terça-feira, 12 de agosto de 2014

Rostos de uma Revolução, Parte II


II



Já a tarde ia a meio quando Lisa avistou a ponte e Lisboa do outro lado do rio. De quem vem de sul, Lisboa tem duas pontes de entrada. Seria provável cada uma delas estar controlada por cada uma das frentes. Aproximou-se das portagens da ponte, escondida avistou tanques e homens armados vestidos de preto e encapuçados - mas como é que esta gente sabe quem é quem? E aí começou a ocorrer-lhe a ideia de serem um só ou alguém de dentro a meio do golpe ter começado a agir contra a revolução em revolução - pelo poder, foi isso que o homem disse na casa...Uma traição dentro da própria revolução. Seria assim?  - Não queria correr o risco de ser novamente apanhada pelas mãos erradas e pensou que o único ponto seguro que tinha era na baixa, era lá que estava o João - irei de barco. 

Desceu até ao rio contornando a entrada da ponte, tinha esperança de encontrar barcos de pescadores abandonados no cais. Pelos extensos areais do rio havia muitas embarcações. A grande maioria estava aos pedaços. Os bons estavam em água. Olhou ao horizonte. Havia ainda alguns barcos à deriva lá para o meio. Estariam mortos? Estava perdida nos contornos da cidade do outro lado quando se aproximou um homem de chinelos e boné na cabeça. 

- Se está a pensar em atravessar de barco é arriscado. Eles têm atiradores da ponte. Atiram a qualquer um, acho que até por diversão.
- Mas eu preciso de chegar ao outro lado...
-Sabe nadar?
-Sei...desenrascar-me...
-E é uma questão de vida ou de morte?
-Sim, completamente...
-Há uma solução...mas não sei se terá forças para isso...
-Não me diga que é atravessar o rio a nado? 
-Foi assim que o meu pai...a história agora não importa...a ideia é ir debaixo de água empurrando o barco...estas canas...que acompanham o areal...há muitos anos que servem para respiradores...a malta aqui tem outros métodos entende?
-Quer dizer que irei debaixo de água respirando com uma cana empurrando eu o barco?
-Exato...o barco serve-lhe de apoio e descanso e esconde-a...lá de cima não se vê...não é nada fácil...é uma técnica que se treina desde garoto...
-Desde garoto? Mas para quê?
-Agora não importa...não tem urgência? Irei prepara-la...

Lisa achou a tarefa impossível mas não tinha outra alternativa...Observou o homem a puxar um dos barcos, dos mais pequenos e a ir aos caniçais apanhar uma cana, cortou-a e limou-a com uma pedra. Experimentou-a para ver se o ar corria sem obstáculos.
-Vamos experimente primeiro em terra. É uma travessia que lhe pode levar horas. Nadar e empurrar...nadar e empurrar...Não ao contrário...para enganar o desespero entende?
-Nem por isso mas se afirma...nadar e empurrar...assim farei...
-É melhor livrar-se das roupas...só lhe vão criar resistência...vou-me embora...deixo-a à vontade...que seja bem sucedida...
Lisa olhou para a cana na mão...
-Qual é a percentagem de sucesso? A outra margem parece tão distante...
-É melhor não saber...se tem mesmo de fazer isto, o seu principal inimigo será a sua cabeça...respirar...nadar e empurrar...limpe a sua mente de tudo o resto...
-Sim...
-Outra coisa...a corrente está a puxar para o seu lado esquerdo...mas mais ao menos a meio vai encontrar correntes diversas e depois ela a empurrará para a direita...deve seguir sempre em frente...veja o desenho do seu desvio...
O homem desenhou com o dedo na areia aquilo que no final lhe pareceu um "s" mas ao contrário.
-Pela corrente vai avançar em curva primeiro para este lado...depois no centro corrente e contra corrente vão deixa-la seguir mais ou menos ao centro e por fim sentirá sem puxada para o outro lado. 
-Como vou saber isso tudo...
-Não vai...siga em frente e reze. 
-Minha mãe do céu...estou perdida...
-Não é assim tão complicado...a corrente só vai cansa-la um pouco mais...este rio não tem temperamento para graves desvios...mas mói...lembre-se...
-Nadar e empurrar...
-Isso...irei...espero que corra tudo bem
-Obrigado por tudo.

Lisa levou os pés à água segurando no pequeno barco e na cana. Esperou o homem partir e despiu-se deixando as roupas flutuarem. A água estava fria mas o dia estava quente - se fosse Inverno seria pior - continuou a empurrar o barco caminhando até sentir a água pelo pescoço. Levou então a cana à boca e mergulhou ajeitando-se na popa. Os olhos abertos debaixo de água não lhe permitiam ver grande coisa, a turbidez de cor acastanhada dava a ideia de estar a nadar numa gigante piscina de lama.  De fora o barco sem guia dava a sensação de estar à deriva sendo transportado pela corrente. Lentamente, nadando Lisa foi seguindo. A sensação de fundão debaixo dos seus pés era o seu maior abismo. A pequenez de si pareceu gigantesca aos olhos de uma escuridão que sumia, Lisa só podia olhar em frente. Nadar e empurrar o barco, eram as palavras que deviam preencher todo o seu pensamento, se se desviasse, estaria perdida. Passado algum tempo a temperatura da água mudou, Lisa pensou estar a chegar ao centro do rio e que aqui seria a parte das contra correntes. Não tinha a certeza disso mas continuou, lentamente nadando. A cana magoava-lhe a boca, longe de ser um respirador anatomicamente adaptado. Pensou em vir à superfície do lado direito do barco, pelas suas contas, a ponte estaria do outro lado e o barco dava-lhe proteção dos atiradores. Poderia descansar um pouco e dado que estava em corrente contra corrente não sairia do mesmo lugar. 
Assim fez e lá estava a ponte do seu lado esquerdo. Estava de facto a meio do rio. Ficou aliviada. Cansada mas com uma nova energia, cedo chegaria à outra margem. Parou assim um pouco para descansar os braços e as pernas, sentindo um ligeiro embalo ora para a esquerda ora para a direita. Era confortável este embalo. O céu estava limpo e algumas gaivotas passavam rasantes. 
Havia em tudo isto uma certa beleza. Pelos campos que passara e agora o céu e o rio, este azul de tranquilidade como se o mundo estivesse suspenso naquele momento. Como se ali, estando na verdade em perigo, estivesse segura. Tranquila e retida numa pausa de profunda beleza. 

A observação permitiu-lhe também perceber os movimentos da ponte. Alguns tanques atravessavam para Lisboa em marcha lenta. Lisa pensou em como podemos acordar e tudo o que conhecíamos à nossa volta estar virado ao contrário. A mudança chegara e ela nem ninguém se conseguia entender no meio dela porque ninguém explicava nada. Ninguém sabia se era uma mudança boa ou má. Era mudança, quanto ao resto só restavam dúvidas. 

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