II
Já a tarde ia a meio quando Lisa avistou a ponte
e Lisboa do outro lado do rio. De quem vem de sul, Lisboa tem duas pontes de
entrada. Seria provável cada uma delas estar controlada por cada uma das
frentes. Aproximou-se das portagens da ponte, escondida avistou tanques e homens
armados vestidos de preto e encapuçados - mas como é que esta gente sabe quem é
quem? E aí começou a ocorrer-lhe a ideia de serem um só ou alguém de dentro a
meio do golpe ter começado a agir contra a revolução em revolução - pelo poder,
foi isso que o homem disse na casa...Uma traição dentro da própria revolução.
Seria assim? - Não queria correr o risco de ser novamente apanhada pelas
mãos erradas e pensou que o único ponto seguro que tinha era na baixa, era lá
que estava o João - irei de barco.
Desceu até ao rio contornando a entrada da ponte,
tinha esperança de encontrar barcos de pescadores abandonados no cais. Pelos
extensos areais do rio havia muitas embarcações. A grande maioria estava aos
pedaços. Os bons estavam em água. Olhou ao horizonte. Havia ainda alguns barcos
à deriva lá para o meio. Estariam mortos? Estava perdida nos contornos da
cidade do outro lado quando se aproximou um homem de chinelos e boné na
cabeça.
- Se está a pensar em atravessar de barco é
arriscado. Eles têm atiradores da ponte. Atiram a qualquer um, acho que até por
diversão.
- Mas eu preciso de chegar ao outro lado...
-Sabe nadar?
-Sei...desenrascar-me...
-E é uma questão de vida ou de morte?
-Sim, completamente...
-Há uma solução...mas não sei se terá forças para
isso...
-Não me diga que é atravessar o rio a nado?
-Foi assim que o meu pai...a história agora não
importa...a ideia é ir debaixo de água empurrando o barco...estas canas...que
acompanham o areal...há muitos anos que servem para respiradores...a malta aqui
tem outros métodos entende?
-Quer dizer que irei debaixo de água respirando
com uma cana empurrando eu o barco?
-Exato...o barco serve-lhe de apoio e descanso e
esconde-a...lá de cima não se vê...não é nada fácil...é uma técnica que se
treina desde garoto...
-Desde garoto? Mas para quê?
-Agora não importa...não tem urgência? Irei
prepara-la...
Lisa achou a tarefa impossível mas não tinha
outra alternativa...Observou o homem a puxar um dos barcos, dos mais pequenos e
a ir aos caniçais apanhar uma cana, cortou-a e limou-a com uma pedra.
Experimentou-a para ver se o ar corria sem obstáculos.
-Vamos experimente primeiro em terra. É uma
travessia que lhe pode levar horas. Nadar e empurrar...nadar e empurrar...Não
ao contrário...para enganar o desespero entende?
-Nem por isso mas se afirma...nadar e
empurrar...assim farei...
-É melhor livrar-se das roupas...só lhe vão criar
resistência...vou-me embora...deixo-a à vontade...que seja bem sucedida...
Lisa olhou para a cana na mão...
-Qual é a percentagem de sucesso? A outra margem
parece tão distante...
-É melhor não saber...se tem mesmo de fazer isto,
o seu principal inimigo será a sua cabeça...respirar...nadar e empurrar...limpe
a sua mente de tudo o resto...
-Sim...
-Outra coisa...a corrente está a puxar para o seu
lado esquerdo...mas mais ao menos a meio vai encontrar correntes diversas e
depois ela a empurrará para a direita...deve seguir sempre em frente...veja o
desenho do seu desvio...
O homem desenhou com o dedo na areia aquilo que
no final lhe pareceu um "s" mas ao contrário.
-Pela corrente vai avançar em curva primeiro para
este lado...depois no centro corrente e contra corrente vão deixa-la seguir
mais ou menos ao centro e por fim sentirá sem puxada para o outro lado.
-Como vou saber isso tudo...
-Não vai...siga em frente e reze.
-Minha mãe do céu...estou perdida...
-Não é assim tão complicado...a corrente só vai
cansa-la um pouco mais...este rio não tem temperamento para graves desvios...mas
mói...lembre-se...
-Nadar e empurrar...
-Isso...irei...espero que corra tudo bem
-Obrigado por tudo.
Lisa levou os pés à água segurando no pequeno
barco e na cana. Esperou o homem partir e despiu-se deixando as roupas
flutuarem. A água estava fria mas o dia estava quente - se fosse Inverno seria
pior - continuou a empurrar o barco caminhando até sentir a água pelo pescoço.
Levou então a cana à boca e mergulhou ajeitando-se na popa. Os olhos abertos
debaixo de água não lhe permitiam ver grande coisa, a turbidez de cor
acastanhada dava a ideia de estar a nadar numa gigante piscina de lama.
De fora o barco sem guia dava a sensação de estar à deriva sendo
transportado pela corrente. Lentamente, nadando Lisa foi seguindo. A sensação
de fundão debaixo dos seus pés era o seu maior abismo. A pequenez de si pareceu
gigantesca aos olhos de uma escuridão que sumia, Lisa só podia olhar em frente.
Nadar e empurrar o barco, eram as palavras que deviam preencher todo o seu
pensamento, se se desviasse, estaria perdida. Passado algum tempo a temperatura
da água mudou, Lisa pensou estar a chegar ao centro do rio e que aqui seria a
parte das contra correntes. Não tinha a certeza disso mas continuou, lentamente
nadando. A cana magoava-lhe a boca, longe de ser um respirador anatomicamente
adaptado. Pensou em vir à superfície do lado direito do barco, pelas suas
contas, a ponte estaria do outro lado e o barco dava-lhe proteção dos
atiradores. Poderia descansar um pouco e dado que estava em corrente contra
corrente não sairia do mesmo lugar.
Assim fez e lá estava a ponte do seu lado
esquerdo. Estava de facto a meio do rio. Ficou aliviada. Cansada mas com uma
nova energia, cedo chegaria à outra margem. Parou assim um pouco para descansar
os braços e as pernas, sentindo um ligeiro embalo ora para a esquerda ora para
a direita. Era confortável este embalo. O céu estava limpo e algumas gaivotas
passavam rasantes.
Havia em tudo isto uma certa beleza. Pelos campos
que passara e agora o céu e o rio, este azul de tranquilidade como se o mundo
estivesse suspenso naquele momento. Como se ali, estando na verdade em perigo,
estivesse segura. Tranquila e retida numa pausa de profunda beleza.
A observação permitiu-lhe também perceber os movimentos da
ponte. Alguns tanques atravessavam para Lisboa em marcha lenta. Lisa pensou em
como podemos acordar e tudo o que conhecíamos à nossa volta estar virado ao
contrário. A mudança chegara e ela nem ninguém se conseguia entender no meio
dela porque ninguém explicava nada. Ninguém sabia se era uma mudança boa ou má.
Era mudança, quanto ao resto só restavam dúvidas.
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