I
Vivia no 2º andar de um prédio velho da cidade e de companhia tinha um gato europeu malhado de nome Isósceles. De estatura média, cabelo grisalho, barba aparada, óculos, 52 anos, sempre de fato escuro e sapatos engraxados. De peso ligeiramente acima do desejado e ao pescoço sempre um laço. Não havia dia do ano que não saísse de casa acompanhado do seu guarda chuva preto de cabo curvo em madeira e de abertura manual. Longe de ser uma dessas peças baratas automáticas inventadas pelos orientais de esquina, era um guarda chuva pesado, comprado numa loja na baixa há mais de trinta anos, onde só se vendiam e reparavam guarda chuvas. E porque o guarda chuva era também uma bengala, o corpo de Afonso adaptou-se a ele como se fosse uma terceira perna, sempre usado na mão direita, a perna direita passou a encostar-se a essa bengala e por isso, Afonso coxeava.
Como a descrição não deixa margem, um homem de rotinas absolutas e por isso, Afonso da Silva todos os dias se levantava impreterivelmente antes das oito, fazia o seu café, barrava uma única metade de carcaça torrada com manteiga sem sal e alimentava o seu gato. Depois disso, lavava-se, vestia-se e saía, passando pelo quiosque para comprar o jornal. Ás nove em ponto entrava ao serviço nos escritórios da alfândega, depois de apanhar o autocarro das 8,45. Passava pela sala do chefe, cumprimentava-o, regava a planta do corredor do seu piso e sentava-se na sua secretária às 9,15. Tinha um relógio de bolso cujo acerto confirmava várias vezes ao dia e ainda um lenço de pano azul claro no bolso oposto sempre pronto para se assoar, caso necessário. Na sua secretária estava um objecto que o acompanhava desde o primeiro dia de trabalho quando era ainda um garoto marialva de bairro e o pai o colocou ao corrente "acabou-se a escola meu rapaz, está na altura de contribuíres para esta família, os teus irmãos há muito que saíram de casa e todos os meses deixam aqui nesta caixa de correio a nossa pensão", o pai queria dizer, a renda para pagar as bebedeiras diárias da tasca e os lenços de papel para secar as lágrimas da mãe deste triste fado. Como Afonso da Silva já sabia escrever e tinha alguma queda para os números não tardou em encontrar trabalho neste mesmo escritório.
Mas a tara pela chuva vem desde muito tenra idade, era ainda bebé quando a mãe numa noite de tempestade o deixou em casa no berço enquanto os irmãos dormiam no quarto ao lado, para ir até à tasca saber do seu marido que até a altas horas da madrugada ainda não regressara a casa. Embrulhou-se no xaile e saiu. Afonso, que já gatinhava curioso, diz-se lá pelo bairro, tombou-se do berço e arrastou-se até à janela escancarada por desleixo da varanda da sala, ensimesmado com os clarões que vinham do céu tempestuoso. Diz-se que terá sido tomado nos braços de Santa Barbara Bendita e entregue a um raio e que desde esse dia, dias chuva e tempestade, lhe provocam um pânico que lhe embrulha toda a alma num sufoco. Não foi de estranhar que ao ir para a escola, além da sacola dos livros e da merenda levasse sempre consigo um guarda-chuva, nesse tempo, outro de dimensão mais reduzida e mais leve.
É claro que os outros garotos o tomaram como motivo de chacota muito cedo e é claro também que Afonso da Silva se tornou numa criança estranha para os demais, estranha de poucas falas e absorvido numa extracção de pensamento permanente, "com a cabeça nas nuvens, não sei como aprende, mas lá vai aprendendo", dizia a professora.
O outro objecto adquiriu-o mais tarde. O tal objecto que tinha sobre a sua secretária: um higrómetro. Numa loja de antiguidades lá para os lados de S. Bento. Poderíamos dizer que Afonso já era velho antes de o ser. Assim que começou a trabalhar fardou-se de fato escuro e o escasso convívio social foi-lhe moldando no rosto um envelhecer precoce mas adequado ao seu pensamento. O contacto com mulheres foi esporádico e pago, não tinha esse hábito, fizera-o por curiosidade algumas vezes mas algo de inóspito o afastara do desejo ou da necessidade de o satisfazer. Era demasiado tímido para convidar alguma colega de trabalho para ir ao cinema e fazia-o por isso frequentemente sozinho. Gostava também de caminhar a pé pela cidade aos fins de semana e mais tarde passou a ler o jornal religiosamente ao domingo de manhã no café onde se juntavam outros seres impares. Travou amizade com alguns deles mas longe de lhe preencher o vazio dos dias do lento passar do tempo. Conversas de ocasião, debates e às vezes até discussões filosóficas ou políticas. Afonso gostava de estar ao corrente da informação do mundo e lera já por esta altura grandes nomes da literatura. Em casa não faltavam livros que o ocupavam a maior parte do tempo.
O tal objecto onde diariamente podia medir a humidade da atmosfera era o seu fiel medidor da vinda indesejada de chuva. Tinha uma plataforma de madeira em forma de ondas, onde assentava um barco à vela e um homem vestido com uma capa que o cobria até à cabeça. Quando a humidade estava no ponto de sugerir chuva, a vestimenta do homem mudava de cor, tomava os tons de roxo.
Quando chovia Afonso da Silva recusava-se a ir trabalhar. Naquele tempo um emprego era para toda a vida e o patrão, um homem vivido e sereno, permitia-lhe compensar os dias de falta com fins de semana e férias não gozadas. Afonso vivia em função da chuva. Se por algum motivo começava a chover a meio do dia ou ao final do dia, dormia no escritório. Tinha na sala dos arquivos uma manta e uma almofada e acampava-se por lá até ser novo dia. Por alturas de um Inverno mais chuvoso, houve semanas em que permaneceu no escritório, sem ir a casa. Os colegas já não aguentavam a ausência de banho mas compadeciam-se trazendo-lhe comida de fora e algumas mudas de camisa e roupa interior. Com o tempo, o gozo foi dando lugar a uma familiaridade de pena. Afonso era assim, não havia nada a fazer. Se por acaso acordava em casa e o dia estava chuvoso, trancava as janelas, corria as persianas, desligava todos os aparelhos eléctricos e encerrava-se na cama a ler à luz de vela. Era um funcionário exemplar retirando a excentricidade, não tirou em trinta anos de ofício, um dia real de férias, não tinha para onde ir e não queria arriscar-se a encontrar-se desprevenido e desamparado noutro lugar qualquer.
II
Estavamos no final de uma tarde solarenga de Junho. Afonso da Silva olhou para o tampo da sua secretária meticulosamente arrumada. Estava pronto para regressar a casa. Ajeitou a camisa dentro das calças, vestiu o casaco e compôs o laço. Encostado à secretária estava o seu fiel guarda chuva, pegou nele e dirigiu-se para a rua. Afonso gostava de sol, não ao ponto de ir à praia, mas de dar passeios deambulando e apreciando o calor da tranquilidade por oposição à chuva. Vários eram os dias de Verão em que regressava a casa a pé, dias de confortável céu. E hoje era um deles.
Subindo a rua mais íngreme da cidade, tinha por necessidade parar a meio para descansar. Lá em cima avistava-se a entrada do jardim municipal frente à entrada de um pequeno centro comercial quase deserto nos dias de hoje. Passando esse largo, mais duas extensas avenidas de comércio, capelas e quiosques e chegaria ao seu destino. Nesta altura do ano, a cidade começava a dar sinais de calmaria, a partida de férias aliviava o trânsito e os recantos tornavam-se num belo roteiro turístico mesmo para aqueles que todo o ano a habitavam.
Parado no passeio, apoiado no seu guarda chuva Afonso observava os pombos que nos beirais dos telhados se encontravam parecendo velhos no banco da praça jogando cartas. Estava um dia quente e retirou do bolso o lenço para limpar a testa. Porque parado lhe permitia repousar as pernas, passou o guarda chuva para a outra mão, descansando a outra perna. Nesse momento, porque ainda estava ocupado em dobrar o lenço num quadrado cumprindo as dobras do ferro, ao mover o guarda chuva não reparou que enfiara a ponta de ferro numa sarjeta ferrugenta lateral ao passeio. Quando procurou devolvê-lo à mão pertencente, percebeu que estava preso.
O drama. Tentou primeiro com delicadeza desentala-lo e de insucesso, com mais força, agarrado ao cabo de madeira, tal espada de Artur, numa atrapalhação de nervos que despertara já a atenção de quem subia a rua. Nada. O maldito parecia que estava cimentado às entranhas do submundo. Afonso começou a gritar de desespero "Acudam, acudam! Não sou capaz sozinho". Mas as pessoas passando, perante o ridículo da situação, riam-se e seguiam. Deitou-se então no passeio, com a cabeça colada ao evento para tentar perceber de mais perto se havia algum ângulo de escape. E foi então, que incrédulo viu, saindo de um dos veios da sarjeta, surgir um homenzinho de dimensão não maior do que um dedo indicador, vestido com uma capa até aos pés que lhe cobria também a cabeça deixando apenas visível o rosto. Uma capa azul.
Afonso afastou-se pasmado e voltou a aproximar-se piscando os olhos para desfazer a visão. Ajeitou os óculos na ponta do nariz e voltou a ver o homenzinho. Lá estava ele, de braços cruzados, batendo o calcanhar como se estivesse impaciente, olhando indignado para Afonso. E falou "Não vais fazer nada? Vais ficar aí parado a olhar para mim?", não sabia o que fazer. Nada disto podia ser real, mas o homenzinho estava bem ali, diante dos seus olhos e falava porque aos seus ouvidos chegara a informação completa e clara. "Eu...não entendo...", "Como não entendes? Falei noutra língua por acaso?", tinha mau feitio aquela pequena criatura. "Não, quer dizer, eu entendi o que me disse, mas não entendo como posso estar a vê-lo...nada disto faz sentido...".
O homenzinho sentou-se na sarjeta como se viesse cansado de uma longa caminhada, cruzou as pernas com um ar solene e ao bolso da capa foi buscar um cachimbo, acendeu-o e começou a fumar. Depois voltou a falar. "Nós as criaturas da chuva, não nos deixamos ver a qualquer um...somos milenares entendes? Há muito tempo que nos escondemos dos humanos por receio...". "Criaturas da chuva...", Afonso estava absorto naquele cenário. Do lado de fora, era ainda mais catatónico. Quem passava, via um homem deitado no chão, um guarda chuva numa sarjeta e uma conversa em monólogo. Um homem de idade, piedoso, aproximou-se de Afonso "Precisa de ajuda amigo?", Afonso ajoelhou-se "Está a vê-lo?". O homem preocupado, olhando para a sarjeta comum "Se calhar é melhor chamar alguém para ajudá-lo, tem alguma dor?", Afonso retorquiu "Não, deixe-me em paz...". Nesse momento já outro senhor se juntara e observava o acontecimento, perguntando ao outro se era preciso ajuda. Não demorou para que várias pessoas circundassem Afonso e alguém chamar a assistência médica sem saber porquê mas não fosse o caso de ser uma emergência. E o homenzinho falou novamente "Eles não me conseguem ver...", Afonso não teve tempo de reagir porque lá em baixo na rua ouvia-se já ruidosa uma ambulância. Quando parou ao lado da multidão, dois homens fardados aproximaram-se de Afonso e depois de tentarem saber se estava bem, não obtendo resposta, pegaram nele para o transportarem. "Não", gritou esbracejando, "O meu guarda chuva...não o deixem ficar aí, não por favor...". Mas ninguém quis saber do assunto, foi amarrado a uma maca e levado para dentro da viatura que desapareceu novamente rua abaixo num frenezim desgraçado. Afonso teve apenas tempo de ver o homenzinho da capa abanar a cabeça para ele, como se estivesse a reprova-lo, com um sorriso desastroso.
Subindo a rua mais íngreme da cidade, tinha por necessidade parar a meio para descansar. Lá em cima avistava-se a entrada do jardim municipal frente à entrada de um pequeno centro comercial quase deserto nos dias de hoje. Passando esse largo, mais duas extensas avenidas de comércio, capelas e quiosques e chegaria ao seu destino. Nesta altura do ano, a cidade começava a dar sinais de calmaria, a partida de férias aliviava o trânsito e os recantos tornavam-se num belo roteiro turístico mesmo para aqueles que todo o ano a habitavam.
Parado no passeio, apoiado no seu guarda chuva Afonso observava os pombos que nos beirais dos telhados se encontravam parecendo velhos no banco da praça jogando cartas. Estava um dia quente e retirou do bolso o lenço para limpar a testa. Porque parado lhe permitia repousar as pernas, passou o guarda chuva para a outra mão, descansando a outra perna. Nesse momento, porque ainda estava ocupado em dobrar o lenço num quadrado cumprindo as dobras do ferro, ao mover o guarda chuva não reparou que enfiara a ponta de ferro numa sarjeta ferrugenta lateral ao passeio. Quando procurou devolvê-lo à mão pertencente, percebeu que estava preso.
O drama. Tentou primeiro com delicadeza desentala-lo e de insucesso, com mais força, agarrado ao cabo de madeira, tal espada de Artur, numa atrapalhação de nervos que despertara já a atenção de quem subia a rua. Nada. O maldito parecia que estava cimentado às entranhas do submundo. Afonso começou a gritar de desespero "Acudam, acudam! Não sou capaz sozinho". Mas as pessoas passando, perante o ridículo da situação, riam-se e seguiam. Deitou-se então no passeio, com a cabeça colada ao evento para tentar perceber de mais perto se havia algum ângulo de escape. E foi então, que incrédulo viu, saindo de um dos veios da sarjeta, surgir um homenzinho de dimensão não maior do que um dedo indicador, vestido com uma capa até aos pés que lhe cobria também a cabeça deixando apenas visível o rosto. Uma capa azul.
Afonso afastou-se pasmado e voltou a aproximar-se piscando os olhos para desfazer a visão. Ajeitou os óculos na ponta do nariz e voltou a ver o homenzinho. Lá estava ele, de braços cruzados, batendo o calcanhar como se estivesse impaciente, olhando indignado para Afonso. E falou "Não vais fazer nada? Vais ficar aí parado a olhar para mim?", não sabia o que fazer. Nada disto podia ser real, mas o homenzinho estava bem ali, diante dos seus olhos e falava porque aos seus ouvidos chegara a informação completa e clara. "Eu...não entendo...", "Como não entendes? Falei noutra língua por acaso?", tinha mau feitio aquela pequena criatura. "Não, quer dizer, eu entendi o que me disse, mas não entendo como posso estar a vê-lo...nada disto faz sentido...".
O homenzinho sentou-se na sarjeta como se viesse cansado de uma longa caminhada, cruzou as pernas com um ar solene e ao bolso da capa foi buscar um cachimbo, acendeu-o e começou a fumar. Depois voltou a falar. "Nós as criaturas da chuva, não nos deixamos ver a qualquer um...somos milenares entendes? Há muito tempo que nos escondemos dos humanos por receio...". "Criaturas da chuva...", Afonso estava absorto naquele cenário. Do lado de fora, era ainda mais catatónico. Quem passava, via um homem deitado no chão, um guarda chuva numa sarjeta e uma conversa em monólogo. Um homem de idade, piedoso, aproximou-se de Afonso "Precisa de ajuda amigo?", Afonso ajoelhou-se "Está a vê-lo?". O homem preocupado, olhando para a sarjeta comum "Se calhar é melhor chamar alguém para ajudá-lo, tem alguma dor?", Afonso retorquiu "Não, deixe-me em paz...". Nesse momento já outro senhor se juntara e observava o acontecimento, perguntando ao outro se era preciso ajuda. Não demorou para que várias pessoas circundassem Afonso e alguém chamar a assistência médica sem saber porquê mas não fosse o caso de ser uma emergência. E o homenzinho falou novamente "Eles não me conseguem ver...", Afonso não teve tempo de reagir porque lá em baixo na rua ouvia-se já ruidosa uma ambulância. Quando parou ao lado da multidão, dois homens fardados aproximaram-se de Afonso e depois de tentarem saber se estava bem, não obtendo resposta, pegaram nele para o transportarem. "Não", gritou esbracejando, "O meu guarda chuva...não o deixem ficar aí, não por favor...". Mas ninguém quis saber do assunto, foi amarrado a uma maca e levado para dentro da viatura que desapareceu novamente rua abaixo num frenezim desgraçado. Afonso teve apenas tempo de ver o homenzinho da capa abanar a cabeça para ele, como se estivesse a reprova-lo, com um sorriso desastroso.
III
Estava num quarto com mais dois companheiros. A sua cama era a da ponta da janela que dava para um muro do lado oposto, donde só se conseguia ver céu. Afonso olhou através dos vidros. Céu limpo e pássaros esvoaçando em orbitas repetidas, estava ainda meio atordoado. Ao seu lado estava um senhor paquistanês que gritou e gemeu desalmadamente toda a noite, sem se perceber uma palavra e do lado da porta, outro senhor cuja idade e discurso desconexo apontava para senilidade. Afonso sentia-se ultrajado e despido da sua vida. Ainda amarrado à cama e certamente dopado, pensava no seu guarda chuva abandonado na sarjeta. A esta hora já teria sido levado pelos homens do lixo durante a noite, só a ideia desolava-o. Como se tivesse sido mutilado, uma parte do seu corpo desagregada de si.
Uma enfermeira jovem de cabelo encaracolado ruivo entrou no quarto, trazendo um carrinho com bandejas com o que parecia ser o pequeno almoço e comprimidos, mais comprimidos para os três. "Não quero tomar nada disso, estou bem, quero falar com um médico..." e a enfermeira olhando com um ar de desprezo respondeu "Logo à tarde será visitado, agora seja um bom menino e tome a sua medicação, vai sentir-se mais calmo...". Afonso não teve outro remédio porque a menina ruiva não lhe largou a cabeceira enquanto não o viu ingerir o comprimido pela goela baixo empurrado por um chá insípido e uma torrada com compota sabe-se lá de quê. O senhor paquistanês continuava a gemer, conseguia até mastigar e gemer ao mesmo tempo. Afonso sentiu-se desesperado, nunca mais iria sair daquele lugar. A ausência de controlo sobre a sua vida e o efeito do sedativo trouxeram-lhe novamente sono. Quando despertou estava a ser transportado numa maca novamente.
"Para onde me levam?", "Vamos fazer-lhe alguns exames". Seguiu-se uma panóplia de intervenções a que Afonso apreciou com especial desagrado por considerar uma intrusão. Raramente ia ao médico, até porque, raramente se sujeitava a situações que o pudessem adoecer. De regresso ao quarto, o senhor do lado da porta encontrava-se ausente, ao ver Afonso intrigado a enfermeira, uma outra loura, disse-lhe "O senhor Alcides estava já muito mal, a idade coitado...". Afonso sentiu um arrepio na espinha, "deste lugar só se sai morto" pensou. O senhor paquistanês dormia agora e Afonso pediu à enfermeira se podia ir até à sala da televisão para se distrair um pouco, "Vai mas vai nesta cadeira, não sabemos ainda o diagnóstico e por isso recomenda-se esforços mínimos...pode ir". A ideia de Afonso era escapulir-se daquele inferno, não estava louco, não estava doente e queria por tudo recuperar o seu guarda chuva. Sentou-se na cadeira e com as mãos fez circular a cadeira pelo corredor fora "não fazer esforços, esta cadeira parece um pedregulho a ser puxado montanha a cima, inúteis, não querem saber de uma pessoa para nada aqui" pensou, realizando algum esforço para se levar devido ao peso do seu corpo.
Ao contornar a esquina do balcão de atendimento do piso, viu a sinalética das escadas de incêndio, "darei menos nas vistas se for por aqui" e abandonando a cadeira no caminho, desceu ainda meio enfraquecido da medicação. Desceu até onde pôde ir, saindo por uma porta que dava para o parque de estacionamento. Não deveriam dar pela sua falta senão pela hora hora do jantar. Tinha tempo para fugir com a calma discreta de quem não está a fugir, mas o seu pijama hospitalar denunciava-o. Precisava de roupas com urgência. Mais à frente, no parque, estava uma senhora a descarregar malas acompanhada de uma outra de mais idade com um andarilho. Afonso aproximou-se escondendo-se nas colunas separadoras. Manteve-se à espreita. A senhora agarrou numa das malas e acompanhando a outra de idade dirigiram-se ao elevador deixando o carro aberto com a outra mala. Teria de ser rápido. Dirigiu-se ao carro e levou a mala, correndo coxeando aos saltos parque fora. A senhora só reparou quando passados alguns minutos regressou ao carro e sentindo-se roubada procurou um segurança. Neste entremeio, Afonso teve tempo de abrir a mala, "Raios, só roupa de mulher...isto deve servir...tem de servir", era uma camisa de dormir e umas calças de fato de treino as quais nele serviam como camisola e calças justas. Afonso estava ridículo, parecia um fugitivo de um hospício, e era-o na verdade.
Só pensava no seu guarda chuva. Tudo o que desejava era estar de novo junto dele. Abraça-lo, beija-lo, acaricia-lo, carrega-lo junto ao peito. O seu fiel companheiro. Na rua, sem dinheiro, teria ainda uma longa caminhada a pé. O hospital ficava a alguns quarteirões de distância mas a força que o movia era sobrenatural, heróica e por isso as suas pernas não sentiram cansaço na caminhada. Quando se aproximou da rua do acontecido, olhou para cima na tentativa de o ver. Andou mais depressa, sôfrego e ao aproximar-se para seu grande desalento, não estava mais lá.
Baixou-se então junto à sarjeta. "Estás aí criatura? Estás aí?" e esperou. Viu então surgir da escuridão o homenzinho. Ergueu-se e sentou-se cruzando as pernas, "Ah, és tu novamente...", Afonso atropelando as palavras implorou-lhe "Por favor, viste para onde levaram ou quem levou o meu guarda chuva? Sabes de alguma coisa?". "Vi...mas preciso de um favor em troca dessa informação", Afonso irritou-se "Ah criatura maquiavélica, não entendes que preciso do meu guarda chuva?", o outro calmamente continuou "Eu sei...mas eu também preciso de algo...e só tu me podes ajudar". Afonso endireitou-se deixando assentar-se em desistência, não tinha como regatear, iria ouvir o pedido do homenzinho.
IV
"Tu não sabes quem és pois não?", Afonso não compreendeu "Eu sou o Afonso da Silva, quem mais poderia ser?" e a criatura soltou um suspiro como se fosse de conhecimento geral e estivesse a explicar o óbvio "Tu és o guardião da chuva, foste entregue à mãe tempestade ainda bebé por nós criaturas da chuva. Mas desde então que tens evitado o teu destino e usado como escudo de contacto esse guarda chuva...não precisas mais dele...só há um guardião da chuva de cem em cem anos, tu tens de cumprir o teu papel, caso contrário uma grande desgraça poderá acontecer".
Afonso estava incrédulo, como podia a criatura saber do episódio de infância? "Escuta, eu não sei que espécie de criatura ou de delírio és, mas eu sei quem sou e tudo isso são idiotices...desgraça? De que estás a falar?". O homenzinho levantou-se e afirmou com o dedo em riste "Chega, não há tempo a perder...todos os elementos da terra estão a perder-se pelo portal, a nossa urgência é encerrar esse portal para manter o equilíbrio e garantir que há chuva, vamos, leva-me ao grande lago do jardim da cidade".
O homenzinho estava convicto e decidido a não ajudar Afonso a recuperar o guarda chuva enquanto este não o levasse ao lago, e por isso Afonso pegou nele, colocou-o no bolso das calças e dirigiu-se para o jardim. Ainda sobre a sua palma referiu-lhe "Espero que depois cumpras a tua promessa, não tenho nada a ver com as tuas demandas, quero apenas o meu guarda chuva" e o homenzinho levou as mãos à cabeça e respondeu "Tu não entendes pois não? Vamos...verás a dimensão".
O caminho para o jardim coincidia com a passagem pela rua onde morava e ao aproximar-se viu um carro de polícia parado na porta do seu prédio. Estariam certamente à sua procura. Seguiu apressando o passo desajeitado. Mais à frente passou por duas mulheres que estavam na porta espreitando o acontecido, Afonso sabia que não o conheciam e lentificou-se para escutar o que diziam "Parece que o homem fugiu do hospital, estão à procura dele, está muito doente". "Estou muito doente" pensou, seria verdade? Ignorando prosseguiu, queria com toda a urgência resolver a situação e recuperar a sua vida. Tudo deveria permanecer como antes, seguro e controlado.
O jardim da cidade era o maior parque verde das redondezas, antigo e conservado. Tinha um portão enorme de ferro trabalhado que encerrava às 9 horas da noite. Pela queda do dia, percebia-se que deveriam estar perto da hora de encerramento. Não havia guarda e por isso conseguiram entrar, o dia começava de facto a escurecer e o jardim estava já deserto. Alguns baloiços ainda badalavam como se fossem lençóis quentes de uma cama acabada de abrir. Passando uma clareira de árvores de corpos ancestrais entrelaçados, lá estava o grande lago.
Afonso estava cansado e sentou-no no banco de madeira junto ao lago. De dentro do bolso saiu então o homenzinho. Afonso suspirou de cansaço mas depressa expirou de pânico, a capa, a capa do homenzinho estava roxa. Olhou o céu que se tomava de negro e a pouco e pouco em convergência, começaram a aproximar-se nuvens tapando as primeiras estrelas. "Não, vai chover! Eu preciso de regressar a casa imediatamente! Agora, estás a ouvir!". O homenzinho sentou-se no seu colo, puxou do cachimbo, acendeu-o e disse "É claro que vai chover, nós vamos abrir o portal, estamos muito próximo dele. É por isso que vai chover. E tu não vais a lado nenhum." Apagou o cachimbo depois de dois bafos e foi até à beira do lago levantando os braços ao céu. Afonso esfregava as mãos tremendo de medo, estava muito longe de casa e não tinha sequer o seu guarda chuva. Mal conseguia respirar de tanto pavor. E o homenzinho falou entoando a voz como se cantasse.
"Lánua Caeli, et emítte cáetilus, Lucis tuae rádium." E nesse momento um enorme raio caiu dos céus sobre o lago, deixando uma luz intermitente presente. O portal aberto. Afonso embrulhou-se atrás do banco chorando como uma criança assustada depois de levar uma sova sem razão. Doía-lhe todo o espírito e as entranhas queriam sair pela boca. O homem virou-se para Afonso ordenando "Anda, está na hora, vem". E como se uma força exterior o estivesse puxando, sentiu o corpo deslizar até ao portal, entrando dentro dele.
V
O guarda que de manhã abriu o portão do jardim tinha por hábito fazer uma ronda para verificar a normalidade das condições do mesmo e foi ele que deu com Afonso da Silva chapinhando nu no lago, cantando e rindo como um louco. Perante este cenário o guarda não hesitou em chamar as autoridades para levarem Afonso, que parecia embriagado perdido em alucínios, chapinhando como um pato.
Afonso na realidade sentia uma alegria tremenda, como se uma libertação dentro de si tivesse ocorrido e cada parte do seu corpo, da sua mente, fizesse agora parte de um todo, onde tudo brilhava e reluzia como acabado de chover. E o odor que sentia, a terra molhada, a orvalho, era divino. Sentia vontade de mergulhar, de esfregar-se na relva, de abraçar as árvores e voar com os pássaros.
Foi levado novamente para o hospital. Estava deitado na sua cama olhando o infinito quando uma enfermeira se aproximou "O senhor teve um colapso cerebral, a extensão dos danos é grave, consegue perceber o que lhe estou a dizer?". Mas Afonso parecia perdido noutro mundo. Os dias passaram e foi mandado para uma casa de repouso, onde muitos outros estavam e da qual tinha licença para sair de dia, uma vez que manifestava estar na posse das qualidades necessárias para realizar o básico dentro de um quadro de realidade adaptada mas cuja comunicação com o exterior se encontrava encerrada sobre si mesma. Todos os dias, Afonso caminhava até ao jardim da cidade e sentava-se junto ao lago no banco de madeira. Ali ficava até ao entardecer. E todos os dias regressava à casa de repouso, pelos seus próprios pés.
Um dia, uma criança que brincava com um balão veio sentar-se ao seu lado e perguntou-lhe " O que fazes aqui?" e Afonso da Silva respondeu "Eu sou o guardião da chuva, é aqui o meu lugar". A criança ficou pasmada a olhar para ele e tocou-lhe na mão sorrindo "A chuva é muito importante". E correu procurando a mãe deixando o balão libertar-se da sua mão. Lentamente Afonso viu o balão ascender, como um guarda chuva planando no céu, até que apenas um minúsculo ponto no infinito, desaparecer entre as nuvens de branco.
https://drive.google.com/file/d/0BxTUO8aReKYKeE9EUjRKRnNoeWs/edit?usp=sharing
ResponderEliminar