terça-feira, 12 de agosto de 2014

Rostos de uma Revolução, Parte III

III


Quando sentiu nos pés terreno estava finalmente a chegar à outra margem, Lisboa. Lisa abandonou o barco e procurou à sua volta por algo que a pudesse cobrir. Tinha frio, muito tempo dentro de água deixara-lhe a pele encarquilhada e apesar de se sentir quente do esforço do movimento precisava agora de roupa para se deslocar.
Chegar à baixa do cais era relativamente perto, mas chegar sem ser vista não seria tão fácil. Cautelosa avançou pela rua que subia, o cenário era caótico. Carros abandonados, alguns escancarados dando a ideia de terem sido largados no meio do transito num momento de pânico, lojas com vidros partidos e tudo vandalizado. Lisa viu um armazém de roupa e entrou. Procurou roupa escura parecida com o uniforme dos revolucionários para que passasse como um deles, uma vez mais. Calçada e vestida sentia-se mais confortável. Estava esfomeada e procurou algum café ou mercearia nas mesmas condições. E um pouco mais à frente, lá estava o seu café favorito da baixa. Não avistando também aqui ninguém entrou.
Tantas foram as vezes que estivera sentada nesta mesma mesa donde observava quem passava lá fora. Tantos livros e cafés cheios passaram por esta mesa. Tantos encontros e agora…tudo desencontrado do seu lugar habitual. Era como se estivesse a olhar para a sua própria vida do lado de fora. Este café era também ela. Desalinhado, arrombado, partido. Assim via o seu passado, antes de conhecer João. Mas agora também isso era incerto.

Na cozinha havia pão e queijo, fez uma sandes e procurou por café. A máquina estava inutilizável mas encontrou saquetas de café solúvel. Havia ainda chocolates, que guardou no bolso para mais tarde.  Comeu e sossegou o espírito. Pensava agora num novo plano. Sabia que descendo até ao terreiro do passo iria encontrar militares. Não tinha arma consigo mas tinha um gorro. João estaria lá ainda? Talvez o melhor plano fosse não ter plano, iria directamente procura-lo.

Quando se aproximou do terreiro começou a ouvir tiros. Mais depressa correu para chegar às arcadas. Numa delas uma grande porta do edifício estava aberta e não havia guarda. Ao subir a escadaria de pedra encontrou uma mochila perdida. Lá dentro havia metralhadoras e granadas. Lisa acautelando-se levou às costas uma das armas. No topo das escadas havia um corredor que dava para várias salas. Lisa escutou vozes do fundo e aproximou-se.

Atrás da porta escutou a conversa. Dizia um para o outro:
-Andorinha, eles avançam pela ponte do sul. Temos algumas horas apenas. É preciso estratégia, lá em baixo os homens estão a morrer. Eles têm gente mais preparada.
-Meu primeiro chefe, estamos perdidos. Não sei quem os lidera. Não recebemos qualquer comunicado deles. Nada disto estava previsto. Vamos enviar um carro com dois homens para entrar em negociação.
- É arriscado Andorinha, eles atiram sem piedade.
-Não temos alternativa. Segue com a ordem.
-Sim Andorinha, acima e na frente, a vida!

Lisa escutou o homem dirigir-se à porta e escondeu-se na sala do lado. O homem desceu e Lisa puxando da arma dirigiu-se à porta. Era ele, João. Estava sozinho sentado numa grande secretária olhando da janela o ataque do terreiro. Lisa falou, apontando-lhe a arma.
-João?
De cabelos desalinhados, virando a cabeça, olha-a espantado. Levanta-se e Lisa recua reforçando a arma na sua direcção.
-Lisa! Que fazes aqui? E essa arma, apontada a mim porquê?
-Não sei mais quem és. Diz-me naquela noite drogaste-me?
-Lisa, tudo o que fiz foi para te proteger. Não queria que estivesses na rua naquele dia. Muita gente foi apanhada no meio do tiroteio. Lisa, eu amo-te.
-Mas porque estás envolvido nisto? És tu a cabeça deste ataque?
-Lisa, senta-te e poisa a arma, não te vou fazer mal nenhum. Se alguém entra e vê essa arma apontada a mim é capaz de atirar em ti. Por favor faz o que te digo. Estava à tua espera, mas pensei o pior quando soube que o carro foi apanhado.
Lisa pousou a arma e sentou-se na frente dele.
-Foram eles. Levaram-me para fora de Lisboa mas consegui fugir.
-E conseguiste saber alguma coisa?
-Apenas que o chefe deles tem um anel com uma cobra. Eles andam todos encapuçados e o uniforme é igual ao vosso, é uma confusão.
-Pois, eles eram nossos. Ele…só pode ser ele…o anel…agora percebo.
-Percebes o quê? Tu sabes quem é ele? Mas explica qual é a vossa intenção? Tanta violência era necessária? Estão a morrer civis nas ruas.

João olhou novamente pela janela com um olhar de tremenda desilusão.
-Ele era o meu melhor amigo.
-O Fernando? Não pode ser…
-Não. Toda uma vida minha que não conhecias para te proteger. Tive sempre receio de que não concordasses. O Elias sim era o meu melhor amigo desde miúdos. Esse anel pertencia ao pai dele. Foi um grande activista, esteve preso várias vezes no antigo regime. Mas porquê Elias?
-Sim…porquê esta traição?
-A nossa intenção era um golpe militar. Estamos há anos a prepara-lo. E se não fosse este contratempo, estávamos agora com o país nas mãos. Era nosso Lisa, entendes? – e os seus olhos brilharam deixando cair uma lágrima.
-Sim, nosso, do povo queres dizer João? Diz-me que é do lado do povo que estás?
-De quem mais podia ser Lisa?
-…do poder…
-Do poder? Onde ouviste isso?
-Da boca deles…
-Ah, agora faz sentido…ele queria governar. Enganou-me todo este tempo. Sabia que não tinha meios nem financeiros nem humanos para iniciar este movimento, aliou-se a mim e depois…
-E agora?
-Agora tudo muda de figura, eles têm um rosto e eu conheço bem o ponto fraco dele.
-Conheces?
-Ele tem uma filha.
-Mas João tu não te atreverias? É uma criança?
-Lisa, os meus homens estão a morrer. Esta era a única chance que o país tinha para darmos a volta…eu não lhe quero fazer mal…quero usa-la. Todas as guerras têm danos colaterais…
-A quem o dizes…E onde está ela? Tens ideia?
-Tenho quase a certeza que estará com a avó…rápido, temos de agir rapidamente, ele sabe que fugiste e por precaução pode ter mandado buscar a miúda. Vens comigo? – e estendeu-lhe a mão.
Lisa sorriu  - já que não há mais nada de interessante para fazer nesta cidade… - riram-se ambos.

Cá fora seguiram num tanque, estariam mais seguros e João foi dando as indicações. Lisa olhava-o com desejo e orgulho. Estava feliz porque as suas intenções eram boas. Um pouco agressivas mas com bom fundo. Também ela tinha em mente que uma revolução deste calibre não se faria com cravos e que desta vez, se não fosse a sério, não seria de todo uma revolução. O país caíra nas mãos de governantes absolutos, o povo não era senão escravo.

O tanque parou à porta do prédio. Lisa e João saíram encapuçados e um homem armado seguiu-os. A porta abriu-se e uma senhora de xaile apareceu. Lisa ao ver quem era deteve o braço de João em pânico.
-João é má ideia, vamos embora por favor.
-Mas como dizes? Estás-te a passar?
Os dois entraram, a senhora vendo-os de uniforme igual aos outros pensou serem homens de Elias. Sem tirarem em momento algum o gorro, entraram no quarto da miúda encaminhados pela senhora.
-Pai? – João tirou então o gorro.
-Não sou o teu pai mas tenho ordens para levar-te até ele.
Elisa nunca se revelou e sem proferir palavra levaram a miúda com eles.

 De volta ao terreiro, das batalhas resultara um tanque a arder no centro da praça e vários homens de volta dele tentando apagar o fogo. Na sala João falou para o outro que os seguia.
-Levem a miúda para a sala das reuniões, deixem-lhe comida e água – e aos ouvidos do outro - Fechem-na.

Lisa estava aterrorizada. A situação estava absolutamente descontrolada, um beco sem saída mas desta vez não só a vida dela estava em perigo. Não sabia se havia de dizer a verdade para proteger a criança. Não sabia qual seria a reacção de João.
-João, por favor é uma criança.
-Mas o que é eu te deu quando lá entraste? Tu concordaste com o plano.
-Eu sei mas quando a vi o meu coração disparou.
-Mais parece cenas de coração de mãe. Tu não és mãe dela para quê tanta pena da criança, nem a conheces.
-Infelizmente…- Lisa começou a chorar – Há também uma parte da minha vida que não conheces…
-O que queres dizer? Que conheces a miúda? Como?
-É uma história longa…e triste…
-Agora não temos tempo. Mais tarde. Vou enviar um homem com mensagem a Elias. Tenho a filha dele e exijo a retirada dos homens dele ou mato-a. Ele vai ceder.
-E se não ceder? Levas a tua avante?
-Achas? Não sou nenhum assassino…
-Todos nós podemos ser assassinos se a nossa vida estiver em causa.
-Mas o que é que tu percebes disso?
-Eu sei do que estou a falar.
-A minha vida não está em perigo. Se não queres compactuar com isto não atrapalhes. Tenho de ir lá abaixo falar com os homens. Ficas por aí?
-Fico.

Lisa pensou imediatamente em proteger a menina. Depois dele sair correu ao quarto dela. Pediu ao guarda para entrar.
-Maria!
-Mãe! – a menina correu aos braços dela – mãe! Porque estás aqui? Onde está o pai? Mãe não apareces lá em casa há anos! Nem ao meu aniversário foste! - a menina chorava agarrada a Lisa.
-Minha querida, por favor escuta com atenção. Nós duas temos de partir. Não estamos seguras aqui – o rosto de Maria mudou afastando-se dos braços da mãe.
-Não…não confio em ti, quero o meu pai, onde está ele? Quero o meu pai – gritou.
-Maria por favor não faças barulho, lá fora está um guarda. Escuta o que eu te digo, tens de vir comigo, não estás segura aqui – e segurando-a pelo braço passou pela porta informando que tinha ordens do Andorinha para levar a menina.

Saiu com a menina e o primeiro carro que apanhou com chave meteu-se lá dentro e seguiu viagem. Lisa só queria sair da cidade, não importava para onde mas tratava-se agora da segurança da filha e isso seria a sua prioridade. Há anos que decidira não ter capacidade de cuidar dela e entregara-a a Elias, que na altura dava pelo nome de Filipe. Durante o caminho rezou para não serem abordadas por ninguém. Procurou fugir de ruas principais até conseguir avistar placas que indicavam Norte. A sul sabia estar Elias.

No terreiro quando João regressou e procurou por Lisa, percebendo ter sido traído também por ela e sem nenhuma explicação ficou furioso e deu ordem de morte às duas se fossem encontradas. Quanto a Elias decidiu manter a fachada de que tinha na sua posse a menina. Pretendia também matá-lo assim que lhe tivesse a vista em cima. Sem Elias os seus antigos homens regressariam a si e a revolução manter-se-ia nos trilhos planeados.

Lisa andou horas de carro com Maria até sentir que estava tão profundamente perdida por aldeias que nem João nem Elias seriam capazes de a encontrar. Tinha intenção de sair do país com ela e não mais regressar, pelo menos enquanto não tivesse notícias de segurança. Foi conversando com Maria, recuperando ou tentando reparar o tempo perdido…
-Maria, a minha vida foi tão complexa até há bem pouco tempo... eu e o teu pai conhecemo-nos quando eu estava numa fase muito complicada…nem eu me conseguia erguer quanto mais cuidar de uma criança. Perdoa-me por favor, agora estou aqui e não vou nunca mais perder-te. Temos todo o tempo do mundo… - E olhando para o relógio do carro e depois para Maria pensou – sinto-me em paz.






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