Discepolín
I
Pelos beirais corria uma brisa fresca rompendo os últimos raios de sol de um Verão quente e seco que se despedia pelos dias de Setembro. Descendo a colina, o olhar perdia-se nas margens do rio, onde um barco à vela se aproximava lentamente da outra margem, de outra cidade. As duas em espelho, revendo-se todos os dias, revelando-se na sua vida contínua em voos de pessoas para baixo e para cima. Do lado de cá, olhares curiosos em binóculos nos miradouros, os últimos turistas no deslumbre de terraços de sonho, telhas floridas e janelas indiscretas. Passagens de dentro e fora, rituais de casa, famílias barulhentas, roupa estendida sem vergonha, regando vasos de uma corrente cujas pinceladas dão cor a uma cidade calçada de romance.
São nove horas da noite.
Ele chega. Descendo do Ascensor, carregado com uma mochila e uma mala de mão. Traz consigo os primeiros nocturnos que se resvalam para encontrar uma mesa para jantar e os últimos diurnos cujos pés imploram por um banho quente e uma cama confortável. No topo da colina, uma a uma as luzes vão-se acendendo, dando uma áurea de encantamento de promessas de folia, a cidade que novamente desperta depois de uma breve sesta ao poente. Procura pela direcção da casa num pedaço de papel guardado no casaco onde havia rabiscado um mapa pelo caminho. Rua Direita, 4º andar.
São nove horas da noite.
Ela abre a janela do 4º andar. Pelas portadas vidradas entram agora os primeiros gestos da noite. Ajeita a planta no canto debruçada na varanda. Na rua estreita caminhando as pessoas conversam animadamente palavras de outros continentes. Descalça o fresco traz-lhe um arrepio ao pescoço, passando a mão e levando os cabelos à nuca, deixa-se envolver pelas onduras da cidade. A vista em frente é uma outra janela que a pouco mais de um braço se encontra ainda fechada. Há dois meses que vive nesta casa, uma mudança que ainda lhe deixa alguma estranheza sobretudo pelo aperto das ruas do bairro. Virando o rosto, o rio lá em baixo espelhando a lua redonda e amarela. Doce e solitária, compondo o céu de véus desnudos. Volta para dentro, deixando a janela na brisa.
Ele encontra a rua, na porta do prédio espera-o uma senhora rechonchuda sisuda. Sobem então e ela mostra-lhe a casa. "É um prédio antigo, não temos elevador e as escadas são estreitas, não têm luz, estamos a tratar disso, tenha cuidado. Então veio de viagem não é verdade? Vai ficar por cá muito tempo? O mínimo que alugo são três semanas, recorda-se disso? A casa está mobilada e aqui da sala, tem a melhor vista, venha ver o rio...". Ao abrir a janela, o olhar dele entra dentro da casa dela. Uma cortina leve branca deixando espreitar uma outra sala gémea desta. E a senhora volta-o para dentro "Então vem a trabalho ou vem passear?", "Venho a trabalho, sou jornalista. Trabalho para uma revista de viagens, sou português mas vivo em Londres desde criança e finalmente agora posso regressar por algum tempo". A senhora entregou-lhe as chaves despedindo-se "Tem aqui muito com que se entreter". A porta fecha-se e ele pode enfim despir-se e tomar um banho. A primeira noite nalgum lugar é sempre a mais difícil, por mais tempo que passe viajando, a solidão bate sempre nesse lugar ao chegar. Todas as divisões da casa eram pequenas e isso dava-lhe uma sensação de aconchego. Volta à janela para fumar um cigarro. São nove e meia da noite.
Na cozinha ela prepara o jantar. Nada de muito complexo, hoje é sexta feira e é noite de encontrar os amigos pelos bares apinhados do bairro. Enquanto a massa coze na panela ao lume, vai ao quarto e procura pelo vestido preto. "Está lá fora ainda na corda" pensa. "Não teve tempo de secar, é melhor escolher outra coisa". E dando volta ao armário, escolhe uma saia e uma blusa para combinar com os sapatos.
Ele tem fome. Vai até ao quarto e ainda com a mala meia aberta, espalha as roupas pela cadeira, "Depois arrumo isto". Vestiu umas calças e uma camisa, calçou-se e procurou pela carteira e as chaves. Iria procurar por um lugar simpático para jantar por aí. Fechou a janela e saiu, descendo as escadas encaracoladas e sombrias. Cá fora, espreitou debaixo a janela lá em cima do prédio da frente. A cortina continuava dançando tímida no mistério que a revelava isolada de tudo o resto. Não sabia se havia de subir a colina para o castelo, se descer ao rio. Na indecisão, e não querendo perder-se logo na primeira noite, procurou pelas ruas paralelas à sua por um restaurante. Amanhã teria tempo de olhar o mapa e os guias turísticos que trouxera para explorar a cidade, uma cidade que apesar de sua era totalmente desconhecida. As memórias que lhe espreitam são filigranas de um tempo de criança pequena, um tempo em que os pais pobres emigraram no sonho de uma vida melhor. De português sente a saudade de um nem saber de quê.
Passou por dois restaurantes onde não havia lugar e numa esquina mais recatada, um tasco mais singelo serviu-lhe sardinhas e salada de batatas e pimentos assados. Recordou-se do sermão aos peixes. As sardinhas "Tomai o exemplo das irmãs sardinhas...Porque cuidais que as multiplica o Criador em número tão inumerável? Porque são o sustento dos pobres". Mas hoje sentia-se rei porque numa boa mesa portuguesa estava um português de gema. Esta viagem há muito que a aguardava, que aqui havia de encontrar um elo, uma parte do seu código genético que permanecia na escuridão. Ao jantar bebeu um pouco de vinho e depois perguntou ao senhor do tasco se havia algum miradouro perto. Com expressões recatadas e viravoltas atrapalhadas o homem conseguiu orienta-lo.
O alarido nas ruas aumentara, parecia que a cidade estava em festa, copos, música, bares abertos e eléctricos passando.
São dez e meia. Ainda ajeitando atrasada o cabelo vermelho endiabrado, ela passa pelo miradouro para descer até ao rio. Sem tempo de grandes deslumbres apressa o passo que nos saltos dos sapatos é um tango numa linha de trapézio, arriscado. Já estariam à sua espera. Hoje havia concerto e os primeiros guardavam mesa para os últimos. Nesta altura do ano parecia que a cidade não era sua, como se viajasse para outro lugar sem sair do mesmo, porque menos estão os que lhe pertencem, a cidade toma múltiplas identidades confundindo-se com todos os lugares e nenhum. Odiava esta altura de facto. Odiava falsamente estar e não estar. Não tinha paciência para a euforia planeada das férias dos outros, e nunca tinha dinheiro para sair ela mesma daqui. As muralhas do castelo eram um calvário a que aprendera a amar, como cativa de um rapto a que se acomodara.
Ainda acusando o cansaço da viagem e da correria da entrega do último trabalho, ele despede-se da vista prometendo voltar de dia para outros espectros de vida. Lentamente e absorvendo cada encontro, regressa a casa. Adormeceu sem qualquer esforço sobre a cama vestido mas descalço.
São quatro da manhã. De sapatos na mão cambaleante ela empurra a porta do prédio procurando a luz das escadas. "Não funciona? Porcaria de casas velhas!", subindo quase de joelhos ao 4º andar entorna-se à porta de casa que quase sem resistência se abre, espanta-se "Então mas eu não fechei a porta de casa? Será que me assaltaram a casa?". Sem acender as luzes e destemida pelo álcool que trazia no corpo procura escutar por ruídos de dentro de casa. Escuta então uma respiração profunda e arrastada do quarto. E gatinhando até à cama encontra dois pés descalços dormindo. Toca-lhes e constatando a sua realidade, solta um grito. Ele acorda ofegante e assustado. E procura pela luz do candeeiro na mesinha de cabeceira. Diante de si uma rapariga atónica, de joelhos como um gato assanhado à sua beira. Abre bem os olhos e tocando no seu peito percebe que está de facto acordado.
Com a luz acesa, ela percebe então que não está na sua casa. Corada levanta-se "Peço desculpa, parece que me enganei de casa...". E dando meia volta corre para a porta descendo as escadas quase em escorrega. Cá em baixo olha para o seu prédio e envergonhada entra por ele a dentro como se fosse o buraco mais desejado do mundo.
Ele ficou sentado na cama pensativo. "Como fui esquecer-me de trancar a minha porta?" e voltando a deitar-se ficou ainda algum tempo a recordar os traços do rosto que tão abruptamente o acordara. Acabou por voltar a adormecer.
O dia amanheceu cinzento nos beiços das gaivotas e das velhas que afinando a voz se preparavam para mais um dia de feira ao largo da igreja. Ela e ele acordam. Ainda perdido nos acontecimentos da noite anterior, ele deixa-se ficar um pouco na cama pensando nela. Ainda dorida a cabeça da noite anterior, ela levanta-se quase de olhos fechados procurando por água e um comprimido. Senta-se no sofá da sala, olhando a janela fechada, pensando nele do outro lado. Estaria ele acordado? Estaria ela acordada?
Ele levanta-se e vai até à cozinha. A única coisa que a sua mala de viagem não dispensa é café solúvel para a primeira manhã. Seria prático. Era preciso descobrir uma mercearia, não tinha mais nada em casa para comer. Aqueceu a água, fez o café e sentando-se no sofá da sala olhou para a janela. Estaria aberta a dela? Levantou-se e aproximou a cabeça, afastando a cortina apenas um dos seus olhos podia ver e ser visto. Estava fechada. Voltou ao sofá para terminar o café e procurar orientação no mapa, planeando assim o seu dia. Uma sensação de curiosidade doce tomou-lhe novamente o pensamento. Quem seria ela? Achara-a francamente bonita e selvagem. Aqueles cabelos vermelhos. Labaredas faiscando um rosto pálido e assustado. Riu-se da situação e desejou encontra-la novamente, ardentemente depressa. Passou-lhe pela cabeça ir bater-lhe à porta, mas a situação havia sido constrangedora e podia ser mal recebido. Afastou a ideia dos seus pensamentos. Muito tempo em viagem sempre sozinho deixava-o assim, carente de aventuras, as quais a maior parte das vezes só decorriam mesmo no seu imaginário, quer por inércia de concretização quer por partidas e chegadas sucessivas, quebrando o elo de histórias entardecidas de dias sem história. Havia qualquer coisa no rosto dela que lhe remetia à sua infância. O desenho do queixo talvez. Alguém que conhecera em criança mas cuja recordação não lhe deixava senão uma quebreira de primeiro beijo. Alguém...
De volta ao quarto ela procura pelo telefone com a ideia de ver as horas. "Meu Deus, são onze horas! Já devia estar na mercearia desde cedo...Sábados! É sempre a mesma coisa...". Vestiu umas calças de ganga e uma blusa, calçou as sandálias e a correr desceu as escadas. Pelo caminho voando-lhe os pés o mais depressa que podiam, passou-lhe a sua vida pela cabeça. Três empregos...não seria demais? Não tinha tempo nem para ir à praia, estava pálida que nem uma parede de cal. Como podia ter uma relação com alguém se a sua vida era organizada por horas daqui para acolá? E sempre emparedada nestas ruas estreitas, cujo horizonte não passava de um mesmo rio, que por mais belo que fosse já enjoara a vista, de ser sempre ele mesmo. Nada acontecia de novo. Nada, com a excepção da noite anterior. Quem seria ele? Donde viera? Achara-o deliciosamente tentador. E aqueles pés...E aqueles olhos verdes...Entrando pela mercearia, dando de frente com os olhos furiosos do patrão, o encanto deu lugar a um ataque de raiva "Já sei...que quer que faça? Não tenho direito nem a dormir mais duas horas ao sábado, vida cruel! Que quer que lhe diga? Não posso ter outra...desculpe, para variar...". O patrão ia repostar em fúria escalando mas subitamente enterneceu-se com ela, "Miúda, eu sei que tens muitas dificuldades, que és jovem e gostas de te divertir mas se assumiste este compromisso...devias tentar...eu preciso mesmo da tua ajuda aos sábados...é o dia de mais movimento." Ela surpreendeu-se. Não estava habituada a atitudes paternais. Desde muito jovem que estava entregue a si mesma. Uma infância feliz mas curta. Para trás ficara uma aldeia e uma história de despedida em tristeza. Não queria pensar agora nisso "Tem razão..mãos ao trabalho. Vou para a caixa."
Meio dia. Depois de infindáveis esquinas labirínticas e já sem esperança, ele encontra finalmente a mercearia. Por uma porta de madeira escancarada, fazendo soar a campainha dos visitantes, dá sinal da sua entrada no pequeno espaço apinhado de prateleiras e mais corredores labirínticos. Da caixa, acabando de atender um casal de chineses ela olha para o espelho redondo no tecto, "Não param o raio dos clientes...mas...não pode ser, é ele, aqui?". Corada, deixa a caixa e procura pelo corredor onde ele circula. Não querendo ser vista, deixa-se observá-lo do fundo. Perdido nas conservas, parado com uma lata de sardinhas na mão. "Que fazes aí miúda? Tens clientes na caixa...hoje vens mesmo virada...". O alvoroço provocado pela repreensão do patrão fá-lo virar a cabeça na direcção deles. "É ela...", sorrindo aproxima-se. Mas ela fingindo não o conhecer, volta para a caixa fechando o olhar nas notas da gaveta, dedicando-se ao grupo de ingleses que já aquelas horas manifestavam uma euforia de pouca água. Atrás deles e esperando por um momento a sós com ela, ele aguarda nervoso, pensando no que lhe dizer.
Quando finalmente chega a vez dele, olha-a nos olhos e diz "Olá". Ela fica parada a olhar para ele sem reacção. E ele continua, "Eu...gostava de convidar-te para jantar". Não sabendo donde lhe vieram aquelas palavras, estendeu a lata de sardinhas na direcção do olhar dela. Ela não aguentou, explodiu de riso, "E é isso que vais oferecer-me para jantar? Estou tentada!". O riso dela descontraiu-o, "Ah, bem talvez fosse mais interessante seres tu a escolher um restaurante giro, não conheço nada daqui, cheguei ontem". A simplicidade dele encantou-a mais ainda. "Saio às oito" e sorriu-lhe com marotice covando-lhe apenas esse lado do rosto. "Boa, espero por ti em casa e vamos". E saiu extasiado, sem olhar para trás. Lá dentro o sorriso dela não se desfazia. Coçou a cabeça, passando a mão pela boca como se o quisesse esconder.
Ao longo do dia várias foram as repreensões do patrão dando graças a Deus quando chegou a altura dela ir para casa "Vê se descansas miúda, hoje estavas com a cabeça virada ao contrário...". Todo o dia ele não lhe saíra do pensamento. Estava nervosa com a situação, falta de prática nestas coisas, não sabia nem o que vestir. Chegando a casa, acendendo a luz da sala, ele sentiu a presença na janela dela, espreitando-a. Ela passou do quarto para a sala em cuecas e voltou a passar uma vez com algo que parecia uma saia rodada e outra com uma outra mais comprida. Tudo silhuetas que ele conseguiu perceber da janela dele, e este espreitar sem ver, abria-lhe ainda mais o apetite. Estava pronto há uma hora, todo o dia vagueara pela cidade com ela no pensamento. Como se a cidade tivesse agora os contornos de um só rosto e tudo fosse música aos seus ouvidos, uma música sensual e quente de encontro, mistério e corpo.
Oito e meia. A janela dela abre-se. Percebendo, instantaneamente ele abre a dele. Frente a frente, o 4º andar que os separa num abismo tentador é a ponte dos seus olhares. "Como és bonita!", ela voltou a dar-lhe aquele sorriso, sentindo envolver-se no verde profundo e calmo dos olhos dele, "Vamos?" e fechando-se as janelas, desceram as escadas e encontraram-se à porta.
Quando começaram a caminhar lado a lado, ela percebeu que ele era bem mais alto que ela e ele percebeu que ela era ainda mais bela, por ser delicada e pequena. Alguns metros à frente quando teria de escolher se iam para a esquerda ou para a direita, ela parou perdida. "Pensaste nalgum lugar?" e nas palavras dele ela viu então que ao longo do devaneio do dia se esquecera de pensar num restaurante. Rapidamente procurou visualizar na sua cabeça mas a presença dele atrapalhava-lhe o pensamento. Então ele sugeriu "Estava a ler num roteiro turístico que há um restaurante perto do castelo muito bonito, com a vista mais bela da cidade, queres ir a esse?", pela descrição pareceu-lhe um lugar que conhecia de nome mas por ser caro nunca lá fora. Como a viu de volta das mãos preocupada ele tranquilizou-a, "Não te preocupes é a revista que paga e além disso faz parte do meu trabalho recolher histórias e vivências contadas na primeira pessoa". "Bem sendo assim, será um prazer acompanhar-te".
Ela ficou deliciada com a ideia de jantar num lugar como aquele e sentiu-se aconchegada por ele ter adivinhado a preocupação dela, revelava sensibilidade nele e isso agradava-lhe e muito. A caminhada até ao castelo ainda era longa e ela foi-lhe mostrando pormenores da cidade aqui e ali. "Sabes que eu nasci nesta cidade...mas parti muito pequeno", "Sabes que eu cheguei aqui muito nova, mas nasci numa aldeia" e assim foram preenchendo algumas lacunas da estranheza que os envolvia, sem no entanto quebrar o desejo de conhecer algo que não se traduzia por palavras entre eles.
O restaurante era um lugar de sonho. Toalhas de linho imaculadamente branco, três copos de cristal, empregados fardados a rigor e uma vista daquelas de fotografia de catálogo de luxo. Ela não teria imaginado tanto, que a cidade conseguia ainda surpreende-la. "Aposto que nas tuas viagens estás sempre a conhecer lugares como este e raparigas como eu?, aquelas palavras souberam-lhe a veneno na própria língua. Ele demorou algum tempo a responder e acabou por calmamente lhe dizer "Deus está na poesia entre os homens e são poemas como tu que nos fazem querer ser os olhos desta cidade. Como nenhuma outra". Ela encolheu-se envergonhada, "Vejo que também gostas de dizer coisas bonitas", "Sim, tenho muito tempo livre nas minhas viagens para que o pensamento se perca nas palavras bonitas e ás vezes guardo-o num caderno, talvez um dia possa publica-lo, não sei...mas respondendo à tua questão...lugares bonitos sim, pessoas bonitas nem por isso, estou só há muito tempo". Ficou mais tranquila. "E tu? Tens alguém?", neste tipo de questões era justo que o outro também fosse tranquilizado, "Não, trabalho demais, nem tenho tempo para encontrar alguém". E com esta informação puderam seguir para outros voos sem preocupações minantes. "Talvez me possas mostrar esse caderno mais tarde" e voltou àquele sorriso maroto. "Mais tarde terei todo o gosto".
Mais tarde chegou. Onze horas da noite.
Na rua lado a lado das portas, os dois estavam agora calados. No desconforto da demora do dizer alguma coisa, ele perguntou então "Queres subir para veres o tal caderno?", ela sabendo que o convite era outro coçou a cabeça e voltou a mão à boca. Vendo-a indecisa ou provocando-lhe insegurança ele aproxima-se do pescoço dela "Vem", arrepiando-a. Dando-lhe a mão entraram no prédio dele. No escuro, a proximidade dos corpos passo a passo numa escada inclinada e apertada, o calor dava a ideia de estarem no pico do Verão debaixo da torreira do sol. Sem acender as luzes de casa ele levou-a para a sala passando pela janela, abrindo-a. O fresco do luar trouxe-lhe das profundezas do corpo a sensualidade de outro à vontade. Por detrás, no parapeito aproximou as mãos da anca dela, descendo pelas pernas, subindo a saia. Alguém que passasse na rua olhando para cima podia vê-los e isso era a pimenta no chocolate que fervia. Quando as mãos dele alcançaram o meio das pernas dela, ela deteve-o com a mão "Não". Então ele levou a boca ao pescoço dela e começando por detrás da orelha beijou-a agarrando-a para si. Voltou a vira-la de costas e desta vez com mais convicção despiu-lhe a saia e começou a desapertar-lhe a blusa procurando pelos seios. Eram duros e redondos, pousou-lhe os dedos nos lábios e com a outra mão voltou ao meio das pernas. "Deixa que os nossos corpos se entendam, estão coisas a mais aqui que não lhes pertencem". E pegando-a ao colo levou-a para a cama, terminando de a despir. Nua sobre a cama o escasso luar que chagava da janela da sala e ele a despir-se. "Como era belo" pensou. Sentiu-o nos seus braços, os corpos encaixando-se, depressa e devagar, no ritmo de uma dança de paixão que chegava a doer de tão penetrante.
Depois, deixando-se abraçados ficaram em silêncio.
Ela desceu deixando a cabeça no peito dele e ele acariciando-lhe o cabelo.
"Como é estar sempre de um lado para o outro? Sentes falta de algo ou alguém?". Ele respirou fundo. "Acho que não chegas a sentir falta daquilo que nunca chegaste a ter...", "Queres dizer saudade?" pergunta-lhe baixinho, "Saudade...essa palavra tão portuguesa...talvez seja isso sim, talvez eu tenha começado a viajar por não ter saudade de ninguém...". Ela ficou calada. "E tu? Já soubeste o que é ter saudade de alguém assim?"...não sabe de onde lhe chegou uma lágrima no canto do olho que chegou ao centro do peito dele. Ele tocou-lhe no rosto trazendo-a ao seu olhar "Que se passa? Ficaste triste? Não queria aborrecer-te com esta questão".
Ela sentou-se na cama. "Acho que acabo de sentir saudade, já...de ti. Desculpa nem entendo de onde isto vem, acabamos de nos conhecer. Talvez esteja com medo..." Ele sentou-se também, ligou a luz do candeeiro e acendeu um cigarro. E a expressão dele mudou, rígida e distante. E disse finalmente como se lhe estivesse a sufocar "Era um risco que sabias estar a correr". Estas palavras bateram-lhe como uma pedra no charco e numa onda de ódio e mágoa, ela levantou-se agarrou nas roupas e saiu, vestindo-se como pode pelas escadas abaixo. Entrou em casa e deixou-se cair de joelhos atrás da porta, chorando.
Ele deixou-se ficar na cama. Caindo lágrimas pelo rosto, molhando a almofada. Sentia-se terrivelmente triste. "Talvez esta viagem tenha sido má ideia. E porque lhe dissera aquilo? Por medo também?", por momentos não se reconheceu. E foi ficando prostrado olhando a janela desviada lá na sala, vazia.
Nos tempos que se seguiram, os dias tomaram uma cor triste. De cada vez que ele abria a janela tinha esperança de que ela estivesse lá, mas a janela estava fechada, de cada vez que saía de casa tinha esperança de se cruzar com ela, mas as ruas estavam desertas, e ansiava chegar sábado para voltar à mercearia onde esperava encontra-la. E sábado chegou.
Ele acordou cedo, tomou o café e pela rua seguiu procurando acertar no labirinto da memória. O patrão estava a abrir a loja. "Bom dia, sabe se a rapariga que trabalha aqui aos sábados hoje vem?", o patrão olhou para ele e paciente repenicou "Olá meu rapaz, isso gostava eu de saber, ela vir vem sempre nunca se sabe bem é a que horas, só me dá dores de cabeça aquela". Em frente à mercearia havia um pequeno café com duas mesas à porta. Pensou em sentar-se e esperar por ali. Para se entreter trouxera o último guia que comprara na cidade, uma semana já lá ia e o trabalho estava lento. Tirara poucas fotografias e havia recolhido apenas uma ou duas histórias interessantes, sentia que lhe estava a escapar algo, a essência da cidade, que lhe tocara por breves instantes e lhe fugira das mãos como areia fina da praia.
As horas foram passando e viu algumas vezes o patrão assomar-se à porta na procura dela. Nada. Pelo meio dia decidiu regressar a casa e bater-lhe à porta. Toda a semana tentara apanha-la na saída de casa nem que fosse para olhar para ela, mas nem todo o tempo estivera em casa e achava-se em desencontro. Tocou na campainha e voltou a tocar e nada. Esperou mais um pouco e insistiu uma última vez. Do andar debaixo viu então a janela abrir-se. Uma senhora de meia idade apareceu com um ar pouco amistosa. "Ela não está, a senhoria comentou na quarta feira que a rapariga tinha pago até ao fim do mês mas que apanhara um comboio e não sabia se voltava, disse-lhe que se não voltasse no último dia do mês que lhe metesse tudo no lixo, é mesmo louca...mas isso não é novidade".
Ela partira. Ele subiu as escadas com o peso de um corpo desalentado. Arrastou-se até à cama. Não mudara os lençóis para que o cheiro dela não desaparecesse mas na verdade já só sentia o azedo do seu próprio suor. Agarrou-se à almofada e em sufoco voltou a chorar. No final do mês...ainda faltavam duas semanas e depois ele iria partir nessa altura. Não podia ficar muito mais tempo, era preciso entregar o trabalho e talvez ela nem voltasse.
A ideia de não voltar a vê-la começou a ruminar-lhe o pensamento de dia para dia. Sentia-se vazio, do seu olhar nenhuma poesia se projetava, que ideia de um lugar assim iria divulgar? Esta viagem estava a ser um fiasco emocional e profissional. E estava a pensar nisso no claustro de um velho mosteiro para os lados do castelo quando olhando para o tecto reparou num fresco. Era uma mulher de longos cabelos floridos que trazia nos seus braços um homem que parecia embriagado pelo seu olhar. Ao lado lia-se numa placa de bronze "Que Vénus com prazeres inflamava, Milhor é exprimentá-lo que julgá-lo; Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo. Os Lusíadas (Canto IX, 83). E uma voz aproximou-se de si "São Ninfas".
Era ela.
Ele estendeu-lhe a mão "A menina dança?" e ela deu-lhe aquele sorriso maroto olhando em volta, não estava mais ninguém. E imaginando que um Tango se escutava, deslizaram enlaçados e desenlaçados até á janela da sala. Olhando lá para fora o sol caía desmaiando na margem do rio. Ele abraçou-a envolvendo-lhe as costas como se fosse um xaile e disse-lhe ao ouvido "Não desfaças a mala, tu vens comigo no final da semana". Ela virou-se e com um olhar profundo e triste ia dizer "Eu..." e nesse momento aparece um homem na sala "Elisa, estou a procurar-te há horas...estavas aqui?" Ela afastou-se dele e aproximou-se do outro, ele olhando para o chão de mármore dura e fria passou por eles como se não estivessem lá e murmurou "Elisa..."
A viagem estava terminada. Não havia mais nada a fazer daquele lugar senão esquecê-lo. Ligou para a companhia aérea procurando antecipar o voo para o dia seguinte, queria partir o mais depressa possível. Nascera ali alguém que podia ter sido diferente mas que não foi. Ele. Não pertencia ali, nunca pertencera e não queria que estas memórias, por mais curtas que tivessem sido, lhe criassem raízes num lugar estéril. Partir, era tudo o que desejava agora. Em casa, arrumou a mala e sem jantar deixou-se sobre a cama procurando no tecto a imagem da Ninfa. Fora uma desilusão mas em parte, a culpa do seguimento da história havia sido sua, a outra parte, quem sabe do universo, da natureza, de Deus. "Elisa..." O nome dela afinal era esse, por estranho que parecesse não tinham trocado os nomes, como se não fosse preciso dar um nome a um corpo e um coração que batem juntos naturalmente. E aliás haviam sido as palavras que os denunciaram como frágeis. Dançar. Não teria sido preciso mais nada para se entenderem e as malditas das palavras haviam criado abismos nos seus pés e por eles havia caído um sonho. Olhou para a sua mala, uma vez mais pronta para partir, levando não mais do que trouxera, apenas..."Que curioso...", do fecho da mala ainda por correr saía a ponta de um vinil que comprara na feira em segunda mão..."Para Elisa...Beethoven". E com o passar das horas acabou na exaustão do pensamento por adormecer.
Sorrateira, pé ante pé, despindo-se passo a passo ela procura a cama. E aqueles pés descalços num corpo vestido em respiração profunda. Nua, deita-se por cima dele, procurando-lhe a boca. "Elisa..." ele acorda e ela corta-lhe as palavras deixando-lhe apenas no ouvido..."Voltaste a deixar a porta aberta, vim despedir-me de ti". Assim, como se fosse o eco de um momento.
Na manhã seguinte quando acordou estava só na cama. Não sabia bem se sonhara com ela mas quando se virou para a mesa de cabeceira havia uma carta "Para Ti". Olhou para o relógio, tinha meia hora para apanhar o avião. Nas palavras dela "despedir-me" não havia volta e nesse sentido apressou-se para partir. Estava muito atrasado e nos momentos seguintes a correria não lhe dera tempo de abrir a carta. Já sentado no avião aguardando levantar procura então a carta no bolso do casaco com o coração apertado.
"Gostava de ter sabido o teu nome para poder começar esta carta mas creio que não importa mais. As coisas correram de uma forma que eu não pedi, ou talvez tivesse pedido e não soube ter. Quando parti, regressei à minha aldeia, sentia-me perdida e muito triste com a situação. Não sabia o que pensar de ti e procurei não pensar nada. Podíamos ter sido tudo. E acabamos por ser apenas, um tango à janela. Quente e triste. Tudo o que queria era partir contigo mas quando regressei a casa percebi que havia alguém à minha espera lá, desde criança. O meu primeiro amor. Como o universo conspira de uma forma perversa não sei, mas sei que se me pudesse dividir em duas, uma partia contigo e outra ficava com ele. Não posso nem sei neste momento o que sinto mais. Creio que possa dizer que esta é a tua primeira partida com saudade, na verdade, é a minha segunda. Deduzo então que harmoniosamente muito em breve encontrarás a tua segunda, seria lógico. Mas nada tem lógica pois não? Quem sabe se eu serei a tua segunda, ou em vez de partida, novo encontro. Nada sei, apenas que metade de mim fica em pedaços. Desculpa tudo ter sido como foi. Elisa."
Amarrotou a carta como se conseguisse abafar o que sentia. "Metade dela..." e foi nesse momento que um alvoroço de gritaria tomou a tripulação do avião. "Ameaça de bomba...socorro...deixem-nos sair..." as pessoas atropelavam-se na porta querendo todas sair. Não se percebia nada e as hospedeiras no pânico tentavam acalmar as pessoas que a custo lá foram saindo. Fora do avião a atrapalhação era ainda maior, as pessoas queriam informações do que se passava mas parecia que ninguém sabia ao certo. Foi quando escutou novamente a voz "É o coração que vai explodir", era ela.
"Mas...foste tu?" ela corou. "És completamente doida, mas parece que não é mais novidade para mim" e sorriu-lhe abraçando-a com força. Quando se separou dos seus braços ela disse-lhe "Lamento que tenhas lido a carta, arrependi-me...há um avião que parte para Buenos Aires em meia hora, que dizes de o apanharmos? Sempre sonhei em lá ir". Ele olhou-a nos olhos e achando-a mais bonita do que nunca deu-lhe a mão "A menina dança?".
Meio dia. O avião partiu e com ele levantando voo um sonho.
São nove horas da noite.
Ela abre a janela do 4º andar. Pelas portadas vidradas entram agora os primeiros gestos da noite. Ajeita a planta no canto debruçada na varanda. Na rua estreita caminhando as pessoas conversam animadamente palavras de outros continentes. Descalça o fresco traz-lhe um arrepio ao pescoço, passando a mão e levando os cabelos à nuca, deixa-se envolver pelas onduras da cidade. A vista em frente é uma outra janela que a pouco mais de um braço se encontra ainda fechada. Há dois meses que vive nesta casa, uma mudança que ainda lhe deixa alguma estranheza sobretudo pelo aperto das ruas do bairro. Virando o rosto, o rio lá em baixo espelhando a lua redonda e amarela. Doce e solitária, compondo o céu de véus desnudos. Volta para dentro, deixando a janela na brisa.
Ele encontra a rua, na porta do prédio espera-o uma senhora rechonchuda sisuda. Sobem então e ela mostra-lhe a casa. "É um prédio antigo, não temos elevador e as escadas são estreitas, não têm luz, estamos a tratar disso, tenha cuidado. Então veio de viagem não é verdade? Vai ficar por cá muito tempo? O mínimo que alugo são três semanas, recorda-se disso? A casa está mobilada e aqui da sala, tem a melhor vista, venha ver o rio...". Ao abrir a janela, o olhar dele entra dentro da casa dela. Uma cortina leve branca deixando espreitar uma outra sala gémea desta. E a senhora volta-o para dentro "Então vem a trabalho ou vem passear?", "Venho a trabalho, sou jornalista. Trabalho para uma revista de viagens, sou português mas vivo em Londres desde criança e finalmente agora posso regressar por algum tempo". A senhora entregou-lhe as chaves despedindo-se "Tem aqui muito com que se entreter". A porta fecha-se e ele pode enfim despir-se e tomar um banho. A primeira noite nalgum lugar é sempre a mais difícil, por mais tempo que passe viajando, a solidão bate sempre nesse lugar ao chegar. Todas as divisões da casa eram pequenas e isso dava-lhe uma sensação de aconchego. Volta à janela para fumar um cigarro. São nove e meia da noite.
Na cozinha ela prepara o jantar. Nada de muito complexo, hoje é sexta feira e é noite de encontrar os amigos pelos bares apinhados do bairro. Enquanto a massa coze na panela ao lume, vai ao quarto e procura pelo vestido preto. "Está lá fora ainda na corda" pensa. "Não teve tempo de secar, é melhor escolher outra coisa". E dando volta ao armário, escolhe uma saia e uma blusa para combinar com os sapatos.
Ele tem fome. Vai até ao quarto e ainda com a mala meia aberta, espalha as roupas pela cadeira, "Depois arrumo isto". Vestiu umas calças e uma camisa, calçou-se e procurou pela carteira e as chaves. Iria procurar por um lugar simpático para jantar por aí. Fechou a janela e saiu, descendo as escadas encaracoladas e sombrias. Cá fora, espreitou debaixo a janela lá em cima do prédio da frente. A cortina continuava dançando tímida no mistério que a revelava isolada de tudo o resto. Não sabia se havia de subir a colina para o castelo, se descer ao rio. Na indecisão, e não querendo perder-se logo na primeira noite, procurou pelas ruas paralelas à sua por um restaurante. Amanhã teria tempo de olhar o mapa e os guias turísticos que trouxera para explorar a cidade, uma cidade que apesar de sua era totalmente desconhecida. As memórias que lhe espreitam são filigranas de um tempo de criança pequena, um tempo em que os pais pobres emigraram no sonho de uma vida melhor. De português sente a saudade de um nem saber de quê.
Passou por dois restaurantes onde não havia lugar e numa esquina mais recatada, um tasco mais singelo serviu-lhe sardinhas e salada de batatas e pimentos assados. Recordou-se do sermão aos peixes. As sardinhas "Tomai o exemplo das irmãs sardinhas...Porque cuidais que as multiplica o Criador em número tão inumerável? Porque são o sustento dos pobres". Mas hoje sentia-se rei porque numa boa mesa portuguesa estava um português de gema. Esta viagem há muito que a aguardava, que aqui havia de encontrar um elo, uma parte do seu código genético que permanecia na escuridão. Ao jantar bebeu um pouco de vinho e depois perguntou ao senhor do tasco se havia algum miradouro perto. Com expressões recatadas e viravoltas atrapalhadas o homem conseguiu orienta-lo.
O alarido nas ruas aumentara, parecia que a cidade estava em festa, copos, música, bares abertos e eléctricos passando.
São dez e meia. Ainda ajeitando atrasada o cabelo vermelho endiabrado, ela passa pelo miradouro para descer até ao rio. Sem tempo de grandes deslumbres apressa o passo que nos saltos dos sapatos é um tango numa linha de trapézio, arriscado. Já estariam à sua espera. Hoje havia concerto e os primeiros guardavam mesa para os últimos. Nesta altura do ano parecia que a cidade não era sua, como se viajasse para outro lugar sem sair do mesmo, porque menos estão os que lhe pertencem, a cidade toma múltiplas identidades confundindo-se com todos os lugares e nenhum. Odiava esta altura de facto. Odiava falsamente estar e não estar. Não tinha paciência para a euforia planeada das férias dos outros, e nunca tinha dinheiro para sair ela mesma daqui. As muralhas do castelo eram um calvário a que aprendera a amar, como cativa de um rapto a que se acomodara.
Ainda acusando o cansaço da viagem e da correria da entrega do último trabalho, ele despede-se da vista prometendo voltar de dia para outros espectros de vida. Lentamente e absorvendo cada encontro, regressa a casa. Adormeceu sem qualquer esforço sobre a cama vestido mas descalço.
São quatro da manhã. De sapatos na mão cambaleante ela empurra a porta do prédio procurando a luz das escadas. "Não funciona? Porcaria de casas velhas!", subindo quase de joelhos ao 4º andar entorna-se à porta de casa que quase sem resistência se abre, espanta-se "Então mas eu não fechei a porta de casa? Será que me assaltaram a casa?". Sem acender as luzes e destemida pelo álcool que trazia no corpo procura escutar por ruídos de dentro de casa. Escuta então uma respiração profunda e arrastada do quarto. E gatinhando até à cama encontra dois pés descalços dormindo. Toca-lhes e constatando a sua realidade, solta um grito. Ele acorda ofegante e assustado. E procura pela luz do candeeiro na mesinha de cabeceira. Diante de si uma rapariga atónica, de joelhos como um gato assanhado à sua beira. Abre bem os olhos e tocando no seu peito percebe que está de facto acordado.
Com a luz acesa, ela percebe então que não está na sua casa. Corada levanta-se "Peço desculpa, parece que me enganei de casa...". E dando meia volta corre para a porta descendo as escadas quase em escorrega. Cá em baixo olha para o seu prédio e envergonhada entra por ele a dentro como se fosse o buraco mais desejado do mundo.
Ele ficou sentado na cama pensativo. "Como fui esquecer-me de trancar a minha porta?" e voltando a deitar-se ficou ainda algum tempo a recordar os traços do rosto que tão abruptamente o acordara. Acabou por voltar a adormecer.
II
O dia amanheceu cinzento nos beiços das gaivotas e das velhas que afinando a voz se preparavam para mais um dia de feira ao largo da igreja. Ela e ele acordam. Ainda perdido nos acontecimentos da noite anterior, ele deixa-se ficar um pouco na cama pensando nela. Ainda dorida a cabeça da noite anterior, ela levanta-se quase de olhos fechados procurando por água e um comprimido. Senta-se no sofá da sala, olhando a janela fechada, pensando nele do outro lado. Estaria ele acordado? Estaria ela acordada?
Ele levanta-se e vai até à cozinha. A única coisa que a sua mala de viagem não dispensa é café solúvel para a primeira manhã. Seria prático. Era preciso descobrir uma mercearia, não tinha mais nada em casa para comer. Aqueceu a água, fez o café e sentando-se no sofá da sala olhou para a janela. Estaria aberta a dela? Levantou-se e aproximou a cabeça, afastando a cortina apenas um dos seus olhos podia ver e ser visto. Estava fechada. Voltou ao sofá para terminar o café e procurar orientação no mapa, planeando assim o seu dia. Uma sensação de curiosidade doce tomou-lhe novamente o pensamento. Quem seria ela? Achara-a francamente bonita e selvagem. Aqueles cabelos vermelhos. Labaredas faiscando um rosto pálido e assustado. Riu-se da situação e desejou encontra-la novamente, ardentemente depressa. Passou-lhe pela cabeça ir bater-lhe à porta, mas a situação havia sido constrangedora e podia ser mal recebido. Afastou a ideia dos seus pensamentos. Muito tempo em viagem sempre sozinho deixava-o assim, carente de aventuras, as quais a maior parte das vezes só decorriam mesmo no seu imaginário, quer por inércia de concretização quer por partidas e chegadas sucessivas, quebrando o elo de histórias entardecidas de dias sem história. Havia qualquer coisa no rosto dela que lhe remetia à sua infância. O desenho do queixo talvez. Alguém que conhecera em criança mas cuja recordação não lhe deixava senão uma quebreira de primeiro beijo. Alguém...
De volta ao quarto ela procura pelo telefone com a ideia de ver as horas. "Meu Deus, são onze horas! Já devia estar na mercearia desde cedo...Sábados! É sempre a mesma coisa...". Vestiu umas calças de ganga e uma blusa, calçou as sandálias e a correr desceu as escadas. Pelo caminho voando-lhe os pés o mais depressa que podiam, passou-lhe a sua vida pela cabeça. Três empregos...não seria demais? Não tinha tempo nem para ir à praia, estava pálida que nem uma parede de cal. Como podia ter uma relação com alguém se a sua vida era organizada por horas daqui para acolá? E sempre emparedada nestas ruas estreitas, cujo horizonte não passava de um mesmo rio, que por mais belo que fosse já enjoara a vista, de ser sempre ele mesmo. Nada acontecia de novo. Nada, com a excepção da noite anterior. Quem seria ele? Donde viera? Achara-o deliciosamente tentador. E aqueles pés...E aqueles olhos verdes...Entrando pela mercearia, dando de frente com os olhos furiosos do patrão, o encanto deu lugar a um ataque de raiva "Já sei...que quer que faça? Não tenho direito nem a dormir mais duas horas ao sábado, vida cruel! Que quer que lhe diga? Não posso ter outra...desculpe, para variar...". O patrão ia repostar em fúria escalando mas subitamente enterneceu-se com ela, "Miúda, eu sei que tens muitas dificuldades, que és jovem e gostas de te divertir mas se assumiste este compromisso...devias tentar...eu preciso mesmo da tua ajuda aos sábados...é o dia de mais movimento." Ela surpreendeu-se. Não estava habituada a atitudes paternais. Desde muito jovem que estava entregue a si mesma. Uma infância feliz mas curta. Para trás ficara uma aldeia e uma história de despedida em tristeza. Não queria pensar agora nisso "Tem razão..mãos ao trabalho. Vou para a caixa."
Meio dia. Depois de infindáveis esquinas labirínticas e já sem esperança, ele encontra finalmente a mercearia. Por uma porta de madeira escancarada, fazendo soar a campainha dos visitantes, dá sinal da sua entrada no pequeno espaço apinhado de prateleiras e mais corredores labirínticos. Da caixa, acabando de atender um casal de chineses ela olha para o espelho redondo no tecto, "Não param o raio dos clientes...mas...não pode ser, é ele, aqui?". Corada, deixa a caixa e procura pelo corredor onde ele circula. Não querendo ser vista, deixa-se observá-lo do fundo. Perdido nas conservas, parado com uma lata de sardinhas na mão. "Que fazes aí miúda? Tens clientes na caixa...hoje vens mesmo virada...". O alvoroço provocado pela repreensão do patrão fá-lo virar a cabeça na direcção deles. "É ela...", sorrindo aproxima-se. Mas ela fingindo não o conhecer, volta para a caixa fechando o olhar nas notas da gaveta, dedicando-se ao grupo de ingleses que já aquelas horas manifestavam uma euforia de pouca água. Atrás deles e esperando por um momento a sós com ela, ele aguarda nervoso, pensando no que lhe dizer.
Quando finalmente chega a vez dele, olha-a nos olhos e diz "Olá". Ela fica parada a olhar para ele sem reacção. E ele continua, "Eu...gostava de convidar-te para jantar". Não sabendo donde lhe vieram aquelas palavras, estendeu a lata de sardinhas na direcção do olhar dela. Ela não aguentou, explodiu de riso, "E é isso que vais oferecer-me para jantar? Estou tentada!". O riso dela descontraiu-o, "Ah, bem talvez fosse mais interessante seres tu a escolher um restaurante giro, não conheço nada daqui, cheguei ontem". A simplicidade dele encantou-a mais ainda. "Saio às oito" e sorriu-lhe com marotice covando-lhe apenas esse lado do rosto. "Boa, espero por ti em casa e vamos". E saiu extasiado, sem olhar para trás. Lá dentro o sorriso dela não se desfazia. Coçou a cabeça, passando a mão pela boca como se o quisesse esconder.
Ao longo do dia várias foram as repreensões do patrão dando graças a Deus quando chegou a altura dela ir para casa "Vê se descansas miúda, hoje estavas com a cabeça virada ao contrário...". Todo o dia ele não lhe saíra do pensamento. Estava nervosa com a situação, falta de prática nestas coisas, não sabia nem o que vestir. Chegando a casa, acendendo a luz da sala, ele sentiu a presença na janela dela, espreitando-a. Ela passou do quarto para a sala em cuecas e voltou a passar uma vez com algo que parecia uma saia rodada e outra com uma outra mais comprida. Tudo silhuetas que ele conseguiu perceber da janela dele, e este espreitar sem ver, abria-lhe ainda mais o apetite. Estava pronto há uma hora, todo o dia vagueara pela cidade com ela no pensamento. Como se a cidade tivesse agora os contornos de um só rosto e tudo fosse música aos seus ouvidos, uma música sensual e quente de encontro, mistério e corpo.
Oito e meia. A janela dela abre-se. Percebendo, instantaneamente ele abre a dele. Frente a frente, o 4º andar que os separa num abismo tentador é a ponte dos seus olhares. "Como és bonita!", ela voltou a dar-lhe aquele sorriso, sentindo envolver-se no verde profundo e calmo dos olhos dele, "Vamos?" e fechando-se as janelas, desceram as escadas e encontraram-se à porta.
Quando começaram a caminhar lado a lado, ela percebeu que ele era bem mais alto que ela e ele percebeu que ela era ainda mais bela, por ser delicada e pequena. Alguns metros à frente quando teria de escolher se iam para a esquerda ou para a direita, ela parou perdida. "Pensaste nalgum lugar?" e nas palavras dele ela viu então que ao longo do devaneio do dia se esquecera de pensar num restaurante. Rapidamente procurou visualizar na sua cabeça mas a presença dele atrapalhava-lhe o pensamento. Então ele sugeriu "Estava a ler num roteiro turístico que há um restaurante perto do castelo muito bonito, com a vista mais bela da cidade, queres ir a esse?", pela descrição pareceu-lhe um lugar que conhecia de nome mas por ser caro nunca lá fora. Como a viu de volta das mãos preocupada ele tranquilizou-a, "Não te preocupes é a revista que paga e além disso faz parte do meu trabalho recolher histórias e vivências contadas na primeira pessoa". "Bem sendo assim, será um prazer acompanhar-te".
Ela ficou deliciada com a ideia de jantar num lugar como aquele e sentiu-se aconchegada por ele ter adivinhado a preocupação dela, revelava sensibilidade nele e isso agradava-lhe e muito. A caminhada até ao castelo ainda era longa e ela foi-lhe mostrando pormenores da cidade aqui e ali. "Sabes que eu nasci nesta cidade...mas parti muito pequeno", "Sabes que eu cheguei aqui muito nova, mas nasci numa aldeia" e assim foram preenchendo algumas lacunas da estranheza que os envolvia, sem no entanto quebrar o desejo de conhecer algo que não se traduzia por palavras entre eles.
O restaurante era um lugar de sonho. Toalhas de linho imaculadamente branco, três copos de cristal, empregados fardados a rigor e uma vista daquelas de fotografia de catálogo de luxo. Ela não teria imaginado tanto, que a cidade conseguia ainda surpreende-la. "Aposto que nas tuas viagens estás sempre a conhecer lugares como este e raparigas como eu?, aquelas palavras souberam-lhe a veneno na própria língua. Ele demorou algum tempo a responder e acabou por calmamente lhe dizer "Deus está na poesia entre os homens e são poemas como tu que nos fazem querer ser os olhos desta cidade. Como nenhuma outra". Ela encolheu-se envergonhada, "Vejo que também gostas de dizer coisas bonitas", "Sim, tenho muito tempo livre nas minhas viagens para que o pensamento se perca nas palavras bonitas e ás vezes guardo-o num caderno, talvez um dia possa publica-lo, não sei...mas respondendo à tua questão...lugares bonitos sim, pessoas bonitas nem por isso, estou só há muito tempo". Ficou mais tranquila. "E tu? Tens alguém?", neste tipo de questões era justo que o outro também fosse tranquilizado, "Não, trabalho demais, nem tenho tempo para encontrar alguém". E com esta informação puderam seguir para outros voos sem preocupações minantes. "Talvez me possas mostrar esse caderno mais tarde" e voltou àquele sorriso maroto. "Mais tarde terei todo o gosto".
III
Na rua lado a lado das portas, os dois estavam agora calados. No desconforto da demora do dizer alguma coisa, ele perguntou então "Queres subir para veres o tal caderno?", ela sabendo que o convite era outro coçou a cabeça e voltou a mão à boca. Vendo-a indecisa ou provocando-lhe insegurança ele aproxima-se do pescoço dela "Vem", arrepiando-a. Dando-lhe a mão entraram no prédio dele. No escuro, a proximidade dos corpos passo a passo numa escada inclinada e apertada, o calor dava a ideia de estarem no pico do Verão debaixo da torreira do sol. Sem acender as luzes de casa ele levou-a para a sala passando pela janela, abrindo-a. O fresco do luar trouxe-lhe das profundezas do corpo a sensualidade de outro à vontade. Por detrás, no parapeito aproximou as mãos da anca dela, descendo pelas pernas, subindo a saia. Alguém que passasse na rua olhando para cima podia vê-los e isso era a pimenta no chocolate que fervia. Quando as mãos dele alcançaram o meio das pernas dela, ela deteve-o com a mão "Não". Então ele levou a boca ao pescoço dela e começando por detrás da orelha beijou-a agarrando-a para si. Voltou a vira-la de costas e desta vez com mais convicção despiu-lhe a saia e começou a desapertar-lhe a blusa procurando pelos seios. Eram duros e redondos, pousou-lhe os dedos nos lábios e com a outra mão voltou ao meio das pernas. "Deixa que os nossos corpos se entendam, estão coisas a mais aqui que não lhes pertencem". E pegando-a ao colo levou-a para a cama, terminando de a despir. Nua sobre a cama o escasso luar que chagava da janela da sala e ele a despir-se. "Como era belo" pensou. Sentiu-o nos seus braços, os corpos encaixando-se, depressa e devagar, no ritmo de uma dança de paixão que chegava a doer de tão penetrante.
Depois, deixando-se abraçados ficaram em silêncio.
Ela desceu deixando a cabeça no peito dele e ele acariciando-lhe o cabelo.
"Como é estar sempre de um lado para o outro? Sentes falta de algo ou alguém?". Ele respirou fundo. "Acho que não chegas a sentir falta daquilo que nunca chegaste a ter...", "Queres dizer saudade?" pergunta-lhe baixinho, "Saudade...essa palavra tão portuguesa...talvez seja isso sim, talvez eu tenha começado a viajar por não ter saudade de ninguém...". Ela ficou calada. "E tu? Já soubeste o que é ter saudade de alguém assim?"...não sabe de onde lhe chegou uma lágrima no canto do olho que chegou ao centro do peito dele. Ele tocou-lhe no rosto trazendo-a ao seu olhar "Que se passa? Ficaste triste? Não queria aborrecer-te com esta questão".
Ela sentou-se na cama. "Acho que acabo de sentir saudade, já...de ti. Desculpa nem entendo de onde isto vem, acabamos de nos conhecer. Talvez esteja com medo..." Ele sentou-se também, ligou a luz do candeeiro e acendeu um cigarro. E a expressão dele mudou, rígida e distante. E disse finalmente como se lhe estivesse a sufocar "Era um risco que sabias estar a correr". Estas palavras bateram-lhe como uma pedra no charco e numa onda de ódio e mágoa, ela levantou-se agarrou nas roupas e saiu, vestindo-se como pode pelas escadas abaixo. Entrou em casa e deixou-se cair de joelhos atrás da porta, chorando.
IV
Nos tempos que se seguiram, os dias tomaram uma cor triste. De cada vez que ele abria a janela tinha esperança de que ela estivesse lá, mas a janela estava fechada, de cada vez que saía de casa tinha esperança de se cruzar com ela, mas as ruas estavam desertas, e ansiava chegar sábado para voltar à mercearia onde esperava encontra-la. E sábado chegou.
Ele acordou cedo, tomou o café e pela rua seguiu procurando acertar no labirinto da memória. O patrão estava a abrir a loja. "Bom dia, sabe se a rapariga que trabalha aqui aos sábados hoje vem?", o patrão olhou para ele e paciente repenicou "Olá meu rapaz, isso gostava eu de saber, ela vir vem sempre nunca se sabe bem é a que horas, só me dá dores de cabeça aquela". Em frente à mercearia havia um pequeno café com duas mesas à porta. Pensou em sentar-se e esperar por ali. Para se entreter trouxera o último guia que comprara na cidade, uma semana já lá ia e o trabalho estava lento. Tirara poucas fotografias e havia recolhido apenas uma ou duas histórias interessantes, sentia que lhe estava a escapar algo, a essência da cidade, que lhe tocara por breves instantes e lhe fugira das mãos como areia fina da praia.
As horas foram passando e viu algumas vezes o patrão assomar-se à porta na procura dela. Nada. Pelo meio dia decidiu regressar a casa e bater-lhe à porta. Toda a semana tentara apanha-la na saída de casa nem que fosse para olhar para ela, mas nem todo o tempo estivera em casa e achava-se em desencontro. Tocou na campainha e voltou a tocar e nada. Esperou mais um pouco e insistiu uma última vez. Do andar debaixo viu então a janela abrir-se. Uma senhora de meia idade apareceu com um ar pouco amistosa. "Ela não está, a senhoria comentou na quarta feira que a rapariga tinha pago até ao fim do mês mas que apanhara um comboio e não sabia se voltava, disse-lhe que se não voltasse no último dia do mês que lhe metesse tudo no lixo, é mesmo louca...mas isso não é novidade".
Ela partira. Ele subiu as escadas com o peso de um corpo desalentado. Arrastou-se até à cama. Não mudara os lençóis para que o cheiro dela não desaparecesse mas na verdade já só sentia o azedo do seu próprio suor. Agarrou-se à almofada e em sufoco voltou a chorar. No final do mês...ainda faltavam duas semanas e depois ele iria partir nessa altura. Não podia ficar muito mais tempo, era preciso entregar o trabalho e talvez ela nem voltasse.
A ideia de não voltar a vê-la começou a ruminar-lhe o pensamento de dia para dia. Sentia-se vazio, do seu olhar nenhuma poesia se projetava, que ideia de um lugar assim iria divulgar? Esta viagem estava a ser um fiasco emocional e profissional. E estava a pensar nisso no claustro de um velho mosteiro para os lados do castelo quando olhando para o tecto reparou num fresco. Era uma mulher de longos cabelos floridos que trazia nos seus braços um homem que parecia embriagado pelo seu olhar. Ao lado lia-se numa placa de bronze "Que Vénus com prazeres inflamava, Milhor é exprimentá-lo que julgá-lo; Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo. Os Lusíadas (Canto IX, 83). E uma voz aproximou-se de si "São Ninfas".
Era ela.
V
A viagem estava terminada. Não havia mais nada a fazer daquele lugar senão esquecê-lo. Ligou para a companhia aérea procurando antecipar o voo para o dia seguinte, queria partir o mais depressa possível. Nascera ali alguém que podia ter sido diferente mas que não foi. Ele. Não pertencia ali, nunca pertencera e não queria que estas memórias, por mais curtas que tivessem sido, lhe criassem raízes num lugar estéril. Partir, era tudo o que desejava agora. Em casa, arrumou a mala e sem jantar deixou-se sobre a cama procurando no tecto a imagem da Ninfa. Fora uma desilusão mas em parte, a culpa do seguimento da história havia sido sua, a outra parte, quem sabe do universo, da natureza, de Deus. "Elisa..." O nome dela afinal era esse, por estranho que parecesse não tinham trocado os nomes, como se não fosse preciso dar um nome a um corpo e um coração que batem juntos naturalmente. E aliás haviam sido as palavras que os denunciaram como frágeis. Dançar. Não teria sido preciso mais nada para se entenderem e as malditas das palavras haviam criado abismos nos seus pés e por eles havia caído um sonho. Olhou para a sua mala, uma vez mais pronta para partir, levando não mais do que trouxera, apenas..."Que curioso...", do fecho da mala ainda por correr saía a ponta de um vinil que comprara na feira em segunda mão..."Para Elisa...Beethoven". E com o passar das horas acabou na exaustão do pensamento por adormecer.
Sorrateira, pé ante pé, despindo-se passo a passo ela procura a cama. E aqueles pés descalços num corpo vestido em respiração profunda. Nua, deita-se por cima dele, procurando-lhe a boca. "Elisa..." ele acorda e ela corta-lhe as palavras deixando-lhe apenas no ouvido..."Voltaste a deixar a porta aberta, vim despedir-me de ti". Assim, como se fosse o eco de um momento.
Na manhã seguinte quando acordou estava só na cama. Não sabia bem se sonhara com ela mas quando se virou para a mesa de cabeceira havia uma carta "Para Ti". Olhou para o relógio, tinha meia hora para apanhar o avião. Nas palavras dela "despedir-me" não havia volta e nesse sentido apressou-se para partir. Estava muito atrasado e nos momentos seguintes a correria não lhe dera tempo de abrir a carta. Já sentado no avião aguardando levantar procura então a carta no bolso do casaco com o coração apertado.
"Gostava de ter sabido o teu nome para poder começar esta carta mas creio que não importa mais. As coisas correram de uma forma que eu não pedi, ou talvez tivesse pedido e não soube ter. Quando parti, regressei à minha aldeia, sentia-me perdida e muito triste com a situação. Não sabia o que pensar de ti e procurei não pensar nada. Podíamos ter sido tudo. E acabamos por ser apenas, um tango à janela. Quente e triste. Tudo o que queria era partir contigo mas quando regressei a casa percebi que havia alguém à minha espera lá, desde criança. O meu primeiro amor. Como o universo conspira de uma forma perversa não sei, mas sei que se me pudesse dividir em duas, uma partia contigo e outra ficava com ele. Não posso nem sei neste momento o que sinto mais. Creio que possa dizer que esta é a tua primeira partida com saudade, na verdade, é a minha segunda. Deduzo então que harmoniosamente muito em breve encontrarás a tua segunda, seria lógico. Mas nada tem lógica pois não? Quem sabe se eu serei a tua segunda, ou em vez de partida, novo encontro. Nada sei, apenas que metade de mim fica em pedaços. Desculpa tudo ter sido como foi. Elisa."
Amarrotou a carta como se conseguisse abafar o que sentia. "Metade dela..." e foi nesse momento que um alvoroço de gritaria tomou a tripulação do avião. "Ameaça de bomba...socorro...deixem-nos sair..." as pessoas atropelavam-se na porta querendo todas sair. Não se percebia nada e as hospedeiras no pânico tentavam acalmar as pessoas que a custo lá foram saindo. Fora do avião a atrapalhação era ainda maior, as pessoas queriam informações do que se passava mas parecia que ninguém sabia ao certo. Foi quando escutou novamente a voz "É o coração que vai explodir", era ela.
"Mas...foste tu?" ela corou. "És completamente doida, mas parece que não é mais novidade para mim" e sorriu-lhe abraçando-a com força. Quando se separou dos seus braços ela disse-lhe "Lamento que tenhas lido a carta, arrependi-me...há um avião que parte para Buenos Aires em meia hora, que dizes de o apanharmos? Sempre sonhei em lá ir". Ele olhou-a nos olhos e achando-a mais bonita do que nunca deu-lhe a mão "A menina dança?".
Meio dia. O avião partiu e com ele levantando voo um sonho.
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