sexta-feira, 16 de setembro de 2016

nas palavras de deus


a noite sonâmbula, branca
encontra o corpo do céu gritando
somos matéria intocável
fora de tempo, fora de espaço, fora do peito
o que nos reconhece é o gesto das mãos
que se procuram na escuridão
e o olhar, furtivo, onde se morre de abrigo
veleiros agitados da melodia do fundo
sem pele, sem tecto, sem ritmo
assim se morre estando vivo.
eis o lugar donde partimos
subitamente de vácuo mistério
nos mesmos passos crateras, amanhecendo
numa mesma hora para habitar sonhos lúcidos
de fuga e silêncio
os braços do mundo vulcão
bebendo da nossa paixão
levantando-nos de uma nostalgia corsária
ergue-se a espinha silábica
para a hora da fundição
da lava que nos descontenta a alma
fazer todo o caminho de volta
 - não sei donde me vem esse grito
desfocado, míope, cúbico
que me respira como folha, tronco, ramo
às vezes bravo, às vezes manso, imperfeito
alguém levou um pedaço
e nunca chegou a plantá-lo
(há um deus ferido que nos encontra
no sofrimento)
da geometria do pensamento
o labirinto das migrações
dos falsos ídolos que nascem, que partem
rumores de luz habitáculo carne
abrindo brechas nas tábuas da fatalidade
falhas que respiram através de um templo
nunca acabado pintado de fresco
que é desse amor que inventas
dessa vertigem donde te aventas
que nasces e renasces sempre que queiras

soletrar o missal dessa comunhão poética
convocar o estado de emergência
da manifestação impossível do fim do alento
hei-de retirar do presente a fixação do texto
-eu sou, eu sou ...eu sou
do acesso ao experimento único do mundo
do esgotamento, do desencanto
para exprimir o efémero - somos
no curso da mágoa diluindo-se no sangue
nesse acordeão de notas bravas
daquelas que choram por tudo e por nada

da doutrina de galáxias menores
a estenografia dos afectos menores
com toda a leveza de um passageiro excessivo
na mesma distracção de uma gota de chuva
que a natureza acolhe com a sede do poeta
como tudo se converte e ressurge
devolvendo à terra a sua juventude
ninfas convulsas de pólen e inspiração
pássaros que não acompanham o bando
que se enraízam nos invernos da dor
para o planar do tempo
das voltas do vento
do desprender das folhas
devolvê-los
ao retrato pintado a nuvens
na dança do balanço dos sonhos

para peitos de veludo obstinados em partir
primeiro há que existir


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