sábado, 23 de agosto de 2014

33



I



Nesse dia faria 33 anos.
Depois desse dia, o número colara-se a si como lapa. Para todo o lado, onde quer que fosse o número aparecia ao seu olhar. Das primeiras vezes riu-se achando curioso, depois começou a preocupa-la. Teria algum significado? Seria prenuncio de algum acontecimento? Ela não era nem particularmente religiosa nem particularmente ateia. Acreditava na natureza e num certo equilíbrio entre o bem e o mal. No entanto, desde criança, tinha longas conversas com Deus. Devido à sua educação, ou das crianças que a rodeavam, Deus tinha para si o rosto de Cristo, tal e qual aquelas imagens que se viam nas igrejas. 
Algumas vezes tinha ido à missa por companhia da sua melhor amiga, mas não com a sua própria família, o pai dissera-lhe "quando tiveres 18 anos escolhes a tua própria religião", por este motivo não era baptizada, coisa rara entre os seus colegas de escola. Por parte do pai, criado em colégio de padres, não seria de estranhar esta atitude, por parte da mãe que concordava plenamente, havia uma cultura de comunismo que via a religião como cegueira e entrave ao conhecimento e desenvolvimento humano. Mais tarde, quando o pai voltou a casar, os seus irmãos foram baptizados e a mãe, recorda-se de na sua adolescência ouvi-la dizer "não sei onde errei, talvez se tivessem tido uma educação mais religiosa, talvez fossem mais pacíficas e tivessem outros valores de família", isto numa época conturbada de discussões diárias em casa. As coisas mudam, as pessoas mudam de ideias. Mas em si, dentro de si, ainda hoje agradece esta liberdade. Talvez por este motivo, tenha criado na sua cabeça uma religião só sua, individual. 

Recorda-se dessas missas como se fossem hoje. Era ainda menina. Recorda-se de ter recebido de presente da mãe da amiga um missal com capa de couro bordado a ouro. O cheiro quando o abria trazia-lhe um conforto que só podia ser pacífico e pleno. Assim via a religião nessa altura. Pacífica e plena. A parte que mais gostava da missa era o sermão do padre. Aos seus ouvidos, histórias de embalar. Lembra ainda hoje a voz dele tão nitidamente como se de alguma estrela pop se tratasse. Mas era uma voz calma e monocórdica que a adormecia poeticamente, deambulava na missa como se estivesse numa casca de noz boiando num rio que lentamente se aproxima do mar. O mar mais abruptamente irado era a parte dos abraços, essa era a parte que lhe fazia confusão, os abraços e os beijos ao próximo. "Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: Acautelai-vos dos falsos profetas".  Não conhecia o próximo de lado nenhum e sentia vontade de abraçar a sua mãe, de estar em casa para o almoço de Domingo, mas não estava, raramente estava. Fora sempre uma criança do mundo, passeava de casa em casa, ora familiares seus ora amigas, semanas inteiras sem sentir qualquer saudade de casa. Aborrecia-lhe estar muito tempo no mesmo lugar. 

Também era estranha a parte em que todos iam à hóstia menos ela. Não tinha direito ao corpo de Cristo, ao corpo sem pecado. Nessa altura ainda não, mas hoje tem a certeza de preferir o sangue de Deus, com ou sem pecado, o vinho só pode ser um composto celestial de virtude. In vino veritas. De todo, verdade. 

Desde muito cedo, soube o que era estar e não estar, estar e não pertencer. Por esses tempos ouvia falar no pecado, mas sobre isso nada conhecia e por isso, nada lhe diziam as palavras de ameaça de castigo ou punição. Hoje reflectindo sobre isso considera um absurdo sem necessária uma entidade castradora exterior para controlar ou catalogar os seus actos, tem aquilo que se chama de consciência e reflexão. E se comete pecados, aos olhos de Deus, do seu Deus, não serão senão tentativas de ser feliz. É sobretudo humanista mas em momentos de desespero lá vai buscar a Deus, ao seu Deus, o conforto da palavra divina. 
Nos bons momentos, secretamente, agradece-lhe. Uma religião simplista, para complexa basta a vida. 

33. Nesse ano todas estas questões vieram-lhe ao pensamento. Possivelmente como uma procura de resposta que justificasse a presença constante do número. Provavelmente também porque assim que fez os 33 anos ouviu de seu pai "tens agora a idade de Cristo". João 3:3; Jesus respondeu e disse-lhe "Na verdade te digo que aquele que não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus". Jesus realizou 33 milagres. Morte, ressurreição e ascensão. Sabe também que foi a idade de Alexandre o Grande. O Rei David reinou durante 33 anos em Jerusalém e Jacob tinha 33 filhos. Para o profeta Al-Ghazali os habitantes do céu terão eternamente 33 anos. É a representação numérica da Estrela de David, na qual no hinduísmo, cada ângulo representa um Deus da Trindade: o criador, o preservador e o destruidor. O papa João Paulo I esteve apenas 33 dias como tal e a Virgem Maria é também conhecida como Nossa Senhora dos 33 no Uruguai, em memória dos 33 soldados da libertação do Brasil. 
É a morte do materialismo 3D para o espiritualismo, 4D.
É o número de vértebras que o ser humano tem na coluna. "A mente é como um cume de ouro que encima o corpo físico. Pela escadaria da coluna vertebral, a energia sobe e desce, circulando, unindo a mente celeste ao corpo físico. O corpo é de facto um templo. Quando o teu olho for bom, o teu corpo terá luz", Mateus 6:22.  É ainda o número de voltas completas na sequência do nosso DNA.
É à escala de Newton a temperatura à qual a água ferve
É o último grau da Maçonaria: Soberano Grande Inspector Geral. São 33 os símbolos da Maçonaria.  É a esfera de mais difícil acesso e cujo significado é revelado aos magos, "iluminados" e aos santos. 
Na literatura Dante na "Divina Comédia" dedica 33 cantos ao purgatório, 33 cantos ao inferno e 33 cantos ao paraíso. São ainda 33 os ciclos lunares da gestação.

Mas vamos ao lado negativo do número. É o símbolo do Ku Klux Klan (k é a 11ª letra do alfabeto, vezes 3, encontramos o 33). É o número atómico do Arsénio, letal. E, se o número 333 é a divindade e a ascensão ao conhecimento pleno espiritual de Deus, querer estar acima de Deus, é entendido como presunçoso e estamos perante o número 666, associando ao Anticristo. 

Se isolarmos o número 3 encontramos também os três poderes (jurídico, executivo e legislativo), a chave da democracia, sendo o número mínimo de pessoas para aprovar uma decisão. Freud fala-nos do complexo de Édipo, uma trilogia essencial para o crescimento humano pai-mãe-criança, no entanto, para outros autores como Frankl, Freud terá negligenciado a verdadeira terceira dimensão, a espiritual, completando a biológica e a psicológica. A pessoa só será pessoa quando deixar o binómio eu-mãe para assumir a tríade eu-mãe-mundo. Tal como na arte, só deve fazer sentido quando encontramos a tríade artista-obra-observador/receptor. O acesso à terceira dimensão é o acesso à profundidade ou distância com alto grau de confiança. 

Mas nada disto ajudava a esclarecer a presença do número 3 na forma de 33 na sua vida no presente momento. Podia ser tudo e podia ser nada. Dependendo do grau de importância que daria à simbologia. E mesmo não dando qualquer significado, ele estava lá, todos os dias. Numa porta, numa matrícula, num número de telefone, numa conta de supermercado, nos sonhos. Chegou a acordar às 3.30 da manhã várias noites, razão pela qual retirou todos os relógios do seu campo visual nocturno. E havia uma certa angústia de morte associada à presença constante do número. Talvez a principal razão para a busca obsessiva de respostas. 



II

13 de Junho, 2013
Alba acordou, levantou-se e fez café como em qualquer outra manhã da sua vida. Abriu a janela da sala para deixar entrar o sol. Este era um Verão tímido, pouco quente e ocasionalmente chuvoso. De fora escutavam-se já os pregões das varinas, o mercado hoje estava cheio de turistas, Alba podia ver da sua janela claramente as entradas e saídas do mercado. Pensou que talvez não fosse má ideia comprar peixe para assar no forno, iria receber nessa noite os seus convidados e não tinha ainda decidido o menu. Peixe assado, a receita era da sua avó, levava alecrim. Compraria também maçãs para uma tarte. 

Hoje era o dia do seu 33º aniversário. Casaria também os anos: dia 13 no ano 13. A última vez que casara os anos fizera 13 anos. Esta história do casamento dos anos era uma coisa de garotas. Não tinha qualquer outro significado a não ser ocorrer uma a duas vezes na vida. Por esse motivo tinha a sua significância na vida de uma pessoa. Aos 13 anos recebera da mãe um anel a que vulgarmente se chamava "um espera maridos". Todas as raparigas adolescentes recebiam um e nesse dia a mãe apeteceu-lhe ser um pouco convencional e dar-lhe uma nesga de vida comum. O anel era trabalhado a ouro e tinha em toda a volta pedras semi preciosas. A lógica do anel era que as pedras iam caindo ao longo do tempo e quando caísse a última pedra a rapariga casava-se. Havia já colegas suas que provocavam a queda das pedras, tinham pressa para casar. Mas Alba não, achou piada ao presente mas estava muito longe de qualquer contacto com rapazes. Ocupava ainda a sua cabeça com aventuras e livros de contos de fadas. Para uma mãe comunista este fora um presente excepcional, até porque não acreditava no casamento como necessidade institucionalizada. "As pessoas devem procurar a felicidade e não a convenção Alba". Mas ainda assim, o anel podia ser uma forma de integrar Alba no seio das suas colegas. 
Alba desde cedo fora muito pouco feminina. Preferia os livros às bonecas e o futebol na rua aos vestidos. A mãe estivera sempre demasiado ocupada com a sua carreira política para reflectir sobre o assunto e no fundo achava até preferível ter uma filha assim do que uma princesa. "Estarás mais bem preparada para a vida filha, a beleza chega a ser um veneno, o importante é cultivares a tua mente e o teu espírito". Claro que com anel veio um conjunto de livros que a mãe considerava essenciais para a educação de Alba. 

Alba ainda conservava o anel no dedo, ficara como parte do seu corpo, como se fosse uma cor de cabelo ou um sinal no canto da boca. Hoje olhava para ele e provocava-lhe saudade. Saudade de uma mãe que pouco estivera presente mas cuja presença não deixou de ser marcante para toda a sua vida. Fazia também hoje 13 anos que falecera. Quanto ao seu pai, voltara a casar e Alba não fazia intenções de aceitar este casamento nunca. O pai contrariara todas as normas da educação que lhe dera e por este motivo Alba achava que não o conhecia mais. Era uma outra pessoa transformada pelas mãos daquela sua madrasta desinteressante que ficara um pote depois de ter dois filhos. Alba raramente via os irmãos e pouco ligada a eles se sentia, embora gostasse particularmente do feitio do irmão mais novo, parecido consigo. Das poucas vezes que estavam juntos procurava transmitir-lhe algumas das ideias que a mãe lhe transmitira a ela e que ainda hoje pensava serem ideais de uma vida estóica.

Seria peixe então. A casa era pequena, Alba vivia sozinha já desde que o pai voltara a casar. Não chegou a terminar os estudos porque perante a morte da mãe e o abandono do pai impôs-se a necessidade de se auto sustentar para se poder libertar. Nessa altura mudou para a aldeia, tinha esperança de num lugar mais pequeno encontrar menos solidão. Metade de si falecera com a mãe, a outra metade desaparecera com a radical mudança do pai. Estava desde esse tempo entregue a um si totalmente desenraizado. Os seus amigos eram três rapazes, todos irmãos, seus companheiros desde que chegara à aldeia. As pessoas comentavam uma rapariga andar sempre com três rapazes e não ser namorada de nenhum mas Alba não se importava com falatórios e eles  também não. Tinham tido em comum uma educação comunista e os seus serões eram ocupados com debates e leituras, um clube de idealistas isolados do mundo perverso que os rodeava, mas na verdade e Alba tinha consciência disso, não menos perverso que a relação dos quatro. Muitas noites, bebidos e fumados, acabavam por acampar na casa dela, pela cama ou pelo sofá. Não tinha qualquer relação sexual com nenhum deles mas tinha uma paixão pelos três. Como se fossem um só, Alba sentia que não podia escolher apenas um, por isso, conservara-os por perto como amigos ou qualquer coisa perto de serem a sua família. Nenhum deles manifestava interesse por outras raparigas e todos demonstravam um carinho por ela muito próximo do amor de homem-mulher. Ás vezes discutiam, como se disputassem entre si masculinidade: o mais forte, o mais inteligente, o mais belo, ficaria com ela. Mas essa escolha nunca aconteceu.
Hoje comeriam peixe assado e Alba sopraria as velas. 

Como era o dia do seu aniversário, Alba não trabalhava, a fábrica dera-lhe o dia. Alba era operadora numa das últimas fábricas de conserva do país. Sardinhas e atum em lata. O fabrico era ainda muito pouco industrial e não mais de quarenta pessoas trabalhavam ali, por isso, todos faziam um pouco de tudo e sentiam que parte da fábrica era também sua. Os proprietários eram os netos do fundador, um senhor muito rico dono de metade da aldeia, cuja fábrica era a menina dos seus olhos e os netos conservavam a mesma paixão pela mesma. Recentemente a capital tinha sido tomada pela febre das conservas e assim o negócio florescia, apesar das conservas importadas serem uma forte concorrência, parecia que a moda era precisamente consumir produto nacional. "Aquela gente da cidade teve alguma iluminação divina, é de aproveitar agora porque se são de modas também se devem fartar de latas muito em breve" disse o patrão mais novo um desses dias antes de contratar mais dez pessoas para ajudar nas encomendas que haviam triplicado. Alba vestiu-se e apressou-se para apanhar peixe de qualidade fresco no mercado.

Quando desceu as escadas da casa, a vizinha do rés-do-chão veio à porta chamando-a. Alba entrou. A senhora era viúva recente e recentemente uma pessoa por consequência totalmente diferente. Vivia agora a sorrir, pintara as unhas de vermelho e cozinhava compotas e biscoitos para a rua inteira. O marido já muito doente atazanava-lhe o juízo e era conhecida antes pelo seu mau feitio. Só muito agora Alba fizera amizade com a senhora, eram duas boas vizinhas. A senhora tinha feito um bolo de aniversário e depois de a convidar para mais tarde subir e soprar as velas com os seus amigos Alba voltou a subir as escadas para guardar o bolo e voltou a sair.

Na porta do mercado já se juntara um aglomerado de figuras habituais. O louco da terra, o rapaz afiador de facas, a cigana que lê a sina, a senhora dos bordados e estava também o senhor dos peões de madeira rodeado de miúdos que experimentavam proezas com habilidade. Ao lado do mercado a tasca já estava barulhenta e da porta vários homens bebiam e comentavam as novidades do dia.  Quando Alba tentou entrar foi abordada pelo louco "mas que menina mais doce, que vem hoje feirar? um rapazinho para o jantar?", ela riu-se e tentando contornar a conversa é apanhada pela cigana "uma moedinha pela sina, vamos menina, o futuro está na linha". Alba achou engraçada a cigana e deu-lhe a moeda e a mão. A cigana observou as linhas e a sua expressão mudou. Ficou séria e olhou para Alba dizendo gaguejando "33..este é o momento...33...tudo dependerá de si...33..." e afastou-se repetindo a frase como se estivesse hipnotizada. "A feira dos horrores" pensou Alba sem dar grande importância à cigana apesar de lhe ter ficado a pulga atrás da orelha no pormenor do número, "como saberia a cigana do meu aniversário?"
Na zona do peixe os pregões faziam eco pelas paredes do mercado. "Venha menina, este é fresquinho. Não encontra melhor qualidade". O peixe que a senhora tinha na mão tinha o comprimento aproximadamente da cintura de Alba e a boca aberta. Alba pediu para que a senhora o pesasse. "3 Kg e 300". Sairia um jantar caro mas gostava de mimar os seus rapazes como costumava dizer. A senhora embrulhou o peixe contente e ela seguiu para a zona das frutas e dos legumes. Passou por uma banca onde uma rapariga mais jovem embalava o bebé ao colo. Achou por bem comprar ali. O bebé tinha as maçãs do rosto vermelhas, como se fossem elas maçãs bebés muito redondinhas e reluzentes. Dormia tão serenamente com toda aquela confusão de fundo que Alba não resistiu em comentar "Parece um anjinho". A rapariga olhou para ele com um ar cansado e retorquiu "Parece parece, de noite não dá descanso a ninguém e depois de dia é isto, raio do bicho parece atravessado, só gosta de dormir na confusão". A expressão da rapariga surpreendeu-a mas não comentou mais sobre o assunto. Escolheu as maçãs para a tarte e tomate para colocar no forno com o peixe. Tudo tinha um ar de frescura e vitalidade nestas bancas. Perguntou quanto devia e obteve de resposta "3 euros e 30". 
Perto da saída Alba apanhou ainda um ramo de Alecrim na senhora dos cheiros. Uma senhora velhinha que enrolava os raminhos com laços coloridos como se fossem cabelos de bonecas. Na alcofa colocou tudo bem arrumado e seguiu. Queria ir tomar outro café na praça. Hoje era o seu dia e ainda faltavam muitas horas para o jantar apesar de gostar de preparar tudo com preceito e antecedência. Não tinha ainda planeado o restante dia e o café dar-lhe-ia ideias com certeza. Só teria companhia ao fim do dia, os manos trabalhavam na oficina de automóveis. 

Dentro do café o cenário era idêntico, gente e confusão. Alba pediu um café cheio e um "bom bocado". Na esplanada junto à praça sentou-se e retirou da alcofa o livro. Tinha tempo, podia aproveitar para ler, tinha a sombra de uma figueira mesmo por cima da sua mesa e ali tudo estava mais calmo porque quem passava ia de caminho para o trabalho ou afazeres de terceira idade. Havia tão poucas crianças na aldeia. Para além do bebé que vira no mercado tinha conhecimento de outros dois nascimentos. Este ano. "A taxa de natalidade é uma desgraça e eu, não contribuo para ela tão cedo". Estava nestes pensamentos tentando concentra-se no livro e no bolo quando alguém se sentou na sua mesa. Era o Zé. O filho do dono do café. Tinha mais ou menos a sua idade e para além de ajudar o pai de vez em quando, passava o dia na esplanada atrás de raparigas. Chamavam-lhe o "Zé sempre em pé" e de cada vez que Alba o via ria-se por dentro desta alcunha, tinha muita fama mas com certeza muito pouco proveito. As raparigas da aldeia tinham muito cuidado com a sua reputação, uma vez mal faladas dificilmente arranjavam casamento. Por este motivo fugiam dele a sete pés. Alba não se importava com mexericos porque também não tinha grande intenção de casório. Ele sentou-se ao lado dela e perguntou "Que estás a ler? Hoje não devias estar a trabalhar?", "Faço anos" afirmou Alba. Ele levantou-se e foi lá dentro. Quando voltou trazia um papo-seco com uma vela. "Para que nunca te falte o pão. Sopra." O Zé tinha destes pormenores. A sua família tinha a muito custo mantido o café da praça, era o café central e passava de geração em geração como tantos outros negócios por aqui. Apesar de galinha e convencido, ele tinha uns rasgos de vez em quando de inspiração. 
Alba achou a ideia deliciosa e soprou a vela agradecendo o gesto. Ele voltou à conversa "A minha mãe sempre que faço anos à meia noite traz-me o pão e a vela, desde miúdo, gosto da ideia, o pão por estes lados sempre teve uma importância muito grande". Alba pensou na sua mãe. Esta era uma ideia que encaixaria nas de sua mãe. "Não conhecia a tradição mas adoro tradições". Ele continuou "Não tens cara de tradicional, mas percebo que gostes destas ideias, quando arranjas marido? Eu estou solteiro e sou muito bom rapaz" riu-se com gozo chegando a perna dele à dela. Alba afastou-se um pouco sem querer ser indelicada "lá estás tu, estavas a ir bem Zezinho". Esperava que o diminutivo o colocasse no lugar dele mas não teve assim tanto impacto. Ele continuou "andas sempre com aqueles três, a malta comenta, devias ter cuidado com a tua reputação, és tão bonita". Alba enfiou a cabeça no livro tentando terminar a conversa "nada disso me importa, não tens o que fazer? o teu pai parece atrapalhado lá dentro". O rapaz levantou-se e despedindo-se "tem um bom dia minha princesa esquisita". E seguiu lá para dentro. Alba sentiu-se aliviada, era querido às vezes mas a maior parte, inconveniente e demasiado insistente. 
Estava novamente entretida com o livro e tentando decidir o resto do seu dia. Na aldeia muito pouco havia para fazer para além de estar no café, ir junto ao rio ou ir ao cabeleireiro. A ideia de mimar-se agradava-lhe. "E porque não? Podia cortar o meu cabelo, mudar qualquer coisa!". Ela tinha um longo cabelo louro que lhe dava abaixo da cintura. Fazia anos que não o cortava e usava sempre o mesmo penteado, uma trança apanhada no topo da cabeça. A ideia de cortar estremecera-lhe as entranhas. No entanto, ter alguém a cuidar de si, a dar-lhe alguma atenção feminina agradava-lhe. Sentia falta de companhia de raparigas mas nunca conseguiu amigar nenhuma por aqui. Eram todas demasiado preocupadas com as aparências, não se sabiam divertir e viviam para coisas que a Alba não interessavam nada. O cabeleireiro era uma delas, mas hoje, como estava disposta a fazer algo de diferente, iria lá. 

Terminou o bolo e o café, arrumou o livro e seguiu pela rua procurando o cabeleireiro. Era o único que havia e estava preparada para os olhares e comentários de sussurro sobre a sua pessoa. "Não importa, hoje é o meu dia". Mal entrou um silêncio esquisito se instalou. A patroa olhou para a empregada que estava a pentear uma senhora e fez-lhe sinal. A rapariga deixou a senhora e dirigiu-se a Alba "Bom dia, é para cortar?" Alba hesitou. "Não, é apenas para lavar e pentear, hoje faço anos" e sorriu timidamente. A outra respondeu "Está bem, aguarde um pouco ali naquela cadeira que eu já vou ter consigo". A patroa que estava a limar as suas unhas disse "Deixa rapariga, eu trato da senhora". 
Agarrando na trança de Alba para a desfazer falou "Não costumo vê-la por aqui mas fez muito bem, nós merecemos um mimo especial não é verdade?". As palavras da patroa soaram bem aos ouvidos de Alba e sentou-se mais descontraída "sim, há muito tempo que não venho arranjar o cabelo mas hoje apeteceu-me". Não sabia bem o que dizer mas tinha a certeza que a cabeleireira tinha todo o tipo de assuntos debaixo da língua, não fosse essa a actividade secundária principal de um cabeleireiro. E a patroa lá continuou massajando agora o cabelo com shampoo, "está bem assim a temperatura da água? tem um cabelo lindo, não costumo ver cabelos tão longos e tão bem tratados, mas de vez em quando devia cortar-lhe as pontas, faz-lhe bem para fortificar". Alba sentiu como se um dedo mais afiado lhe fosse espetado no crânio, "pois acredito mas, não consigo, tenho-o assim há anos e dizem sempre que é só um bocadinho e depois é um pedação, sinto-me despida sem ele assim". 
A patroa decidiu então mudar de assunto, falando ao ouvido de Alba mais baixo "a senhora gosta de coisas diferentes?". Ela espantou-se com a questão e virou a cabeça olhando a outra de frente "como assim? o que quer dizer com isso?" sentiu as mãos da patroa passarem pelos seus ombros massajando e voltou a encostar-se aguardando curiosa. "Todas as sextas feiras à noite eu faço umas reuniões secretas em minha casa. Ninguém sabe de nada disto e eu estou a convida-la nem sei bem porquê, talvez sinta que é diferente e que pode vir a gostar de estar connosco. Somos só mulheres, de várias idades. O que fazemos lá, fica lá". Alba começou a sentir-se esquisita, como se estivesse a ser abusada no colo de um tio perverso, as mãos da patroa já iam no pescoço e no rosto, não estava habituada ao toque. "Mas que tipo de coisas?", a outra continuou, "O meu nome é Lucinda, lá acontecem todo o tipo de coisas que consiga imaginar, a ideia é partilharmos coisas que em casa ou com os outros não temos à vontade, já aconteceu de tudo...mas só estando um serão para ver, vá à experiência, sem compromisso, se não gostar não precisa de voltar". 
Ficou curiosa. A patroa chamou a rapariga que já terminara a outra senhora e deixou-a continuar piscando o olho a Alba. Entregou-lhe um cartão seu dizendo ao ouvido "sexta-feira". Depois foi lá para dentro. Olhou para o cartão, tinha o nome de Lucinda, o seu contacto e a morada..."porta 33, este número parece estar a perseguir-me". 
Ficou tão pensativa no assunto que ao novo penteado mal dedicou atenção, por isso a rapariga divagou como lhe apeteceu no cabelo de Alba e quando terminou e lhe passou o espelho redondo à volta da cabeça para que opinasse, assustou-se. Parecia outra pessoa. A rapariga tinha feito do seu cabelo canudos e apanhado como se fossem duas rosas, uma de cada lado, estava artístico, como se fosse para um casamento. Riu-se de si mesma mas agradeceu à rapariga o trabalho que dedicara. Tinha o cabelo solto e não estava habituada mas hoje era dia de festa. 

Era hora do almoço e achou que seria bom ir para casa para temperar o peixe e começar a tarte. Deixaria tudo pronto, bastaria depois ir ao forno e isso dava-lhe liberdade para receber os seus amigos. Enquanto cozinhava abriu uma garrafa de vinho verde e petiscou uns pedaços de queijo e pão. Sentia-se feliz. Colocou um vinil no gira-discos, a música que a sua mãe mais gostava, mornas,  fora uma grande apreciadora de música do mundo e Alba tinha herdado a sua colecção de discos. Discos e livros, foi tudo o que a mãe deixou. Isso e algumas jóias de família. Tinha-as guardado num cofre no quarto e interrompeu a culinária para ir ao quarto busca-las. Sentou-se na mesa da sala a observa-las na mão. Como eram bonitas. Algumas gargantilhas, brincos e pulseiras. Escolheu uma delas e colocou-a no pulso. "Hoje irei usa-la mãe, espero que não te importes". Foi até ao espelho e levantou o braço passando a mão pelo cabelo para que pudesse ver a pulseira. Foi quando de mais perto percebeu qualquer coisa inscrita no fecho. Foi buscar a lupa que era de um dos manos que tinha uma adoração por selos e que por lá por casa ficara como tantos outros objectos deles. Olhando através da lente..."não é possível! Outra vez este maldito número...33...mas porque haveria a minha mãe de ter uma pulseira com este número?"
Era um mistério que a própria já não podia responder, talvez fosse apenas uma coincidência que nem a mãe tivesse dado alguma vez conta, era de facto uma inscrição muito pequena. Alba deixou ficar a pulseira no pulso. 



III


13 de Junho, 2014
Alba acordou, levantou-se e fez café tal como mais uma manhã da sua vida. Todas as manhãs eram manhãs de vitória porque havia conseguido levantar-se e dar seguimento à sua vida, a uma vida qualquer, o importante era seguir em frente. Hoje terminaria o seu 33º aniversário e faria hoje um ano que aquela fatídica noite acontecera.
Alba olhava para o café no interior da chávena. A espuma amarelada desenhava formas indefinidas. Ás vezes era possível ver coisas. Sentia alívio dentro de si, tinha esperança de se ver livre daquele número no dia de hoje. Não mais o encontraria em todo o lado, não mais buscaria significados paranormais, religiosos ou relacionais nele. Passaria a ser um número qualquer, apenas mais um. Olhou pela janela e lá estava o vizinho a passear o cão. Sempre à mesma hora. Todos os dias sem excepção numa mecanização que apenas um reformado solitário seria capaz de cumprir. No prédio ouviam-se já as canalizações e vozes entre paredes de mais um início de dia. Alba não conhecia para além de reconhecer fisicamente, nenhum dos vizinhos. Aqui a impessoalidade permitia-lhe o espaço necessário para ser ninguém. Dez andares, a altura perfeita para uma Torre de Babel.

Durante 365 dias perguntara a si mesma se seria o último dia, todos os dias. Perguntava a Deus todos os dias pela razão da sua insistência em vida. Porque fora a única a sobreviver, porque tinham de morrer os três naquela noite? Porquê na noite do seu aniversário? Porquê daquela forma? Mas todos os dias Deus dava-lhe o silêncio e o castigo de continuar a viver sem respostas e pior, com um sentimento de culpa, sem na verdade a ter, por estar viva. Por sentir que não merecia, não mais que eles. Estas conversas com Ele revelavam-se absolutamente inúteis e em momentos de revolta, porque ainda a sentia a par com uma dor imensa, negava-o com todas as suas forças por ter permitido essa tragédia em seu redor. A negação trazia-lhe ainda mais solidão e um desamparo que a deixava dias de cama, olhando para o tecto, faltando ao trabalho, sendo despedida várias vezes ao longo desse ano. E a cada novo trabalho tudo recomeçava. Aquela angústia de estranheza, de ser necessário um esforço imenso de si para se integrar e de uma forma disfarçada mostrar estar apta para continuar e entusiasmada com as tarefas.
Alba não permitira amizade com mais ninguém desde aí. Como se estivesse dotada de uma maldição que só podia trazer destruição em seu redor. Já a morte da mãe acontecera em circunstâncias que podiam tê-la envolvido, foi por teimosia sua que não acompanhara a mãe naquela viagem. Na sua última viagem. Também lá, nesse acontecimento, Alba tinha sido poupada e a culpa juntava-se agora à recente, impulsionando dentro de si um abismo de completa aversão à vida. Se Deus a tinha poupado por alguma razão fora, tinha nas suas mãos o dever de dar um rumo ainda mais valorizado ao seu dia-a-dia, mas as coisas na prática são exactamente o oposto. E por não conseguir que a sua vida fosse especial, a gratidão não era a retribuição. Antes um vazio e um corpo em automatismo, que fazia um esforço tremendo para se levantar e realizar o básico, nada mais que o básico e já o básico era demasiado. "Não sou digna porque sou fraca, não consigo porque estou presa na culpa que não me deixa existir na graça de estar viva". Alba sabia-o bem, mas não conseguia libertar-se deste peso.Tinha esperança de que o tempo fosse uma ajuda amenizadora. Esperança, a única e talvez a causa de ainda estar viva. O suicídio passara-lhe várias vezes pela cabeça. Chegou a detalhar como, quando e onde. Mas não era capaz, acusava em si a cobardia de um fraco. Era assim que via a sua incapacidade de cometer esse acto.

Passados três meses mudou para a grande cidade. Mudou de penteado, mudou até de nome passando a usar apenas o apelido da mãe. Mudou tudo o que estava ao seu alcance com o íntimo desejo que as circunstâncias do passado se alterassem. Mas o passado já lá ia e dentro de si a verdadeira mudança ocorrera para pior, um buraco de tristeza e desgosto. A cidade era feia, barulhenta e hiper populacionada. O lugar ideal para não se encontrar com a beleza e o deslumbre da vida. Não se achava digna de absorver a beleza, de sorrir, de fazer-se feliz, de encontrar felicidade. Bebia demasiado e fumava cigarros contínuamente. Não procurara ajuda médica, sabia que seria medicada e não queria ficar dependente de narcóticos. Mas reconhecia que tinha momentos de desespero em que dava conta de não ser capaz de reagir sozinha. Mas a inactividade era de tal ordem que nem para se levantar e ir a uma consulta era capaz, ficava no escuro, no silêncio e quando conseguia melhorar, como o tinha feito sozinha, abandonava a necessidade de ajuda exterior.
À noite saía, sozinha, deambulava pelos bares das ruas apinhadas de gente, bebendo até atingir o estado de anestesia. Acordava sempre na sua cama sem saber bem como. Ás vezes brincava com a morte, colocava-se em situações que podiam tornar-se arriscadas mas sempre no momento antes da sua concretização, como se de um instinto de sobrevivência se tratasse, instinto que até esse repudiava, libertava-se e seguia a linha da vida. Sempre no último momento. A tal cobardia que via em si. Esse outro ser doente que lhe falava ao ouvido, criticando, amaldiçoando, corroendo a vida. 

Não tinha planos para hoje, não tinha intenção de comemorar o seu aniversário, apenas o desejo de que o dia se encerrasse e com ele a maldição do número. O número podia desaparecer, tudo o resto, não. Decidiu ir trabalhar para que as horas passassem mais depressa. Estava num escritório de consultoria, servia cafés, atendia telefones e tirava fotocópias. Pouco mais que isso. O escritório tinha gente suficiente para que passasse como anónima no seu dia-a-dia. Cumpria as suas tarefas sem aprumo a mais ou a menos. Manter-se numa linha contínua de mesmidade era o seu objectivo, uma linha que lhe desse alguma estabilidade, sem alterações ou mudanças que implicassem esforço de nova adaptação.

À hora do almoço, estava na copa a tentar engolir uma salada, quando foi chamada. Era o telefone para si. "Pai? Como sabias deste número? Ah, não me recordava de te ter dado...hoje? Jantar? Não leves a mal mas não tenho vontade nenhuma..sim eu sei são só duas horas de comboio até aí...mas pai...não me sinto assim tão bem para comemorar...tu sabes...pronto está bem...não insistas mais...irei". O pai ficara a saber da situação porque era o seu familiar mais próximo vivo e foi ele que foi chamado na noite do acidente. Depois disso, tinha tentado estar mais próximo mas Alba pusera sempre limites nessa aproximação. Se não esteve presente durante tantos anos para nada, porque haveria de lhe dar esse gosto agora?
Ás cinco da tarde saiu e foi para a estação de comboios. O próximo era às 18.30. Não havia alternativa. Iria esperar. Para que a espera não fosse tão penosa, isto num dia em que aguardava que as horas o anulassem e a todo o segundo olhava para o relógio com esperança de passar mais depressa, foi até à banca de revistas. Passou os olhos pelas capas. Nada lhe interessava. Perguntou então à senhora que a olhava apática detrás do balcão se havia livros, às vezes alguns jornais têm colecções. Antigamente Alba lia muito. No último ano não abrira um único livro. Culpava também os livros de uma certa despreparação que via em si para a vida. Lera demais e a vida longe de ser uma aventura ou um conto de fadas, revelara-se um pesadelo. Nos livros havia uma segurança, uma rede de trapézio que a vida não tinha. Eram tão falsos como tectos de pladur carunchosos retocados apenas do lado de fora para que parecessem estáveis. Acreditava que as pessoas que liam muito nunca encontrariam a felicidade. Porque a felicidade não é um capítulo final que se encerra com um "feliz para sempre". Mas duas horas de viagem seria a desculpa perfeita para regressar à leitura. Talvez não fosse má ideia. O vazio que acompanhava o momento podia ser preenchido por outras vidas, lugares e acontecimentos de personagens que viviam, ao contrário de si. 
A senhora apontou-lhe para uma prateleira que tinha alguns livros. A maior parte lixo gramatical. "Como ser feliz", "As aventuras eróticas de uma mulher solitária", "História de Portugal em BD"...e foi quando viu um que lhe chamou a atenção. Tinha capa de tecido azul escuro e uma faixa onde se lia "Autores Prémio Nobel". E o título era nem mais: "33". Alba comprou o livro, seria o seu último contacto com o número, assim o esperava. Uma certa saudável curiosidade tomou conta de si. Há muito tempo que não se sentia curiosa com nada. Há muito tempo que não sentia nada em si de ascendente.
Procurou um banco mais sossegado, longe dos viajantes que se atropelavam pela estação de malas e mochilas às costas. Quando se preparava para o abrir uma voz fez levantar a sua cabeça e ao seu olhar apareceu um rosto familiar mas remoto. "Como se chamava ela" pensou para si mesma, "Ah, Lucinda." A patroa do cabeleireiro da aldeia. "Ah quanto tempo? Desculpe incomodá-la, queria apenas dizer-lhe olá, depois de toda aquela tragédia...não tive nunca oportunidade de a conhecer melhor. Queria apenas dizer-lhe olá. Vim à cidade tratar de assuntos". Alba olhou para ela com uma sensação de náusea. A mulher nunca lhe fizera mal nenhum mas representava um lugar que desejava nunca ter conhecido e onde não queria nunca mais voltar tal viva estava lá a sua dor. Não sabia o que dizer por isso sorriu apenas. "Bem deixo-a com o seu livro, prazer em vê-la, desejo-lhe felicidades" e seguiu pela estação com um ar afoito e modos tão extravagantes como os que antes lhe conhecera. Se tudo tivesse sido diferente provavelmente teriam sido amigas, aquelas reuniões de que lhe falou teriam sido épicas mas tudo foi como foi, um rasgão violento que lhe impeliu à separação entre vida e morte e, Alba, ficara do lado da morte. E não é assim a vida? Uma corda onde permanentemente saltamos escolhendo ora para cima ora para baixo, ora para os lados até ao dia em que damos um salto final que nos coloca fora do jogo. Mas a corda permanece lá em movimento, nós é que não saltamos mais.
Alba não estava morta, só não tinha vontade de jogar. Via-se no recreio, olhando os outros saltarem à corda, querendo apenas estar olhando. Por não se sentir digna de jogar ou achar não saber saltar. Como se nunca tivesse sido ensinada a saltar e de todas as vezes que tentara, tropeçara na própria corda. "Jogo mais estúpido, pensou, que monotonia de canseira". E afastou o pensamento da corda abrindo então o livro.



IV

Os actos heróicos são ascendências do ser humano, que depois de abandonar a preocupação primeira de si mesmo, transcende à intenção de salvar um segundo. O herói não é senão um super homem, próximo de um Deus, cujo altruísmo provém da libertação do seu egoísmo e cuja acção é dotada de uma coragem absoluta, donde a sua vida é uma formiga e a vida do outro, um gigante indefeso, que aguarda por auxílio. Nesta inversão e da completa desconexão do antes fora, nasce enfim, o potencial, nunca antes pensado, do virei a ser muito mais que eu mesmo. Todos nós podemos ser heróis em vez de sermos cobardes. E muitos de nós precisam em primeira instância de uma salvação da própria vida. Ser herói da própria vida. Ser um super homem de coragem e mão erguida. A luta pela felicidade e o abandono do egoísmo da estagnação e do conformismo. Auto comiseração é o primeiro inimigo do heroísmo. O realismo precisa de pés assentes na terra e vontade voltada ao sonho. De ser mais e melhor. De se superar a si mesmo. De vencer a dor. De escolher o caminho da vida. 

Este epílogo, que vos deixo já de início, é na verdade uma advertência. Quem não está disposto a seguir este caminho não é digno das minhas palavras e nesse sentido será melhor encerrar desde já a sua leitura.

              J.S.

Começava assim. 
Alba parou a leitura por momentos. Pensou "empertigada esta escritora". Olhou para o relógio. Não tinha ainda passado nem meia hora. Por esta hora as pessoas apanhavam os comboios de regresso a casa depois de um dia de trabalho. Não carregavam malas e sim pastas e lancheiras. Tinham na sua maioria um ar cansado e um desalento que lhes embrulhava a expressão fechando-a como carapaça autista num automatismo triste. Respirou fundo olhando para a capa do livro. "Não serei digna dele, mas talvez seja uma provocação da autora, uma espécie de advertência daquelas que as mães fazem sabendo que se a criança não cumprir estará a fazer o correcto, e as crianças gostam de não cumprir, de desafiar as leis". Deu por isso a recordar-se da sua infância. Há quanto tempo não se sentia criança? Procurou na memória o momento em que se quebrou o encanto, o momento em que o dedo picou a roca e caiu num entorpecimento muito longe de se poder chamar de vida, não conseguia defini-lo ao certo. Talvez desde sempre, talvez nunca tivesse tido espaço para ser verdadeiramente criança. Talvez...desde que aprendera a ler e começou a escolher ficar sozinha em vez de brincar com os outros.
"Quando estava com eles, sentia-me criança...não havia leis que nos limitassem o comportamento, quando estavamos juntos não havia toque de censura numa pele que era conjunta. Eramos felizes à nossa maneira". Pensava nos manos e na saudade que sentia, não podia mais voltar a vê-los. Não podiam mais rir juntos. A morte era eterna e decidida, não havia como desfazer esse feitiço de distância que não pedira. Não houvera acto de heroísmo que os salvara, não havia sequer uma palavra que justificasse ou acalorasse essa dor. Apenas a solidão e o peso de estar viva. Não queria que a vissem a chorar e engoliu lágrima a lágrima, voltando a abrir o livro.

Capítulo I
Das vidraças da janela escorriam linhas de água aglomeradas durante a noite pelo calor que os corpos produziam no quarto. Ainda dormindo profundamente, o rosto coberto pelos seus longos cabelos encaracolados, escutava-se a sua respiração coronária e jovem. De pé, apertando o roupão ao peito, ele olhava-a com uma paixão inquieta. Todas as manhãs eram momentos de queda. De não saber em que estado ela acordaria. Se viria doce aos seus braços, se amarga aos pedaços. 

Alba levantou a cabeça do livro. "Então mas isto afinal é uma história de amor e drama? Que desilusão!" Esperava tudo menos isso. Não tinha cabeça nenhuma para romances neste momento, muito menos angustiantes. Arrependida de ter comprado o livro, colocou-o de parte dentro da mala e procurou por um café para comprar algo, tinha uma certa fome, desde a salada do almoço que não tocara em alimento algum. Apetite era coisa de que não padecia desde que acontecera tudo. Sentou-se numa mesa junto à janela do café que dava para a zona central da estação. Pediu um galão e um pão com queijo. Enquanto aguardava que a rapariga trouxesse o seu pedido olhou desinteressada lá para fora. Mais gente que passava, gente previsível, gente aborrecida com vidas aborrecidas e no entanto, provavelmente, feliz. Diante desta pasmaceira repensou o interesse pelo livro. A rapariga regressava, o galão estava demasiado quente "nunca escutam os clientes" e como uma vez mais tinha de esperar, voltou ao livro. Mas por rebeldia à autora, passou várias páginas à frente no sentido de perceber se afinal havia algo, queria saber do número e sobre isso a autora ainda nada tinha dito. Ao folhear bateu com os olhos no dito.

Hoje ela faria 33 anos. Antes que acordasse ele levantou-se em pés de lã para que nenhum barulho o denunciasse. Foi até à cozinha e preparou-lhe com requinte um pequeno-almoço digno de princesa. Tinha comprado o seu bolo preferido, Bom Bocado, e escondido no creme havia deixado um anel. Tinha esperança que a ideia de casamento a entusiasmasse. Nos últimos tempos parecia que nos seus olhos grandes e redondos morrera algo, não tinham mais o brilho da vida. Ele sabia que ela ainda o amava mas não tinha a certeza de que ela amasse ainda viver. Havia momentos em que sim, que ela sorria e o encantava com pensamentos alados, como antes fora, mas outros, que caída, murmurava menos que palavras durante um dia inteiro. Sentia-se muitas vezes impotente. Que o seu amor não tinha força para puxa-la à superfície. Escolhera-a a ela e por isso era seu fardo, ama-la, e agora mais do que nunca, proferir a frase "na saúde e na doença". Queria que ela o soubesse e o anel seria o presente perfeito. Queria vê-la vestida de branco tal um anjo que na terra não encontra mais descanso. Queria tê-la em seus braços hoje mais do que nunca e carrega-la para os jardins da paz eterna. A sua menina, queria mais do que tudo, cura-la com amor. 

Alba perdeu-se nos seus próprios pensamentos. "Como seria bom ter alguém assim, que cuidasse de mim, com um amor incondicional" mas depressa a censura do outro lado lhe tomou as ideias, "Disparates, essas coisas só existem nos livros ou nos filmes, lá estás tu...a vida não é senão a morte em permanente prenúncio". O desalento. Esta ideia romântica de encontrar um par, um amor de Pedro e Inês nunca lhe tocara, tanto que o seu único e grande amor até aos dias de hoje tinha sido "os manos". Amara-os sim, de uma forma terna, quente e doce. Aos três, ao mesmo tempo, como se partes de um todo indissociável fossem. Porque se completavam e definiam, juntos, a perfeição. Não conhecera até hoje outro amor. E tristemente sentenciava-se: não voltaria a conhecer.
O galão já estava morno, podia toma-lo. Deu uma trinca no pão e percebeu que o queijo estava duro. "Estes cafés de estação são uma miséria, caros e maus". Olhou novamente para o relógio, comprometera-se a ir e não queria perder o comboio. 17 e 33. Lá estava o maldito número. Ao morder novamente o pão, mordeu a própria língua tingindo de vermelho o miolo. "Está certo, queres que repense a minha relação com este número meu Deus, mas explica-me então Tu, por palavras honestas e concretas o que me queres dizer com o 33, explica-me por favor, que sou muito cega para o ver e até agora não tenho visto senão o número e nada mais que desgraças à volta dele, explica-me se não é a morte que queres que veja? Explica!" e a última palavra saiu de si como um grito de desespero que até a si espantou. Como se não tivesse sido a sua voz a grita-lo. Um silêncio embaraçoso virou-se para si, todos olharam com expressões de "deve ser maluquinha coitada". Alba queria um buraco para se esconder, tudo o que queria era passar despercebida e o grito denunciara o seu pensamento. Foi então que um rapaz se aproximou.

De cabelos negros, nariz fino, rosto magro escondido por uma barba desalinhada. Sorriu para Alba e entre uma trinca no bolo que tinha na mão disse com um ar descontraído "Eu às vezes também não percebo o que Ele quer de mim". Alba corou. E na sua boca o resto do pão estava às voltas sem o conseguir engolir, bem como as palavras que não saíam nem entravam. O rapaz não esperou por palavras suas. Continuou olhando para o livro de Alba "33, foi a idade de Cristo, vais apanhar o comboio das 18,30? Eu também. Podemos ir juntos". Estas palavras soaram como intrusivas a Alba, não conhecia o rapaz de lado nenhum e estava próxima de o considerar petulante quando ele o confirmou sentando-se na sua mesa, "Tens familiares lá? É uma grande terra, não se faz grande coisa por lá mas fui lá criado e gosto do descanso...a cidade é um inferno não é? O gato comeu-te a língua? A tua voz até é bem forte" e deu uma gargalhada de gozo. Alba não gostou nada da atitude, "mas quem é que ele pensa que é? Não lhe mostrei já que não estou interessada em conhece-lo? Que insistência". E resolveu ver-se livre do rapaz "Escuta, não quero ser indelicada mas prefiro estar sozinha".
O rapaz ficou sério mas depressa voltou a sorrir. "Eu já percebi que estás agoniada com alguma coisa, eu também estou, vou ao funeral do meu pai" e o seu sorriso desfez-se num olhar triste que pousou no tampo da mesa. Alba sentiu um aperto no coração. Sentiu-se mal por ter sido indelicada, afinal o rapaz estava a sofrer, provavelmente até mais do que ela. Era uma morte muito recente e de um familiar demasiado próximo. Gaguejando de vergonha disse "lamento muito em saber". O rapaz voltou o olhar para os olhos dela e calmamente disse "33, eu já li esse livro, é lindo, acho que todos devíamos lê-lo, é uma história de coragem e vida". "Sim? Até agora não estava a acha-lo muito cativante, parece-me um romance barato", Alba procurou estender um pouco mais o seu discurso tentado aliviar a situação.
"Lê e depois falamos sobre isso". Esta frase transmitiu-lhe uma sensação agradável. Como se ao seu pescoço tivessem vindo borboletas bailar mimos de paz. Havia um sentido de continuidade nas suas palavras que lhe agradaram, não sabia bem porquê. "Eu chamo-me António, tratam-me por Tino, não me perguntes porquê e tu?", "Alba", "Que nome bonito, é como tu, alva". Ela voltou a corar. Seria o rapaz um lobo em pele de cordeiro? Um D. Juan de falas verborreicas? "Obrigado", disse Alba não o olhando nos olhos para não piorar o seu embaraço. Não estava habituada a este tipo de contacto tão directo.
"Ainda falta tempo para o nosso comboio, o que me dizes de irmos até ao rio para fumar um cigarro?", "Eu não fumo...", "Lá estás tu, és torcida não és rapariga? Gosto disso, não fumas mas fumo eu por ti e por mim...vamos?" E estendeu-lhe a mão. Alba não sabe porquê mas confiou, podia ser um louco que a ia assaltar, mas aquele colocar-se em risco vindo de um profundo desprezo pela sua própria vida estava aqui do lado do rapaz. Deu-lhe a mão e saíram os dois da estação.




V



Junto ao rio, sentados no cais ao longe a outra margem caía agora com o por do sol. Foi então, depois de um momento de silêncio, enquanto ele fumava que lhe disse a ela "Abre o livro na última página e lê o último parágrafo". Alba meio dispersa na paisagem, tirou o livro da mala e leu.

Que um número é apenas um número, pelo homem criado para matematicamente compreender o mundo das coisas. No mundo de Deus as palavras têm muitos significados, mas os números permanecem, números. A angústia de morte que ele sentia e que associava ao número, era não mais nem menos que medo de a perder. Talvez porque Cristo tenha partido do mundo material com 33 anos e da sua partida ficara uma terrível angústia de morte, de nos (nós todos) perdermos da sua alma, um medo medonho de que não encontrasse de volta o caminho dos homens e que estes ficassem abandonados numa fé sem profeta. Terá sido assim na realidade? Para ele, o medo quebrou-se no dia em que ela escolhera o caminho da vida, o caminho da paz de espírito. Juntos, no cais olhando o rio que serenamente se despedia do dia, olharam o futuro. Tinha o rosto de uma gaivota que trapalhadamente tentava voar, em círculos, no limbo da água prateada. Ora rasante, ora tocante no céu. Sem nunca desistir de voar mais alto. 









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