sexta-feira, 31 de março de 2017
não me largues da mão
a cidade pelo dorso do teu rosto
um passo atrás de ti
todo o corpo rebatido no passeio
ainda sem sombra
da linguagem gutural emerge
o divagar do arrasto lento do astro
um somos um
a dimensão articulada dos murais
a cidade que nasce pelos dorsais
meus olhos prolongam os teus
inauguram a madrugada que se instala
de linhas irracionais da alma
e do grotesco que é nosso peso
onde todos dormem ainda
a noite desloca-se para trás de nossos pés
na ilusão de não haver mais nakba
que é casa, abrigo, o teu corpo comigo
uma casa-animal sem sono
descarnado pelo batimento clandestino
de um amor atravessado pelo destino
e há uma total beleza em descobri-lo
uma cidade de silêncios à incandescência
do transe entregue à sincronização das luzes
nessa madrugada lúcida de cinzentismo
é o meu vestido de azevinho
e o teu lenço de azul marinho
nossos passos subterrâneos do pulsar dos anos
para mim hoje é sempre natal
ali na fronteira dos teus traços frontal
a cidade vinda de todos os lados
a cidade à beira do nosso regaço
continuamente fluída
do pulsar da vida
domingo, 19 de março de 2017
I
dos anfiteatros do peito
as linhas espartilho da alma
os anjos partem-me das costas
o nosso retrato reflectido molestando-se
ouso dizer que nos enlaça das arcadas desfeitas
a superfície salgada de uma lágrima
arquétipos como homens de areia
na tua alma infantil
muito minha mãe alquimia me perguntas
pelo combate que trava a nossa fórmula
tão reflexiva como imatura
vejo que o equilíbrio é tudo
que tenho procurado a liberdade
na vez de vivê-la
a minha vista tolda-se
para me debater sempre com o fim
sopram-me os ventos quentes do deserto
desse espaço que ficou para depois
sempre por resolver objecto
o absoluto murmúrio
com que rangemos uns contra os outros
como se não fossemos tábuas para soalho
onde caminhas tu o único
e nos armários, nas paredes, os telhados
dar-me um quarto solitário
porque se escutam pela casa os ecos
no calor da narração
das forças elípticas para a cadencia
dos trilhos do espírito em comum
das mãos inanimadas
que nasçam os filhos das palavras
para um compasso de ternura e mais nada
uma ária de bravura para o claro timbre
de uma alma harmónica sempre firme
pega-lhe pela mão, uma qualquer
pelos anfiteatros do peito
dançar com ela pelas curvaturas que não têm
mais sombra nem solidão
terça-feira, 14 de março de 2017
manhã completa
ergo finalmente os olhos
para o altar da manhã completa
vendo curvar-se no limiar da lembrança
no rasgar do tecto em céu aberto
das glândulas que segregam o tempo
à boca do seio sem fome
o teu rosto de mais ontem
a noite fica para além das horas
das violentas dores de parir os mortos
para se entregar às coisas do dia inteiro
a distância de um corpo sem sono
que se nutre de vagas da fundação das auroras
informe, é todo o ser acordado
em que me abandono e esqueço
finalmente os olhos
na intimidade dos nós do avesso
quando me deixaste embrião
a desconfiança do meu espírito
de ter nascido em vão
se fosse possível o ódio, mas não
apaguei-lhe a luz, fechei as cortinas
há uma vontade mórbida
de acreditar na noite contínua
os fantasmas que alimentamos das rotinas
para a solidão de caminhar sobre as nuvens
regresso ao que me é possível de recordar
sem revelação, quieto, a trança do coração
ensinando-me a dissipar o que resta
desse amor cão.
na implosão do inexplicável afecto
que nem de passagem menos intenso
cheguei tarde ao enterro
cheguei fora de tempo ao meu próprio enterro
e tenho sofrido desde então
de violentas dores de coração
porque em toda a manhã completa
há o ruminar de uma noite perdida
são as palavras que vão e vêm
com o próprio desejo que a dor oferece
para o aniquilamento de toda uma vida
numa espécie de ternura abstracta
por ter sido minha
sábado, 11 de março de 2017
faias ardidas
das sepulturas das faias
seguindo o curso da luz
agora mais vaga
os olhos abrem-se-me devagar
para a luz deixar entrar
borboletas de asas raias
nervosas
as folhas caducas de afecto
caídas a solo nas palavras
dessa copa ovóide
deixando-me cair humanóide
para as fendas ásperas da idade
esse corpo pardo amarelado
que com o tempo cinzas
de nervuras paralelas à vida
escorre num invólucro ténue
o fruto desenvolvendo-se aos pares
ao solo delgado o embrião
drenado de sonhos calcários
tudo é folha e borboleta de asas raias
tudo se deita ao chão na entrega
como uma fauna bravia
que se alimenta de fantasia invernal
montículos de reservas
para corvídeos colectores de solidão
aonde a alma não cabe nenhuma outra
ecos nessa catedral de dentro
que podem as raízes e as alturas
saciar mais do que a própria vontade
de não ser nunca saciada
talvez o céu não esteja assim tão próximo
quando depois de ardidas
a verticalidade de um tronco erguido
sempre de pé
ainda que em montes de cinzas
erguido de pé
domingo, 5 de março de 2017
em ondulações para sul
sobre a calçada uma passadeira carmim
para uma caneca metálica
miosótis para esquecer a fome
engolir a poeira amarelo pálida das paredes
que se convertem em pele e rua
os sons que ficam por pairar
do confronto entrelaçado e intrincado
dos pássaros do desejo
sobre a calçada o retrato do corpo sagrado
a carvão, o menino da lágrima de aço
a mão que pode os fios do vulgar fado
do bizarro aspecto da cidade
onde ainda na Primavera faz frio
sobre a calçada os animais dormem
com uma avidez infinita de colo
envoltos num cobertor de ócio
a necessidade de fechar os olhos
embrulhar-me nesse adormecimento
porque para além de tudo isso
há o compromisso de continuar a caminhar
sobre a calçada há os livres esculpidos
da pintura moderna paralisada
dimensionados de molduras do assassínio
penas, tinteiros, as últimas folhas do tamanho
de pequenos palmos
que o poema arlequim descreve com escárnio
que pode de perfeito a humidade cair-me do rosto
o ar articulado da grande pressão
de nos sentarmos à beira rio
para o abandono da expressão e apenas
contemplação
como pode o abandono das calhas de cimento
que seguram nossos ossos
e nos sustentam o pensamento
como pode que a comoção seja mais forte
de não poder estar dentro nem fora
que o limiar dessas pedras me sejam células
e que eu não queira mais atravessar
e apenas acrescentar-me de neblina
da saturação dos vapores das toxinas
para os passeios negros da minha vida
como pode que os campos se me tenham olvidado
esses campos de maio que se omite do calendário
como laivos de melodia sinistra
para o solfejo do trânsito uivo mecânico
onde se realizam só e apenas profecias
da morte terrível das faculdades humanas
enormes e soturnas fachadas que erguemos
reduzindo os homens a iguais
ao fragmento de qualquer coisa que lhes é inútil
ao nascimento
e sobre a calçada e acima dela
só os pássaros
em ondulações para sul
e sobre a calçada
só os passos
em ondulações para sul
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