terça-feira, 12 de agosto de 2014

Rostos de uma Revolução, Parte I

I


- a ideia de relógio dá-me paz - foi o seu último pensamento antes de adormecer já a madrugada se levantava. Os sapatos desalinhados junto à janela, onde estivera a fumar um cigarro olhando a rua tranquila a essa hora. Nos últimos dias não usara relógio, não lhe apetecera - o pulso requere liberdade. 
Mas naquela noite o pensamento antagónico tomou-lhe a ideia e sem o compreender ainda, deixou-se perder nele.


Na tarde que se seguiu acordou com a cabeça pesada e uma sensação de cansaço, como se não tivesse sequer dormido. Lá fora o tempo estava cinzento e as obras não estavam em andamento, estranhou. A betoneira gigante mesmo por baixo da sua janela estava abandonada,  geralmente acordava com um carrossel de ruído, esses pulmões de respiração circular e insuportavelmente continuada. Olhou então para o relógio.
-dormi demais. 

Quando desceu para passear o cão passou pela banca de jornais. 
-bom dia Sr. Alfredo, essas notícias são boas? - e de fugida os olhos pousaram nas capas do dia... - hoje é terça-feira? 
-sim menina Lisa, bom dia só se for para si...então hoje é terça, assim como ontem foi segunda e antes de ontem domingo...a menina não sabe? A cidade está arder, eu nem devia estar aqui, mas as pessoas querem ter notícias e os canais de televisão foram cortados. 

O cérebro de Lisa estagnou na terça-feira e o cão puxava pela trela perseguindo a cadela do outro lado da rua - como pude dormir tantas horas? Hoje seria segunda-feira e...- como foi que disse Sr. Alfredo? A cidade o quê?
- menina, não se sabe ainda em concreto nada, veja aqui no Diário de Lisboa - Lisa olhou para uma imagem que cobria quase toda a capa, era um incêndio na assembleia da república  -  ontem houve vários ataques, dizem que eram mais tanques que carros na cidade, é só descer a rua até à praça e pode ver que lá estão três estacionados e a praça da junta é um penico! Diz aqui que várias testemunhas só tiveram tempo de fugir e que homens encapuçados armados dispararam para tudo o que era polícia de intervenção...uma calamidade, não se está seguro, volte para casa, se eu pudesse era lá que estava rezando para que estes lunáticos fossem detidos. 

Lisa parou olhando na direção da praça. Aos seus ouvidos as palavras de João quando se despediram de madrugada - dorme com os anjos, amanhã será outro dia meu amor - será que João sabia de alguma coisa? Dormir tantas horas nunca foi típico de si e passou-lhe pela cabeça que podia ter sido drogada... - não, não é possível que ele tenha feito isso? Eu conheço-o há dois anos, não tinha perfil nem para matar uma mosca...mas agora que pensava nisso, imagens de armas...sim tinha por acaso aberto uma das gavetas do quarto dele e um molho de folhas por baixo da caixa das mortalhas. Armas! Na altura não tinha feito caso, todos os rapazes gostam destas coisas. 

Deu uma curta volta com o cão e correu para casa. Procurou o telefone. Nada, nem uma mensagem dele.  Ao olhar o écran percebeu que a rede era mínima, passeou pela casa tentando captar e nada. Sem contacto e como dissera o Sr Alfredo, sem canais de televisão. Correu ao rés-do-chão batendo na porta da vizinha. Ninguém. Voltou a casa, da janela observou a rua. Nada, nem pássaros. Um silêncio perturbador. Esperou mais um pouco e ouviu então duas vozes. Dois velhos vinham devagar pela rua, um deles trazia um saco. Colocou a cabeça mais de fora para tentar perceber a conversa.
-...isto é só gente louca...sabe-se lá o que querem, já estávamos mal agora então...assassinos!

Lisa sabia de rumores, há muito que se falava disso, mas antes acreditava não passarem de rumores. Um bando de miúdos era só isso o que as pessoas pensavam, murais com imagens de destruição e palavras de libertação espalhadas pelas ruas que apareciam de manhã, autocarros queimados, enfim...nunca se supôs que não fossem senão miúdos.  
Foi ao quarto e vestiu um casaco preto e um colocou um gorro na cabeça - preciso de saber. 
Não sabia bem ao que ia mas queria saber o que se passava do lado de dentro. 

Desceu até à praça da junta. Cautelosa mas convicta. Não havia homens armados na rua, dos tanques não se escutava mosca. Mas ao aproximar, começou a ver a metralhadora movimentar-se na sua direção. Levantou os braços e parou diante dela. Falou alto.
- quero falar com alguém!

O silêncio manteve-se e voltou a falar ainda mais alto.
-quero falar com o vosso chefe...procuro o meu namorado...João...chamam-lhe Andorinha.

E nem poucos segundos se seguiram quando no topo do tanque central um homem encapuçado aparece à superfície. Armado aponta na sua direção.
- Só podes estar louca, desanda daqui miúda, queres morrer?
-Já disse o que pretendo! - Lisa tremia mas a sua voz mantinha-se firme.
- Isto não é uma brincadeira, desanda!  - e disparou para o ar fazendo um bando de pássaros aparecerem no céu atordoados da grande árvore da praça.
Lisa recuou um passo mas depois, avançou dois. 
-Andorinha! Quero falar com ele!

O homem saiu do tanque, era alto e forte, todo vestido de negro e botas de combate. Avançou para ela como se a fosse atropelar. Agarrou-lhe no braço, enfiou-lhe o gorro até ao pescoço e amarrou-lhe as mãos atrás das costas com algo plástico que lhe cortava a pele. Lisa sentiu-se atravessar uns metros para aquilo que julgou ser perto da porta da junta de freguesia. Sentiu um degrau e depois escadas, empurrada por ele aos tropeções. Escutou então as palavras.
- Diz que é namorada do Andorinha, o que faço chefe primeiro?
Aqui Lisa teve a certeza de que o conheciam. Fazia sentido.
-Leva-a para a baixa no carro onde vai o transmissor, precisam dele daqui a uma hora. Rápido, não há tempo a perder, são as ordens.
-Sim chefe, acima e na frente, a Vida!

Estas palavras também lhe eram familiares. Estava a procura na sua memória quando...- sim, nessa mesma gaveta, um envelope trazia inscrita a frase - João, em que estarias tu metido!  - Lisa sentiu-se a entrar num veículo pessoal pelo toque dos bancos e a dimensão da porta.
- para a baixa - escutou - o carro está carregado? temos ordem de rapidez!
- e esta? 
- entrega-a ao Andorinha.

Lisa ficou preocupada e feliz ao mesmo tempo. Iria vê-lo novamente. Estava vivo...e envolvido em tudo isto. Não sabia bem o que lhe dizer quando o encontrasse e ocupou a sua mente no caminho escolhendo as palavras mas sobretudo as perguntas.

Escutou o carro parar mas o motor não foi desligado. Semáforos? Não, não iriam parar, não acreditava haver alma na rua para além deles. E como um rasgo de violência aos seus ouvidos, escutou disparar metralhadoras. 
-Rápido! Atira neles pá! 
-São muitos porra, não sei donde vieram! Estamos só os dois! Estamos fodidos! Nesta zona não há reforço!
Lisa escutou balas a penetrarem o carro e temeu pela sua vida. Nesse momento sim temeu. 
-Vamos fugir! Vamos!
Escutou as portas abrirem-se e os homens a correr. Ficara sozinha. Momentos depois alguém se aproximou...
-Deve ser alguém importante, vamos leva-la.


Foi metida dentro de outro veículo. A viagem estava a parecer interminável, a ansiedade crescia a cada momento. Sentiu o caminho aos engulhos e de fora escutavam-se pedras, pneus rolando sobre pedras e buracos - estamos fora de Lisboa certamente - pensou. E o veículo finalmente parou. Os homens levaram-na para dentro de uma casa e atiraram-na para um quarto, retirando-lhe o gorro. Não conseguiu ver a cara deles que atrás de si trancaram a porta. O quarto não tinha luxo nenhum. Uma janela com grades apertadas onde apenas cabia um gato de passagem, uma cama de ferro sem lençóis e uma mesa com uma cadeira. Mais nada! Nem as mãos lhe tinham desamarrado. Entrou em pânico, isto era um rapto. 
Da janela via campo. Descampado sem árvores - parece um deserto -  O dia estava quente e Lisa começou a sentir sede. De vez em quando escutava carros lá fora, e pessoas a passar no corredor da casa. Também escutava vozes várias mas não conseguia distinguir palavras.
Foi vendo lentamente o dia cair para a noite e ninguém vinha ter consigo. Estava esfomeada, com sede e vontade de ir à casa de banho mas tinha medo de que ao chama-los reagissem com agressividade. Na verdade neste momento tinha medo de tudo. Fechada naquele quarto o seu pensamento começou a viajar no tempo. E talvez porque o corpo estivesse tão desesperado, a sua mente sentiu uma libertação como antes nunca sentira. 
Há muito tempo que não dedicava tempo a pensar em si e na vida que levava. Noites, empregos precários que se seguiam de outros, namorados muitos até encontrar João - que estaria ele a fazer neste momento? estaria preocupado consigo? quem era ele afinal? o pulso precisa de libertação...esta frase voltou à sua cabeça...se tudo não passasse de um sonho mau...  - e sem se aperceber adormeceu de exaustão. 

Na manhã seguinte Lisa acordou com um homem encapuçado a abrir a porta, desamarrou-a e apontou-lhe a saída.
-A casa de banho é a segunda porta à esquerda. Vou buscar o pequeno almoço, não adianta tentares fugir, o que não falta nesta casa é gente armada e lá fora...bem...tens deserto à tua espera. 
Lisa dirigiu-se à porta mas voltou a cabeça
- Quem são vocês e o que pretendem?
- Tudo a seu tempo...vai, estarei à tua espera aqui com comida, tens fome não tens? 
- Muita...

O corredor era longo e com muitas portas fechadas. A meio estavam dois homens armados encostados que conversavam mas ao vê-la calaram-se. As caras cobertas não percebiam pormenor e a roupa era tipo uniforme, todos de igual, todos um mesmo. A casa de banho tinha papel e água, Lisa passou as mãos na cara frente do espelho. Em volta nada havia que pudesse servir-lhe de arma, apenas o espelho se fosse partido. Mas deteve-se. Até agora não tinha sido agredida, um espelho partido faria barulho e podia ser alvo de retaliação. Guardou como alternativa para mais tarde, se fosse necessário estaria ali. Regressou ao quarto, o homem estava sentado na cama e na mesa estava um tabuleiro com pão, café e ovos mexidos - tratam-se bem por aqui - pensou. Comeu com sofreguidão, desde que acordara no dia anterior que nada comera. E como o homem aguardava na cama falou-lhe.

-E agora vai-me explicar o que faço aqui?
-Isso queremos nós saber, porque razão estavas naquele carro.
-Não sei...-pensou em proteger-se.
-Pensa bem, tens muitos dias pela frente neste quarto que te ajudarão a refrescar a memória. O tempo pode ser um bom amigo.
-Já disse que não sei...
-Podes começar pelo início, como foste lá parar?
-Tinha ido com o meu cão à rua e dois homens agarraram-me e meteram-me no carro, não sei porquê, não os conhecia...
-Vejo que precisas de mais tempo...voltarei ao jantar - e olhando pela janela sorriu o que lhe pareceu malícia.

Quando a porta se fechou Lisa sentiu-se desesperar. Eles não a iam deixar partir e não sabia o que fazer. Precisava de estratégia. Mas inventar o quê? Não eram parvos certamente. Bebeu o resto do café com a agonia de quem se sente encurralado e qualquer das saídas, negativas. 
As horas pareciam não passar. De um lado para o outro pensava. O que fazer? Deitou-se sobre a cama olhando o tecto. A casa estava embolorada, devia ser bastante velha. Havia então dois lados de uma guerra. Ela estava do lado errado? Isso era importante saber. Se é que há lados certos numa guerra? Se os outros eram os libertadores, estes seriam os libertadores dos libertadores? Haveria alguém de confiança e o João, afinal porque estava ele envolvido? Muitas perguntas que não a ajudavam a decidir caminho nenhum e por isso decidiu focar-se. Para sair daqui precisava de lhes mostrar que tinha sido um equívoco, mas aqui também se colocava a hipótese de a matarem por ser inútil. Teria de correr esse risco, se soubessem que estava ligada a ele iriam usa-la como moeda de troca, sabe-se lá com que intenções. Intenções...sim poderia começar por aí? Decidiu então chamar pelo homem.

Não demorou muito para que aparecesse, embora não conseguisse saber se era o mesmo.
-Então? Estás pronta para contar tudo?
-Sim, eu irei contar a minha história mas, se soubesse quem são e o que faziam na baixa sentia-me mais tranquila.
O homem riu-se - tranquila? tens uma lata miúda? quem é que tu pensas que és para teres direito a alguma resposta, aqui quem faz as perguntas somos nós.
- Compreendo, mas diga-me por favor, de que lado estão?
- Lados? Acho que estás confusa, só há um lado nesta história, o do poder! 
- Mas...
- Mas nada, vamos, o que fazias naquele carro?
- É uma história longa...
-Tenho tempo minha querida...

Lisa preparou-se então para inventar uma novela na qual ela estaria no local errado à hora errada assumindo os riscos de não ser mais útil..

-Há um ano eu conheci a Lisa. Ela estava no balcão de um bar no cais do Sodré bebendo um whisky. Tinha um vestido com flores e o cabelo apanhado. Quando eu a vi pela primeira vez encantei-me...
-Miúda...não me vais fazer agora um romance aquilino?
-Vejo que é um homem culto...para guerrilheiro...gosta de ler?  - Lisa queria ganhar tempo mas nem sabia para quê...
-Avança..
- Então como estava a contar e como já deve ter percebido eu gosto de mulheres...
O homem voltou a rir-se...
-Ninguém diria...sim e depois?
- Pois, não está na cara das pessoas as suas preferências...sexuais...então eu conheci a Lisa e apaixonei-me. Conhecemo-nos e envolvemo-nos. Só bastante tempo depois descobri que ela tinha um namorado. Ela escondeu-me dele e ele de mim. Éramos três afinal, percebe? - o homem abanou a cabeça com um ar de tédio - percebe agora? Eu estava no local errado à hora errada. Quando aqueles homens entraram pela casa a dentro a Lisa tinha saído para passear o cão. Sem perguntas encapuçaram-me e levaram-me naquele carro onde vocês me encontraram na baixa. Eles tomaram-me como ela. 
-Certo, pode até ser, mas porque queriam eles leva-la? Quem é ela?
- A Lisa não é ninguém...que eu saiba...de importante...mas o namorado talvez esteja ligado ao outro lado...é a minha dedução...
- Seria a minha também mas acho essa história muito rebuscada...
- Mas é a verdade...
- E se se desse o caso de tu seres a tal Lisa?
O homem não era nada parvo...
- Não, esta é a verdade...
- Se eu mandasse revistar a casa talvez fosse mais fácil de confirmar...

Lisa entrou em pânico, não havia de facto fotografias de ambos nas paredes ou em porta retratos mas era uma questão de abrir o computador...e os seus documentos estavam na sua mala...a menos que o João já lá tivesse ido...decidiu manter a história...dar-lhe-ia tempo...para pensar numa fuga. Sim agora sabia o quanto era importante uma fuga. 

O homem levantou-se.
- Mandarei homens revistarem a casa...se a tua história for mentira...estás tramada...detestamos que nos façam de parvos  - e fechou a porta.

Lisa ficou em agonia. Procurava com todas as suas forças transmitir pensamentos a João. Que lhe "limpasse" a casa, que protegesse a sua identidade. A esta hora ele já saberia que ela estava na posse deles. E se ele não se importasse com ela? Precisava de magicar uma fuga, rapidamente. O espelho era um começo. Uma arma. Tinha pouco tempo, prepararia um plano. Mas eles eram tantos...e todos pareciam o mesmo...era isso! Novamente o plano seria assumir outra identidade...

Chamou então um deles pedindo para ir à casa de banho. Levou o casaco vestido para que servisse de silenciador quando quebrasse o espelho. No regresso já trazia consigo um pedaço escondido suficiente para cortar uma garganta. No quarto, esperou alguns minutos e voltou a chamar por alguém. O homem entrou e Lisa atrás da porta num ápice cortou-lhe a garganta...olhando para o sangue nas suas mãos enojou-se de si mesma...uma assassina...qualquer um de nós pode ser um assassino...e lembrou-se da frase de João...acima e na frente, a vida! A sua vida. Vestiu rapidamente as roupas do homem e enfiou o gorro tapando a sua cara. Fisicamente era bem menos robusta, mas em altura tivera sorte, o homem era minorca. 
Esperava passar despercebida até alcançar o exterior. Pegou na metralhadora e saiu para o corredor trancando a porta. Passou pelo colega que a esperava e fez sinal de que tinha algo para transmitir a alguém superior, o outro aceitou e ela seguiu. Quando ficou fora do alcance da vista dele procurou pela saída, não se deixando ver por mais nenhum dos outros. Passou por uma porta entreaberta, de relance porque não era prioridade, espreitou. 
Lá dentro uma mesa redonda e à sua volta vários homens. Não conseguia reconhecer nenhum porque também tinham a cara tapada mas claramente que um deles seria o chefe. Era o único que estava sentado e tinha na mão esquerda um grande anel com um desenho...uma cobra...talvez fosse, não conseguia bem perceber. Seguiu, não tinha mais tempo. Sentindo alguém na sua direção escondeu-se e conseguiu ver que este ao passar pela porta da saída fez continência ao que lá estava, com o braço esquerdo. Assim iria fazer também para passar. E passou. 
Cá fora procurou por carros ou qualquer coisa motorizada que lhe agilizasse a ida. Não sabia para onde mas seguir era o mais importante. Num casão do lado direito da casa estavam os carros. Esgueirou-se e procurou um que tivesse chave - era nestas alturas que me dava jeito ter crescido num bairro, saber fazer ligação direta - procurou e um deles tinha de facto chave. Entrou, rodou e o carro pegou. Sempre com muita calma, dirigiu-se ao portão da saída. No banco do companheiro estava um envelope com o tal símbolo da cobra enrolada. Quando passou pelo colega do portão ergueu o envelope para que pensasse que ia em missão. O outro deu-lhe passagem e seguiu. Como pôde ser tão fácil? Não foi, foi uma loucura acompanhada de assassinato mas lá estava ela, seguindo caminho esperando ter gasolina porque perdida estava certamente. 
Soltou a cabeça do gorro e sentiu os cabelos ao vento. Como lhe sabia bem a liberdade. Estava viva!
Á sua volta era só areia e deserto. Não reconhecia a paisagem e não tinha ideia do caminho à ida ter sido tão longo assim. Não fazia a mínima ideia de onde estava. O caminho tinha várias bifurcações sem placas e nada se avistava ao horizonte. Onde estará Lisboa? 

Algumas horas depois começou a sentir o chão diferente. Nos pneus buracos e pedras. Sim, tinha a certeza de estar no rumo certo. Pouco mais à frente avistou então casas e a estrada passou a alcatrão. Era altura de abandonar o carro, seria reconhecido. Seguiu a pé entrando de soslaio na aldeia. No estendal de alguém havia roupa seca e aproveitou para mudar-se. Assim seria bem mais fácil. Desde criança que quase não saíra de Lisboa e reconhecia agora a falta orientação. Passou por um café e vendo gente normal lá dentro, entrou. 
- Boa tarde, seria possível indicar-me a direção de Lisboa?
-A menina não iria querer ir para lá...está para lá uma grande guerra e não tarda está aí também...Anda tudo apavorado!
-Desculpe insistir mas preciso mesmo de ir para lá, pode ajudar-me?
O senhor tinha já bastante idade pelo branco das suas barbas e o andar arrastado. Saiu detrás do balcão e veio à porta apontando.
-Tem que ir para Norte, naquela direção...não é muito longe mas se vai a pé prepare-se para umas longas horas de caminhada...antes havia autocarros mas estão bloqueados, ninguém quer ir para lá...e quem lá tem família reza todos os dias...Espere - E regressou com um saco de comida - Boa Sorte!
Lisa agradeceu. 

A noite começou a cair uma vez mais. Os pés doíam nas botas ainda de combate ligeiramente grandes do outro. Pensou ser mais seguro abrigar-se para passar a noite. Seria perigoso caminhar assim sozinha no escuro. Embrulhou-se nas searas que lhe chegavam à cintura, embora tivesse receio de bichos, tinha mais receio de ser abordada por alguém de noite. Os homens são mais agressivos que os bichos. Olhando as estrelas, pensou - a solidão é isto, estar no meio do nada olhando o céu em silêncio. Esperava ansiosamente por regressar a Lisboa. Tentaria procurar por João na Baixa. E uma estrela caiu do céu - será um sinal? Quando íamos para o alto ver as estrelas com o telescópio dele...e ele dizia que uma estrela cadente era a morte anunciada de uma alma que não queria mais viver. 
Apontou o caminho que a estrela fizera e ao olhar as suas mãos, viu novamente o sangue do outro... - uma assassina... - será a sobrevivência uma causa justa para retirar a vida a alguém? - Lisa procurou afastar estes pensamentos da cabeça. Muito em breve estaria em Lisboa, isso era tudo o que importava agora. 








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