, eram cada um de uma cor diferente e eu até tenho lá uma base em casa que aguarda por essa peça, partiu-se há uns tempos. Olhei-os, perguntei o preço, achei um pouco caro e resolvi dar mais uma volta. Mas dei por mim obsessivamente à procura de um globo e vi vários, vidros trabalhados, outros só se vendiam com a base, todo o tipo de bases. Corri a feira toda e só vi globos, mas não comprei nenhum. Senti-me um pouco cansada e parei numa esplanada para beber um refresco. Foi quando ao meu lado, numa outra mesa se sentou um casalinho jovem com dois filhos. Um dos meninos trazia um livro daqueles que as páginas são tridimensionais, e cada página era uma parte do mapa da terra. O livro era redondo na forma do globo. Não sei, fiquei um pouco perturbada, tentei afastar do pensamento a história do globo mas na verdade sonhei com ele nessa noite."
Bem, hoje ficamos por aqui. Espero que continue a aproveitar as suas férias, falaremos mais no próximo dia. Um grande abraço de força - e abraçaram-se.
II
Quando cheguei ao consultório na manhã seguinte à porta, encostada com um laço estava uma caixa de cartão. Levei-a para dentro. Passei pela secretária da Dulce que ainda a esperava fria, consultei a agenda, só tinha pacientes daí a uma hora. Na minha sala sobre a mesa, olhei a caixa de todos os ângulos. Seria algo perigoso? Os pacientes dos últimos tempos não revelavam tendências agressivas e senti-me tranquila para a abrir. Era então um globo. Vasculhei bem a caixa e não havia qualquer carta a acompanha-la, nem sinal de quem a enviara nem porquê. Recordei-me da história da paciente do dia anterior e ocorreu-me que podia ser um presente com alguma simbologia que ela mesma haveria de esclarecer na próxima sessão. Coloquei o globo na prateleira atrás da mesa à janela guardando a ficha que o iluminava para trás. Embrulhei-me nas minhas notas para me preparar para o primeiro paciente do dia e acabei por não me lembrar dele mais ao longo das horas.
Por volta das sete horas, terminando os últimos apontamentos e já depois da Dulce sair, quando procurava um livro que me ajudaria num tema sugerido na última sessão, olhei novamente o globo. O dia escurecera sem que desse por isso e pensei porque não acende-lo. Procurei por uma tomada, em baixo junto ao rodapé e liguei ao ficha. Mas quando me levantei para o observar o susto foi tremendo, uma mão do lado de dentro, nitidamente uma mão lá dentro! Como se estivesse presa ou sufocada. Afastei-me tremendo-me as pernas e voltei a desliga-lo e liga-lo. Lá estava a mão, nitidamente uma mão aberta do lado de dentro junto à parede do globo. Confesso que nunca fui supersticiosa, considero-me uma pessoa absolutamente racional mas a situação desorientou-me. Corri, apanhando a mala no caminho, fechei a porta do consultório e saí para a rua, respirando fundo. Estaria eu a enlouquecer?
A noite foi mal dormida, aquela imagem não saía da cabeça. No dia seguinte, despachei-me ainda mais cedo, queria chegar depressa e constatar que tudo não tinha passado de um momento alucinatório provavelmente de estar eu a precisar também de férias. Abri a porta do consultório, por estranho que fosse, a Dulce já lá estava. "Tão cedo companheira? Até estranho? Está tudo bem?", fresca e bem disposta respondeu "Tudo na boa patroa". Pensando no globo pensei que ela seria a testemunha perfeita para a realidade da situação. "Dulce vem comigo por favor aqui à minha sala". Ela veio atrás de mim. Quando entrei, o globo estava desligado. A sala estava iluminada pelos raios de sol da manhã, "Então ontem esqueceu-se de correr as persianas?", não lhe respondi, corri as persianas para que a sala escurecesse e acendi o globo. Nada. Absolutamente normalissimo. "É giro patroa, foi um presente?", não querendo passar por doida respondi-lhe que sim. Voltei a abrir as persianas e coloquei o globo apagado no canto oposto da sala meio tapado por uma planta. Confiei que tudo não tivesse passado de um disparate da minha imaginação e não pensei mais no assunto até ao dia de receber Deolinda no consultório.
O dia da semana chegou. Na hora marcada esperava-a na minha secretária. Olhando para o relógio, achei o tempo lento, estava ansiosa com alguma coisa. Seriam perto das seis horas, normalmente era a última paciente das quintas-feiras. Seis e cinco. Esta paciente nunca se atrasava mas dando-lhe o desconto de alguma situação anormal, levantei-me para ir fazer um café à copa. Passei pela Dulce "Podes ir embora, só já tenho uma paciente, não te preocupes fico bem, vai descansar". Quando voltei com a chávena de café que fervia nas mãos, para meu espanto o globo estava iluminado. Aproximei-me e a chávena caiu-me das mãos, manchando o tapete de castanho amarelado. A mão, lá estava ela. Não podia ser! Virei as costas e fechei a porta da minha sala. Sentei-me na sala de espera deserta tentado colocar toda a minha lógica em acção mas com dificuldade. Medo, era o que sentia, das profundezas do meu estômago. Olhei para o relógio da secretária da Dulce, seis e meia, a Deolinda faltara. Todos os pacientes sabem que uma das minhas regras é a tolerância dos quinze minutos, depois disso não os atendo e sem aviso prévio, cobro-lhes a consulta. Ela faltara de facto. Abri a porta da saída e espreitei, ninguém. Um silêncio aterrador da escuridão do interior do prédio. A maior parte dos andares são escritórios. Senti mais medo ainda, peguei na mala do cabide e saí. Trouxe comigo a agenda dos contactos dos pacientes e fora do prédio, sentindo-me mais protegida liguei para a Deolinda. Para casa e para o telemóvel. Nada. Geralmente quando um paciente falta aguarda-se a próxima sessão para ver se volta e só depois se tenta insistir para saber o acontecido mas a história do globo estava a atormentar-me e resolvi ir até casa dela. Tinha de apanhar dois autocarros e assim o fiz. Ao longo do caminho muitas ideias estapafúrdias me passaram pela cabeça. Mas talvez tudo estivesse bem e eu precisasse realmente de uma pausa.
As pessoas tinham um ar cansado de regresso a casa. O autocarro estava muito cheio e de pé, colavam-se os corpos de uma forma desagradável. Lembrei-me daquele dito que havia lido há pouco tempo já nem sabia bem onde, dizia que as pessoas no metro não estão tristes, devido à excessiva proximidade, estão apenas a tentar esconder as suas emoções. Depois de ter lido isso começou a causar-me menos impressão o rosto cinzento que encontramos quer no inicio quer no final de um dia de trabalho nos transportes públicos à hora de ponta. Se o é ou não é, não sei. Ilude-se a minha ideia com esse dito. E sinto-me talvez um pouco melhor entre os demais. O dia escureceu de todo ao longo da viagem, agora os dias eram mais curtos.
III
Quando cheguei a casa dela, uma moradia pequena, reparei que tinha as luzes acesas. Estaria em casa, eu tinha feito um drama sem pés nem cabeça. Pensei em dar meia volta e esperar pela próxima consulta, não é bom habituar os pacientes a visitas domiciliárias sem razões extremas para o fazer. Mas quando ia a passar pelo portão para sair do pequeno jardim da frontaria da casa, reparei que a caixa de correio estava a abarrotar de cartas e algumas estavam caídas no chão. Havia folhetos de publicidade e um deles, reconheci-o de um dos supermercados, era da semana passada. Por norma nem olho para eles, deito-os directamente no lixo mas este tinha-me ficado na memória porque trazia artigos de escola e o regresso à escola trouxe-me nesse momento uma certa nostalgia, do primeiro dia de escola. Então a Deolinda não tinha recolhido o correio desde a semana passada, não combinava muito com ela, gostava de ter tudo arranjadinho e arrumado, era organizada, até porque a organização ajudava-a na estruturação e combate à solidão. Voltei atrás tocando na campainha. Voltei a tocar e nada. Espreitei pela janela ao lado da porta. Não parecia estar ninguém em casa. Mas não havia sinais de nada de diferente de uma sala normal. Pensei então em tocar na porta ao lado, as vizinhas saberiam de algo, ela já em várias sessões havia referido que se dava muito bem com elas. Bati na moradia ao lado. Uma senhora de bata e chinelos veio à porta. "A Deolinda? Ah realmente não a vejo há uns dias, ela costuma vir ver a novela a minha casa mas como está de férias até pensei que tivesse ido para algum lado, mas é estranho é, agora que penso nisso, não me avisava nem nada, então e o gato? Quem é que está a dar de comer ao Micas? Não me digas que ela pediu à Gertrudes e não me pediu a mim, que insulto!". Não querendo preocupar a senhora pareceu-me pertinente só por descarga de consciência saber se ela tinha uma chave. E tinha. Fomos então as duas e agora vendo as luzes acesas da outra, o ciúme da senhora dava lugar a uma preocupação genuína na sua expressão "Ai meu Deus, queres ver que lhe deu alguma coisinha ruim! E eu para aqui com estas ideias, Deus queira que não, Deus queira".
Foi preciso apenas rodar a chave, a porta não estava trancada. Entrando para a sala, tudo parecia no seu devido lugar. Havia em todo o espaço uma aura de conforto e cuidado manual, as almofadas pareciam bordadas à mão, as cortinas floridas, os vasos podados e na cozinha sobre a mesa, um copo de leite meio cheio, compota de figo e um pote de mel, ao lado um cesto de pão. Toquei no pão estava duro e cheirei o leite, estava azedo. O pequeno almoço ficara a meio. A senhora que me acompanhava agarrou-se ao meu braço com tamanha força que as unhas se me vincaram na pele, gemendo eu de dor. Passamos pelo quarto e a cama estava ainda desfeita mas de Deolinda nem sinal. Chamamos por ela e nada, corremos os cantos todos à casa, nada. A situação era alarmante e chamei então a polícia dando a ocorrência do desaparecimento.
Quando saí da casa senti no peito uma angústia estranha. Era noite cerrada já mas a ideia do globo badalava na minha cabeça como sino berrante. Eu tinha de voltar ao consultório, estaria lá a resposta.
IV
Hospital de Santa Maria, 4 da manhã
"E o que fez depois de ter saído da casa da paciente?"
Entrando no prédio deserto àquelas horas confesso que as pernas me tremiam perante a imagem daquela mão aterradora. Entrei, acendi as luzes e abri a minha sala. Lá estava o globo, no mesmo lugar. Carreguei no interruptor e ao acender da luz amarela interior, lá estava a mão colada na parede do mapa mundo. Imóvel e silenciosa. Sentei-me na poltrona dos pacientes olhando para ele. E com o passar dos minutos a familiaridade com o fenómeno acalmou-me. Nunca em doze anos de profissão me acontecera qualquer fenómeno paranormal e tudo em mim procurou sempre a explicação mais racional, considerando as emoções uma fraqueza que só aos pacientes seria permitida. Mas havia algo de espírito ou irracional nesta situação e não sei porquê aproximei-me do globo, estendi a mão aberta e toquei-lhe na superfície sobre a mão interior. Foi nesse momento ou a partir desse momento que nada mais me recordo. Acordei aqui, onde me encontro agora conversando consigo, doutor.
V
As duas mãos tocaram-se e a mão da terapeuta mergulhou então no espaço interior do globo, seguindo-se todo o seu corpo. Como se passando a outra dimensão, os sentidos demoraram algum tempo a adaptar-se à luz e aos contornos. Parecia que tudo estava em arrasto, num contínuo de cores e formas oníricas. Do outro lado estava Deolinda. As duas em silêncio contemplando agora lado a lado. Saídas de um arco-íris deslumbrante, as cores eram doces e ao mesmo tempo intensas. O céu rosado de laivos amarelos fortes, como se o sol tivesse sido espalhado tal gema num caldo de abóboda celestial. No horizonte colinas de um verde brilhante pingado de gotas de cristal aqui e ali e pássaros de azuis e vermelhos voando ao largo de inúmeras copas de árvores gigantescas.
Então ela deu-lhe a mãe e disse-lhe "Ainda bem que veio ter comigo, sempre gostei de si, não podia escolher outra pessoa para estar ao meu lado deste lado". A terapeuta meio adormecida pelos sentidos respondeu "Mas onde estamos Deolinda?". A outra levou-a pela mão e sentou-se na sombra, num baloiço branco onde cabiam as duas fazendo sinal para que se sentasse também.
"Não sei bem mas é tudo o que sempre sonhei. Recorda-se de um exercício que fiz no seu consultório aqui há uns tempos? A Arca de Noé? Eu lembro-me bem, lembro-me de ter de referir quem ou o que eu levaria para um lugar sem volta e na altura...". E a terapeuta completou-lhe a frase "não levaria nada nem ninguém, só a si e ficaria lá para sempre por ser um paraíso...por ser o lugar do mundo mais bonito e feliz, bem diferente deste...ou daquele em que estavamos, sim eu recordo-me bem Deolinda". "Pois sim, eu encontrei esse lugar, dentro do globo, e não podia deixar de partilhar consigo esta dádiva". A outra levantou-se e afastou-se preocupada. "Mas isto não pode ser real?! Estamos dentro de uma espécie de sonho ou algo delirante...é preciso voltar Deolinda, aqui não é a realidade!". A outra acompanhou um pássaro que levantava asas no céu para longe. "Real? A mim parece-me bem real não lhe parece a si? E o que é a realidade? Desde criança que só conheço a partida, a dor, a morte, a escuridão e a desesperança. Aqui tudo é perfeito. Tenho até esperança de encontrar o meu António, ele deve estar por aí, só preciso de acreditar."
A terapeuta não sabia bem o que dizer, estava também ela confusa. "A Dra deixa assim para trás uma vida tão interessante? Venho também a observa-la ao longo das nossas sessões, não é só o meu espelho, tenho sido também o seu. Sei que entra cedo e sai tarde, sei que vive sozinha e só ao Domingo reserva tempo para si e até ao Domingo a Dulce referiu na sala de espera que a Dra vai para lá muitas vezes. O que tem feito da sua vida? Escutar a vida dos outros? Ajuda-los? E a sua? Tem sido feliz? Quando a Dra me felicita por encontrar prazer em ajudar os outros e algum conforto para a minha solidão, não estará também a falar de si? Eu não a escolhi por acaso".
"Mas Deolinda..." e acabou por chorar, lágrimas compulsivamente soluçando-lhe de dentro. "Eu ainda tenho sonhos, eu ainda quero uma vida feliz para mim...não tenho corrido atrás dela é verdade, mas ainda a desejo...eu sei que sim e a Deolinda sabe que também tem à sua espera coisas boas, lá bem no fundo eu sei que tem esperança, sinto-a muitas vezes nas suas palavras". A outra aproximou-se dela e segredou-lhe ao ouvido como se um sopro encantador lhe trouxesse a paz percorrendo-lhe toda a espinha até ao arrepio dos cabelos na nuca "Aqui."
A terapeuta levantou-se e insistiu nas suas poucas forças endireitar-se "Não, aqui vejo realmente beleza e paz mas não vejo mais ninguém, não é menos solitário que do outro lado." "Aí é que se engana, a Arca de Noé é real, bem, ela existe num outro plano diferente da que nos conta a história e poucos são os que a podem conhecer, mas ela existe, estamos dentro dela. E acredite há outros como nós, eu já estive com eles, quando estiver preparada iremos ao encontro deles". "Outros?" e Deolinda reafirmou "Sim, outros como nós, que receberam esta dádiva". "Não, não posso cair consigo neste delírio, o meu papel aqui só pode ser tentar que volte comigo para a realidade, para a nossa realidade".
Perante estas palavras instantaneamente o céu cobriu-se de nuvens escuras e raios e trovões alcançando a copa das árvores e também elas se tornaram negras, secas, lascando e abrindo de ocas. As cores do arco-íris passaram ao espectro do preto como se absorvidas por uma agressão medonha e a terapeuta encolheu-se com um medo de terror infantil. O rosto de Deolinda mudou, parecia em fúria, a pele empalidecera a ponto de deixar transparecer a caveira ossuda que se escondia debaixo da pele. E falou com um tom que nunca lhe escutara antes "A Arca pode ser um sonho mas também pode ser um pesadelo, para aqueles que não acreditam, para aqueles que a negam depois de a receberem, para aqueles da ingratidão, o castigo da morte no limbo do nada, para sempre".
A terapeuta ajoelhou-se agarrada aos pés de Deolinda implorando "Por favor, venha comigo, eu irei ajuda-la, estarei sempre ao seu lado". A outra afastou-a de si com desprezo "Não, o meu lugar é aqui". "Mas então o meu lugar é lá, eu ainda tenho muito para fazer daquele lado, eu preciso de ajudar os outros, pense em todos os pacientes que deixo para trás, a Deolinda está só, eu compreendo que se sinta desligada e esteja em paz para partir mas eu não estou, muitos dependem de mim do outro lado, estão em risco, precisam de apoio, tal como a Deolinda precisou na morte do seu marido, eu estive lá, preciso de estar lá para eles, por favor deixe-me partir." A ideia da terapeuta era manipular a culpa de Deolinda para que a deixasse partir. E no rosto dela começou a distanciar-se a agressividade e aos poucos voltou a si. O céu levemente foi então limpando e tomando a tonalidade de rosa outra vez. Então a terapeuta rematou "Deolinda, eu gosto muito de si, quero todo o bem para si, se está certa de ser mais feliz aqui quem sou eu para lhe dizer o contrário. Eu não sou digna deste lugar, o meu sofrimento não foi nem de leve nem de longe igual ao seu ao longo da minha vida, tenho tido uma vida tranquila, sim talvez sossegada demais, mas tenho sido poupada de dores e perdas maiores e por isso, não conheço tamanha angústia nem posso julgar verdadeiramente os seus atos. Deixo-a com todo o meu carinho, estarei sempre lá".
E partiu.
VI
Notas Novembro, 2014
"Sinto-me no limite, de não aguentar mais. De ter perdido todo o sentido estar vivo. Afinal o que fazemos aqui na terra? Que a vida não é senão isto e nada mais que isto? Não posso crer que tanto custa a nascer, que berramos e choramos logo ao nascer e durante todo o caminho, acabamos por andar neste ciclo, de voltas e reviravoltas, para depois morrer, só isso. E o que deixamos para tras? Que legado esse pode ser assim tão precioso? Pois bem, vejo as minhas últimas forças para continuar em frente nos meus filhos, que por eles me levanto e continuo, não quero imaginar sequer a minha vida sem eles, já não estaria cá há muito tempo mas no entanto tenho sonhado insistentemente com o globo, não sei donde me vem essa ideia, o globo, em todos os sonhos ele aparece primeiramente acompanhado de uma sensação boa, como se estivesse a bordo de um carrossel e depois não sei, parece que caio num buraco e acordo".
Francisco, Sessão 15. Explorar melhor o sonho nas próximas sessões. Acompanhamento atento, noto sinais de fragilidade suicida.
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