I
- a ideia de relógio dá-me paz - foi o seu último
pensamento antes de adormecer já a madrugada se levantava. Os sapatos
desalinhados junto à janela, onde estivera a fumar um cigarro olhando a rua
tranquila a essa hora. Nos últimos dias não usara relógio, não lhe apetecera -
o pulso requere liberdade.
Mas naquela noite o pensamento antagónico
tomou-lhe a ideia e sem o compreender ainda, deixou-se perder nele.
Na tarde que se seguiu acordou com a cabeça
pesada e uma sensação de cansaço, como se não tivesse sequer dormido. Lá fora o
tempo estava cinzento e as obras não estavam em andamento, estranhou. A
betoneira gigante mesmo por baixo da sua janela estava abandonada,
geralmente acordava com um carrossel de ruído, esses pulmões de respiração
circular e insuportavelmente continuada. Olhou então para o relógio.
-dormi demais.
Quando desceu para passear o cão passou pela
banca de jornais.
-bom dia Sr. Alfredo, essas notícias são boas? -
e de fugida os olhos pousaram nas capas do dia... - hoje é terça-feira?
-sim menina Lisa, bom dia só se for para
si...então hoje é terça, assim como ontem foi segunda e antes de ontem
domingo...a menina não sabe? A cidade está arder, eu nem devia estar aqui, mas
as pessoas querem ter notícias e os canais de televisão foram cortados.
O cérebro de Lisa estagnou na terça-feira e o cão
puxava pela trela perseguindo a cadela do outro lado da rua - como pude dormir
tantas horas? Hoje seria segunda-feira e...- como foi que disse Sr. Alfredo? A
cidade o quê?
- menina, não se sabe ainda em concreto nada,
veja aqui no Diário de Lisboa - Lisa olhou para uma imagem que cobria quase
toda a capa, era um incêndio na assembleia da república - ontem
houve vários ataques, dizem que eram mais tanques que carros na cidade, é só
descer a rua até à praça e pode ver que lá estão três estacionados e a praça da
junta é um penico! Diz aqui que várias testemunhas só tiveram tempo de fugir e
que homens encapuçados armados dispararam para tudo o que era polícia de
intervenção...uma calamidade, não se está seguro, volte para casa, se eu
pudesse era lá que estava rezando para que estes lunáticos fossem
detidos.
Lisa parou olhando na direção da praça. Aos seus
ouvidos as palavras de João quando se despediram de madrugada - dorme com os anjos,
amanhã será outro dia meu amor - será que João sabia de alguma coisa? Dormir
tantas horas nunca foi típico de si e passou-lhe pela cabeça que podia ter sido
drogada... - não, não é possível que ele tenha feito isso? Eu conheço-o há dois
anos, não tinha perfil nem para matar uma mosca...mas agora que pensava nisso,
imagens de armas...sim tinha por acaso aberto uma das gavetas do quarto dele e
um molho de folhas por baixo da caixa das mortalhas. Armas! Na altura não tinha
feito caso, todos os rapazes gostam destas coisas.
Deu uma curta volta com o cão e correu para casa.
Procurou o telefone. Nada, nem uma mensagem dele. Ao olhar o écran
percebeu que a rede era mínima, passeou pela casa tentando captar e nada. Sem
contacto e como dissera o Sr Alfredo, sem canais de televisão. Correu ao
rés-do-chão batendo na porta da vizinha. Ninguém. Voltou a casa, da janela
observou a rua. Nada, nem pássaros. Um silêncio perturbador. Esperou mais um
pouco e ouviu então duas vozes. Dois velhos vinham devagar pela rua, um deles
trazia um saco. Colocou a cabeça mais de fora para tentar perceber a conversa.
-...isto é só gente louca...sabe-se lá o que
querem, já estávamos mal agora então...assassinos!
Lisa sabia de rumores, há muito que se falava
disso, mas antes acreditava não passarem de rumores. Um bando de miúdos era só
isso o que as pessoas pensavam, murais com imagens de destruição e palavras de
libertação espalhadas pelas ruas que apareciam de manhã, autocarros queimados,
enfim...nunca se supôs que não fossem senão miúdos.
Foi ao quarto e vestiu um casaco preto e um
colocou um gorro na cabeça - preciso de saber.
Não sabia bem ao que ia mas queria saber o que se
passava do lado de dentro.
Desceu até à praça da junta. Cautelosa mas
convicta. Não havia homens armados na rua, dos tanques não se escutava mosca.
Mas ao aproximar, começou a ver a metralhadora movimentar-se na sua direção.
Levantou os braços e parou diante dela. Falou alto.
- quero falar com alguém!
O silêncio manteve-se e voltou a falar ainda mais
alto.
-quero falar com o vosso chefe...procuro o meu
namorado...João...chamam-lhe Andorinha.
E nem poucos segundos se seguiram quando no topo
do tanque central um homem encapuçado aparece à superfície. Armado aponta na
sua direção.
- Só podes estar louca, desanda daqui miúda,
queres morrer?
-Já disse o que pretendo! - Lisa tremia mas a sua
voz mantinha-se firme.
- Isto não é uma brincadeira, desanda! - e
disparou para o ar fazendo um bando de pássaros aparecerem no céu atordoados da
grande árvore da praça.
Lisa recuou um passo mas depois, avançou
dois.
-Andorinha! Quero falar com ele!
O homem saiu do tanque, era alto e forte, todo
vestido de negro e botas de combate. Avançou para ela como se a fosse atropelar.
Agarrou-lhe no braço, enfiou-lhe o gorro até ao pescoço e amarrou-lhe as mãos
atrás das costas com algo plástico que lhe cortava a pele. Lisa sentiu-se
atravessar uns metros para aquilo que julgou ser perto da porta da junta de
freguesia. Sentiu um degrau e depois escadas, empurrada por ele aos tropeções.
Escutou então as palavras.
- Diz que é namorada do Andorinha, o que faço
chefe primeiro?
Aqui Lisa teve a certeza de que o conheciam.
Fazia sentido.
-Leva-a para a baixa no carro onde vai o transmissor,
precisam dele daqui a uma hora. Rápido, não há tempo a perder, são as ordens.
-Sim chefe, acima e na frente, a Vida!
Estas palavras também lhe eram familiares. Estava
a procura na sua memória quando...- sim, nessa mesma gaveta, um envelope trazia
inscrita a frase - João, em que estarias tu metido! - Lisa sentiu-se a
entrar num veículo pessoal pelo toque dos bancos e a dimensão da porta.
- para a baixa - escutou - o carro está
carregado? temos ordem de rapidez!
- e esta?
- entrega-a ao Andorinha.
Lisa ficou preocupada e feliz ao mesmo tempo.
Iria vê-lo novamente. Estava vivo...e envolvido em tudo isto. Não sabia bem o
que lhe dizer quando o encontrasse e ocupou a sua mente no caminho escolhendo
as palavras mas sobretudo as perguntas.
Escutou o carro parar mas o motor não foi
desligado. Semáforos? Não, não iriam parar, não acreditava haver alma na rua
para além deles. E como um rasgo de violência aos seus ouvidos, escutou
disparar metralhadoras.
-Rápido! Atira neles pá!
-São muitos porra, não sei donde vieram! Estamos
só os dois! Estamos fodidos! Nesta zona não há reforço!
Lisa escutou balas a penetrarem o carro e temeu
pela sua vida. Nesse momento sim temeu.
-Vamos fugir! Vamos!
Escutou as portas abrirem-se e os homens a
correr. Ficara sozinha. Momentos depois alguém se aproximou...
-Deve ser alguém importante, vamos leva-la.
Foi metida dentro de outro veículo. A viagem
estava a parecer interminável, a ansiedade crescia a cada momento. Sentiu o
caminho aos engulhos e de fora escutavam-se pedras, pneus rolando sobre pedras
e buracos - estamos fora de Lisboa certamente - pensou. E o veículo finalmente
parou. Os homens levaram-na para dentro de uma casa e atiraram-na para um
quarto, retirando-lhe o gorro. Não conseguiu ver a cara deles que atrás de si
trancaram a porta. O quarto não tinha luxo nenhum. Uma janela com grades
apertadas onde apenas cabia um gato de passagem, uma cama de ferro sem lençóis
e uma mesa com uma cadeira. Mais nada! Nem as mãos lhe tinham desamarrado.
Entrou em pânico, isto era um rapto.
Da janela via campo. Descampado sem árvores -
parece um deserto - O dia estava quente e Lisa começou a sentir sede. De
vez em quando escutava carros lá fora, e pessoas a passar no corredor da casa.
Também escutava vozes várias mas não conseguia distinguir palavras.
Foi vendo lentamente o dia cair para a noite e
ninguém vinha ter consigo. Estava esfomeada, com sede e vontade de ir à casa de
banho mas tinha medo de que ao chama-los reagissem com agressividade. Na
verdade neste momento tinha medo de tudo. Fechada naquele quarto o seu
pensamento começou a viajar no tempo. E talvez porque o corpo estivesse tão
desesperado, a sua mente sentiu uma libertação como antes nunca sentira.
Há muito tempo que não dedicava tempo a pensar em
si e na vida que levava. Noites, empregos precários que se seguiam de outros,
namorados muitos até encontrar João - que estaria ele a fazer neste momento?
estaria preocupado consigo? quem era ele afinal? o pulso precisa de
libertação...esta frase voltou à sua cabeça...se tudo não passasse de um sonho
mau... - e sem se aperceber adormeceu de exaustão.
Na manhã seguinte Lisa acordou com um homem
encapuçado a abrir a porta, desamarrou-a e apontou-lhe a saída.
-A casa de banho é a segunda porta à esquerda.
Vou buscar o pequeno almoço, não adianta tentares fugir, o que não falta nesta
casa é gente armada e lá fora...bem...tens deserto à tua espera.
Lisa dirigiu-se à porta mas voltou a cabeça
- Quem são vocês e o que pretendem?
- Tudo a seu tempo...vai, estarei à tua espera
aqui com comida, tens fome não tens?
- Muita...
O corredor era longo e com muitas portas
fechadas. A meio estavam dois homens armados encostados que conversavam mas ao
vê-la calaram-se. As caras cobertas não percebiam pormenor e a roupa era tipo
uniforme, todos de igual, todos um mesmo. A casa de banho tinha papel e água,
Lisa passou as mãos na cara frente do espelho. Em volta nada havia que pudesse
servir-lhe de arma, apenas o espelho se fosse partido. Mas deteve-se. Até agora
não tinha sido agredida, um espelho partido faria barulho e podia ser alvo de
retaliação. Guardou como alternativa para mais tarde, se fosse necessário
estaria ali. Regressou ao quarto, o homem estava sentado na cama e na mesa
estava um tabuleiro com pão, café e ovos mexidos - tratam-se bem por aqui -
pensou. Comeu com sofreguidão, desde que acordara no dia anterior que nada
comera. E como o homem aguardava na cama falou-lhe.
-E agora vai-me explicar o que faço aqui?
-Isso queremos nós saber, porque razão estavas
naquele carro.
-Não sei...-pensou em proteger-se.
-Pensa bem, tens muitos dias pela frente neste
quarto que te ajudarão a refrescar a memória. O tempo pode ser um bom amigo.
-Já disse que não sei...
-Podes começar pelo início, como foste lá parar?
-Tinha ido com o meu cão à rua e dois homens
agarraram-me e meteram-me no carro, não sei porquê, não os conhecia...
-Vejo que precisas de mais tempo...voltarei ao
jantar - e olhando pela janela sorriu o que lhe pareceu malícia.
Quando a porta se fechou Lisa sentiu-se
desesperar. Eles não a iam deixar partir e não sabia o que fazer. Precisava de
estratégia. Mas inventar o quê? Não eram parvos certamente. Bebeu o resto do
café com a agonia de quem se sente encurralado e qualquer das saídas, negativas.
As horas pareciam não passar. De um lado para o
outro pensava. O que fazer? Deitou-se sobre a cama olhando o tecto. A casa
estava embolorada, devia ser bastante velha. Havia então dois lados de uma
guerra. Ela estava do lado errado? Isso era importante saber. Se é que há lados
certos numa guerra? Se os outros eram os libertadores, estes seriam os
libertadores dos libertadores? Haveria alguém de confiança e o João, afinal
porque estava ele envolvido? Muitas perguntas que não a ajudavam a decidir
caminho nenhum e por isso decidiu focar-se. Para sair daqui precisava de lhes
mostrar que tinha sido um equívoco, mas aqui também se colocava a hipótese de a
matarem por ser inútil. Teria de correr esse risco, se soubessem que estava
ligada a ele iriam usa-la como moeda de troca, sabe-se lá com que intenções.
Intenções...sim poderia começar por aí? Decidiu então chamar pelo homem.
Não demorou muito para que aparecesse, embora não
conseguisse saber se era o mesmo.
-Então? Estás pronta para contar tudo?
-Sim, eu irei contar a minha história mas, se
soubesse quem são e o que faziam na baixa sentia-me mais tranquila.
O homem riu-se - tranquila? tens uma lata miúda?
quem é que tu pensas que és para teres direito a alguma resposta, aqui quem faz
as perguntas somos nós.
- Compreendo, mas diga-me por favor, de que lado
estão?
- Lados? Acho que estás confusa, só há um lado
nesta história, o do poder!
- Mas...
- Mas nada, vamos, o que fazias naquele carro?
- É uma história longa...
-Tenho tempo minha querida...
Lisa preparou-se então para inventar uma novela
na qual ela estaria no local errado à hora errada assumindo os riscos de não
ser mais útil..
-Há um ano eu conheci a Lisa. Ela estava no
balcão de um bar no cais do Sodré bebendo um whisky. Tinha um vestido com
flores e o cabelo apanhado. Quando eu a vi pela primeira vez encantei-me...
-Miúda...não me vais fazer agora um romance
aquilino?
-Vejo que é um homem culto...para
guerrilheiro...gosta de ler? - Lisa queria ganhar tempo mas nem sabia
para quê...
-Avança..
- Então como estava a contar e como já deve ter
percebido eu gosto de mulheres...
O homem voltou a rir-se...
-Ninguém diria...sim e depois?
- Pois, não está na cara das pessoas as suas
preferências...sexuais...então eu conheci a Lisa e apaixonei-me. Conhecemo-nos
e envolvemo-nos. Só bastante tempo depois descobri que ela tinha um namorado.
Ela escondeu-me dele e ele de mim. Éramos três afinal, percebe? - o homem
abanou a cabeça com um ar de tédio - percebe agora? Eu estava no local errado à
hora errada. Quando aqueles homens entraram pela casa a dentro a Lisa tinha
saído para passear o cão. Sem perguntas encapuçaram-me e levaram-me naquele
carro onde vocês me encontraram na baixa. Eles tomaram-me como ela.
-Certo, pode até ser, mas porque queriam eles
leva-la? Quem é ela?
- A Lisa não é ninguém...que eu saiba...de
importante...mas o namorado talvez esteja ligado ao outro lado...é a minha
dedução...
- Seria a minha também mas acho essa história
muito rebuscada...
- Mas é a verdade...
- E se se desse o caso de tu seres a tal Lisa?
O homem não era nada parvo...
- Não, esta é a verdade...
- Se eu mandasse revistar a casa talvez fosse
mais fácil de confirmar...
Lisa entrou em pânico, não havia de facto
fotografias de ambos nas paredes ou em porta retratos mas era uma questão de
abrir o computador...e os seus documentos estavam na sua mala...a menos que o
João já lá tivesse ido...decidiu manter a história...dar-lhe-ia tempo...para
pensar numa fuga. Sim agora sabia o quanto era importante uma fuga.
O homem levantou-se.
- Mandarei homens revistarem a casa...se a tua
história for mentira...estás tramada...detestamos que nos façam de parvos
- e fechou a porta.
Lisa ficou em agonia. Procurava com todas as suas
forças transmitir pensamentos a João. Que lhe "limpasse" a casa, que
protegesse a sua identidade. A esta hora ele já saberia que ela estava na posse
deles. E se ele não se importasse com ela? Precisava de magicar uma fuga,
rapidamente. O espelho era um começo. Uma arma. Tinha pouco tempo, prepararia
um plano. Mas eles eram tantos...e todos pareciam o mesmo...era isso! Novamente
o plano seria assumir outra identidade...
Chamou então um deles pedindo para ir à casa de
banho. Levou o casaco vestido para que servisse de silenciador quando quebrasse
o espelho. No regresso já trazia consigo um pedaço escondido suficiente para
cortar uma garganta. No quarto, esperou alguns minutos e voltou a chamar por
alguém. O homem entrou e Lisa atrás da porta num ápice cortou-lhe a
garganta...olhando para o sangue nas suas mãos enojou-se de si mesma...uma
assassina...qualquer um de nós pode ser um assassino...e lembrou-se da frase de
João...acima e na frente, a vida! A sua vida. Vestiu rapidamente as roupas do
homem e enfiou o gorro tapando a sua cara. Fisicamente era bem menos robusta,
mas em altura tivera sorte, o homem era minorca.
Esperava passar despercebida até alcançar o
exterior. Pegou na metralhadora e saiu para o corredor trancando a porta.
Passou pelo colega que a esperava e fez sinal de que tinha algo para transmitir
a alguém superior, o outro aceitou e ela seguiu. Quando ficou fora do alcance
da vista dele procurou pela saída, não se deixando ver por mais nenhum dos
outros. Passou por uma porta entreaberta, de relance porque não era prioridade,
espreitou.
Lá dentro uma mesa redonda e à sua volta vários
homens. Não conseguia reconhecer nenhum porque também tinham a cara tapada mas
claramente que um deles seria o chefe. Era o único que estava sentado e tinha
na mão esquerda um grande anel com um desenho...uma cobra...talvez fosse, não
conseguia bem perceber. Seguiu, não tinha mais tempo. Sentindo alguém na sua
direção escondeu-se e conseguiu ver que este ao passar pela porta da saída fez
continência ao que lá estava, com o braço esquerdo. Assim iria fazer também para
passar. E passou.
Cá fora procurou por carros ou qualquer coisa
motorizada que lhe agilizasse a ida. Não sabia para onde mas seguir era o mais
importante. Num casão do lado direito da casa estavam os carros. Esgueirou-se e
procurou um que tivesse chave - era nestas alturas que me dava jeito ter
crescido num bairro, saber fazer ligação direta - procurou e um deles tinha de
facto chave. Entrou, rodou e o carro pegou. Sempre com muita calma, dirigiu-se
ao portão da saída. No banco do companheiro estava um envelope com o tal
símbolo da cobra enrolada. Quando passou pelo colega do portão ergueu o
envelope para que pensasse que ia em missão. O outro deu-lhe passagem e seguiu.
Como pôde ser tão fácil? Não foi, foi uma loucura acompanhada de assassinato
mas lá estava ela, seguindo caminho esperando ter gasolina porque perdida
estava certamente.
Soltou a cabeça do gorro e sentiu os cabelos ao
vento. Como lhe sabia bem a liberdade. Estava viva!
Á sua volta era só areia e deserto. Não
reconhecia a paisagem e não tinha ideia do caminho à ida ter sido tão longo
assim. Não fazia a mínima ideia de onde estava. O caminho tinha várias
bifurcações sem placas e nada se avistava ao horizonte. Onde estará
Lisboa?
Algumas horas depois começou a sentir o chão
diferente. Nos pneus buracos e pedras. Sim, tinha a certeza de estar no rumo
certo. Pouco mais à frente avistou então casas e a estrada passou a alcatrão.
Era altura de abandonar o carro, seria reconhecido. Seguiu a pé entrando de
soslaio na aldeia. No estendal de alguém havia roupa seca e aproveitou para
mudar-se. Assim seria bem mais fácil. Desde criança que quase não saíra de
Lisboa e reconhecia agora a falta orientação. Passou por um café e vendo gente
normal lá dentro, entrou.
- Boa tarde, seria possível indicar-me a direção
de Lisboa?
-A menina não iria querer ir para lá...está para
lá uma grande guerra e não tarda está aí também...Anda tudo apavorado!
-Desculpe insistir mas preciso mesmo de ir para
lá, pode ajudar-me?
O senhor tinha já bastante idade pelo branco das
suas barbas e o andar arrastado. Saiu detrás do balcão e veio à porta
apontando.
-Tem que ir para Norte, naquela direção...não é
muito longe mas se vai a pé prepare-se para umas longas horas de
caminhada...antes havia autocarros mas estão bloqueados, ninguém quer ir para
lá...e quem lá tem família reza todos os dias...Espere - E regressou com um
saco de comida - Boa Sorte!
Lisa agradeceu.
A noite começou a cair uma vez mais. Os pés doíam
nas botas ainda de combate ligeiramente grandes do outro. Pensou ser mais
seguro abrigar-se para passar a noite. Seria perigoso caminhar assim sozinha no
escuro. Embrulhou-se nas searas que lhe chegavam à cintura, embora tivesse
receio de bichos, tinha mais receio de ser abordada por alguém de noite. Os
homens são mais agressivos que os bichos. Olhando as estrelas, pensou - a
solidão é isto, estar no meio do nada olhando o céu em silêncio. Esperava
ansiosamente por regressar a Lisboa. Tentaria procurar por João na Baixa. E uma
estrela caiu do céu - será um sinal? Quando íamos para o alto ver as estrelas
com o telescópio dele...e ele dizia que uma estrela cadente era a morte
anunciada de uma alma que não queria mais viver.
Apontou o caminho que a estrela fizera e ao olhar
as suas mãos, viu novamente o sangue do outro... - uma assassina... - será a
sobrevivência uma causa justa para retirar a vida a alguém? - Lisa procurou
afastar estes pensamentos da cabeça. Muito em breve estaria em Lisboa, isso era
tudo o que importava agora.
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