III
Quando sentiu nos pés terreno estava finalmente a chegar à
outra margem, Lisboa. Lisa abandonou o barco e procurou à sua volta por algo
que a pudesse cobrir. Tinha frio, muito tempo dentro de água deixara-lhe a pele
encarquilhada e apesar de se sentir quente do esforço do movimento precisava
agora de roupa para se deslocar.
Chegar à baixa do cais era relativamente perto, mas chegar
sem ser vista não seria tão fácil. Cautelosa avançou pela rua que subia, o
cenário era caótico. Carros abandonados, alguns escancarados dando a ideia de
terem sido largados no meio do transito num momento de pânico, lojas com vidros
partidos e tudo vandalizado. Lisa viu um armazém de roupa e entrou. Procurou
roupa escura parecida com o uniforme dos revolucionários para que passasse como
um deles, uma vez mais. Calçada e vestida sentia-se mais confortável. Estava
esfomeada e procurou algum café ou mercearia nas mesmas condições. E um pouco mais
à frente, lá estava o seu café favorito da baixa. Não avistando também aqui
ninguém entrou.
Tantas foram as vezes que estivera sentada nesta mesma mesa
donde observava quem passava lá fora. Tantos livros e cafés cheios passaram por
esta mesa. Tantos encontros e agora…tudo desencontrado do seu lugar habitual.
Era como se estivesse a olhar para a sua própria vida do lado de fora. Este
café era também ela. Desalinhado, arrombado, partido. Assim via o seu passado,
antes de conhecer João. Mas agora também isso era incerto.
Na cozinha havia pão e queijo, fez uma sandes e procurou por
café. A máquina estava inutilizável mas encontrou saquetas de café solúvel.
Havia ainda chocolates, que guardou no bolso para mais tarde. Comeu e sossegou o espírito. Pensava agora
num novo plano. Sabia que descendo até ao terreiro do passo iria encontrar
militares. Não tinha arma consigo mas tinha um gorro. João estaria lá ainda?
Talvez o melhor plano fosse não ter plano, iria directamente procura-lo.
Quando se aproximou do terreiro começou a ouvir tiros. Mais
depressa correu para chegar às arcadas. Numa delas uma grande porta do edifício
estava aberta e não havia guarda. Ao subir a escadaria de pedra encontrou uma
mochila perdida. Lá dentro havia metralhadoras e granadas. Lisa acautelando-se
levou às costas uma das armas. No topo das escadas havia um corredor que dava
para várias salas. Lisa escutou vozes do fundo e aproximou-se.
Atrás da porta escutou a conversa. Dizia um para o outro:
-Andorinha, eles avançam pela ponte do sul. Temos algumas
horas apenas. É preciso estratégia, lá em baixo os homens estão a morrer. Eles
têm gente mais preparada.
-Meu primeiro chefe, estamos perdidos. Não sei quem os
lidera. Não recebemos qualquer comunicado deles. Nada disto estava previsto.
Vamos enviar um carro com dois homens para entrar em negociação.
- É arriscado Andorinha, eles atiram sem piedade.
-Não temos alternativa. Segue com a ordem.
-Sim Andorinha, acima e na frente, a vida!
Lisa escutou o homem dirigir-se à porta e escondeu-se na
sala do lado. O homem desceu e Lisa puxando da arma dirigiu-se à porta. Era
ele, João. Estava sozinho sentado numa grande secretária olhando da janela o
ataque do terreiro. Lisa falou, apontando-lhe a arma.
-João?
De cabelos desalinhados, virando a cabeça, olha-a espantado.
Levanta-se e Lisa recua reforçando a arma na sua direcção.
-Lisa! Que fazes aqui? E essa arma, apontada a mim porquê?
-Não sei mais quem és. Diz-me naquela noite drogaste-me?
-Lisa, tudo o que fiz foi para te proteger. Não queria que
estivesses na rua naquele dia. Muita gente foi apanhada no meio do tiroteio.
Lisa, eu amo-te.
-Mas porque estás envolvido nisto? És tu a cabeça deste
ataque?
-Lisa, senta-te e poisa a arma, não te vou fazer mal nenhum.
Se alguém entra e vê essa arma apontada a mim é capaz de atirar em ti. Por
favor faz o que te digo. Estava à tua espera, mas pensei o pior quando soube
que o carro foi apanhado.
Lisa pousou a arma e sentou-se na frente dele.
-Foram eles. Levaram-me para fora de Lisboa mas consegui
fugir.
-E conseguiste saber alguma coisa?
-Apenas que o chefe deles tem um anel com uma cobra. Eles
andam todos encapuçados e o uniforme é igual ao vosso, é uma confusão.
-Pois, eles eram nossos. Ele…só pode ser ele…o anel…agora
percebo.
-Percebes o quê? Tu sabes quem é ele? Mas explica qual é a
vossa intenção? Tanta violência era necessária? Estão a morrer civis nas ruas.
João olhou novamente pela janela com um olhar de tremenda
desilusão.
-Ele era o meu melhor amigo.
-O Fernando? Não pode ser…
-Não. Toda uma vida minha que não conhecias para te
proteger. Tive sempre receio de que não concordasses. O Elias sim era o meu
melhor amigo desde miúdos. Esse anel pertencia ao pai dele. Foi um grande
activista, esteve preso várias vezes no antigo regime. Mas porquê Elias?
-Sim…porquê esta traição?
-A nossa intenção era um golpe militar. Estamos há anos a
prepara-lo. E se não fosse este contratempo, estávamos agora com o país nas
mãos. Era nosso Lisa, entendes? – e os seus olhos brilharam deixando cair uma
lágrima.
-Sim, nosso, do povo queres dizer João? Diz-me que é do lado
do povo que estás?
-De quem mais podia ser Lisa?
-…do poder…
-Do poder? Onde ouviste isso?
-Da boca deles…
-Ah, agora faz sentido…ele queria governar. Enganou-me todo
este tempo. Sabia que não tinha meios nem financeiros nem humanos para iniciar
este movimento, aliou-se a mim e depois…
-E agora?
-Agora tudo muda de figura, eles têm um rosto e eu conheço
bem o ponto fraco dele.
-Conheces?
-Ele tem uma filha.
-Mas João tu não te atreverias? É uma criança?
-Lisa, os meus homens estão a morrer. Esta era a única
chance que o país tinha para darmos a volta…eu não lhe quero fazer mal…quero
usa-la. Todas as guerras têm danos colaterais…
-A quem o dizes…E onde está ela? Tens ideia?
-Tenho quase a certeza que estará com a avó…rápido, temos de
agir rapidamente, ele sabe que fugiste e por precaução pode ter mandado buscar
a miúda. Vens comigo? – e estendeu-lhe a mão.
Lisa sorriu - já que
não há mais nada de interessante para fazer nesta cidade… - riram-se ambos.
Cá fora seguiram num tanque, estariam mais seguros e João
foi dando as indicações. Lisa olhava-o com desejo e orgulho. Estava feliz
porque as suas intenções eram boas. Um pouco agressivas mas com bom fundo.
Também ela tinha em mente que uma revolução deste calibre não se faria com
cravos e que desta vez, se não fosse a sério, não seria de todo uma revolução.
O país caíra nas mãos de governantes absolutos, o povo não era senão escravo.
O tanque parou à porta do prédio. Lisa e João saíram encapuçados
e um homem armado seguiu-os. A porta abriu-se e uma senhora de xaile apareceu.
Lisa ao ver quem era deteve o braço de João em pânico.
-João é má ideia, vamos embora por favor.
-Mas como dizes? Estás-te a passar?
Os dois entraram, a senhora vendo-os de uniforme igual aos
outros pensou serem homens de Elias. Sem tirarem em momento algum o gorro,
entraram no quarto da miúda encaminhados pela senhora.
-Pai? – João tirou então o gorro.
-Não sou o teu pai mas tenho ordens para levar-te até ele.
Elisa nunca se revelou e sem proferir palavra levaram a
miúda com eles.
De volta ao terreiro,
das batalhas resultara um tanque a arder no centro da praça e vários homens de
volta dele tentando apagar o fogo. Na sala João falou para o outro que os
seguia.
-Levem a miúda para a sala das reuniões, deixem-lhe comida e
água – e aos ouvidos do outro - Fechem-na.
Lisa estava aterrorizada. A situação estava absolutamente
descontrolada, um beco sem saída mas desta vez não só a vida dela estava em
perigo. Não sabia se havia de dizer a verdade para proteger a criança. Não
sabia qual seria a reacção de João.
-João, por favor é uma criança.
-Mas o que é eu te deu quando lá entraste? Tu concordaste
com o plano.
-Eu sei mas quando a vi o meu coração disparou.
-Mais parece cenas de coração de mãe. Tu não és mãe dela
para quê tanta pena da criança, nem a conheces.
-Infelizmente…- Lisa começou a chorar – Há também uma parte
da minha vida que não conheces…
-O que queres dizer? Que conheces a miúda? Como?
-É uma história longa…e triste…
-Agora não temos tempo. Mais tarde. Vou enviar um homem com
mensagem a Elias. Tenho a filha dele e exijo a retirada dos homens dele ou
mato-a. Ele vai ceder.
-E se não ceder? Levas a tua avante?
-Achas? Não sou nenhum assassino…
-Todos nós podemos ser assassinos se a nossa vida estiver em
causa.
-Mas o que é que tu percebes disso?
-Eu sei do que estou a falar.
-A minha vida não está em perigo. Se não queres compactuar
com isto não atrapalhes. Tenho de ir lá abaixo falar com os homens. Ficas por
aí?
-Fico.
Lisa pensou imediatamente em proteger a menina. Depois dele
sair correu ao quarto dela. Pediu ao guarda para entrar.
-Maria!
-Mãe! – a menina correu aos braços dela – mãe! Porque estás
aqui? Onde está o pai? Mãe não apareces lá em casa há anos! Nem ao meu
aniversário foste! - a menina chorava agarrada a Lisa.
-Minha querida, por favor escuta com atenção. Nós duas temos
de partir. Não estamos seguras aqui – o rosto de Maria mudou afastando-se dos
braços da mãe.
-Não…não confio em ti, quero o meu pai, onde está ele? Quero
o meu pai – gritou.
-Maria por favor não faças barulho, lá fora está um guarda.
Escuta o que eu te digo, tens de vir comigo, não estás segura aqui – e segurando-a
pelo braço passou pela porta informando que tinha ordens do Andorinha para
levar a menina.
Saiu com a menina e o primeiro carro que apanhou com chave
meteu-se lá dentro e seguiu viagem. Lisa só queria sair da cidade, não
importava para onde mas tratava-se agora da segurança da filha e isso seria a
sua prioridade. Há anos que decidira não ter capacidade de cuidar dela e
entregara-a a Elias, que na altura dava pelo nome de Filipe. Durante o caminho
rezou para não serem abordadas por ninguém. Procurou fugir de ruas principais
até conseguir avistar placas que indicavam Norte. A sul sabia estar Elias.
No terreiro quando João regressou e procurou por Lisa,
percebendo ter sido traído também por ela e sem nenhuma explicação ficou
furioso e deu ordem de morte às duas se fossem encontradas. Quanto a Elias
decidiu manter a fachada de que tinha na sua posse a menina. Pretendia também
matá-lo assim que lhe tivesse a vista em cima. Sem Elias os seus antigos homens
regressariam a si e a revolução manter-se-ia nos trilhos planeados.
Lisa andou horas de carro com Maria até sentir que estava tão
profundamente perdida por aldeias que nem João nem Elias seriam capazes de a
encontrar. Tinha intenção de sair do país com ela e não mais regressar, pelo
menos enquanto não tivesse notícias de segurança. Foi conversando com Maria,
recuperando ou tentando reparar o tempo perdido…
-Maria, a minha vida foi tão complexa até há bem pouco tempo...
eu e o teu pai conhecemo-nos quando eu estava numa fase muito complicada…nem eu
me conseguia erguer quanto mais cuidar de uma criança. Perdoa-me por favor,
agora estou aqui e não vou nunca mais perder-te. Temos todo o tempo do mundo… -
E olhando para o relógio do carro e depois para Maria pensou – sinto-me em paz.
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