terça-feira, 29 de agosto de 2017
esse cais que nos acolhe
o céu condensado de dor
um corpo terreno no cais
de pedra raiado
a luz fulminante do cair da tarde
a tarde de final de estação. é tarde
pedindo colo no abandono
para a certeza de levitar na servidão do olhar
antes da fome, da sede, do cansaço
sonhado com todas as forças do mastro
na impotência mistura
o paraíso sempre tem a duração desse olhar
quando errante a imensidão de tudo
é mais longe que o comprimento e a largura
reforçar as velas, o sopro, o choro
içando-me do fim do mundo
e a revolta das profundezas não pode
virar-me do avesso mais do que conheço
como ficam os lugares que ficam para trás
para um naufrago que tem a pele em escamas
e as mãos em chamas de tanto se atear
pelas nervuras do oceano o luto
reparte-se por todos os que o habitam
o céu clama um destino maior que o homem
que se adia na urgência de se matar
e todas as orações não podem
anjos sem corpo
esse cais que nos acolhe a todos
sexta-feira, 18 de agosto de 2017
ventos menores
o vento
para a assinatura do desapego
irrompe pelas artérias
nesse tributo à penitência
da solidão
vai só...delirante
como uma toalha de linho inacabada
os pontos do oculto de floreados
e destinos de espuma em terra nua
um anjo que abandonou o seu posto
para instantes menores
respira animal
sobe ao altar solar dos tectos do consolo
as mãos sujas de tombos
as fronteiras heras devorando a altura
para o desejo dos melancólicos
e sonhar justo para o esquecimento
o arrefecimento das dores boas de sentir
o que nos separa o que nos impede
de contarmos as horas só nossas
debruçadas nas varandas da muralha
que erguemos de híbridos beijos
morro neste quarto sitiado
ruínas escarpadas de nadas
só um lugar de fosso contemplo
para me render um chão que não é chão
uma concha que baloiça ao sabor das tuas mãos
são mortais e o tempo anseia
de ser vento e acabar sempre à beira
de tempo nenhum
quarta-feira, 16 de agosto de 2017
rivus lacrimalis
da decantação das águas
o que sangra pelo vau
pela brisa dos afluentes
num golpe ágil de cartilagem
barbatanas asas abertas
esse pássaro-peixe flutuante
deixa-se um barco de papel à deriva
no grande desfiladeiro da vida
que a breve ondulação e o sopro
são a vontade de ninguém
as escamas, as espinhas, a carne
o que resta do arpão
de um velho que trocou o mar pelo rio
para a captura da linha
a prata purpurina metálica
de âncora flutuante
nesse vai e vem
de aqueduto de nuvens nuances
passar a mão pela água
colhendo a cedência
e soltar a linha deixando-se partir
no prisma de todos os traços
a espinha esse sinónimo de indomado
um peixe voador voa dor
o escamar das feridas nunca saradas
que vogar do leme fantasma
o nó atado na garganta
beijos afiados como navalhas
o firme impulso da vela
sentir os palmos nadados em vago
da nascente à foz
sentir a vida acrobacia desesperada no ar
e a profundidade do seu cansaço
como um porto o corpo vem até mim
para o baloiçar da maré e o medo
fechar os olhos e recordá-la
sem sentido de fé ou dados de altura
fechar os olhos e vivê-la
numa índole de fera a grande linha
para o repousar no fundo
que repousa no fundo
a resistência
sexta-feira, 11 de agosto de 2017
do volver à perdição
os olhos habituam-se à escuridão
no silêncio catatónico do mar
as cordas que vibram na madeira
estendais de vazio
as casas de dentes e patas e pêlo
choram no gesto do adeus
de tudo o que ficou para trás
ainda mergulhado numa dor imensa
o animal encovado de tristeza
doses de colo materno em falta
para um inverno branco
e um aguaceiro contido
o céu carregado de palavras
o penoso trabalho de guarda-las
o sofrimento pintado de fresco
por toda a parte
se a lágrima caísse das nuvens
dedos, lábios, em combustão
nessa espécie elefantina de mágoa
que brotou de uma alma confusa
se pudesse salva-los a todos
no alívio de nunca me ter salvo a mim
sufocar os demónios imortais
que ninguém pôde arrancar de mim
no murmúrio de preces
escuto a cura do profundo oceano
o peso, o peito, de se deixar ir ao fundo
e partir num dia qualquer
sabendo-me bruxa da terra
do volver das paixões sem raízes
e em lugar de pegada, a lágrima
sempre a lágrima não como uma palavra
mas como toda a poesia
sexta-feira, 4 de agosto de 2017
no limbo das lamentações
um sopro harmónico
o sol partindo desse limbo arsénico
do bafo doentio de pasmos
escoando por entre os dedos
como a água que a terra absorve
onde a cada mergulhar se morre
a saliva no abandono da colina
para dar lugar à silhueta do silêncio
da noite escura, da sede eterna
um hino às lamentações da ira
e correr no último segundo
um sobreiro solitário e senti-lo
a pele áspera pronta solta movediça
tão perto e tão longe da infância
elementos de uma avioneta
no equilíbrio de um voo circular
só porque tudo é efémero
a paisagem nesse detalhe de material
trágica, assombrosa
onde cada sombra esconde o olhar
e o poema nesse detalhe de imaterial
onde cada sopro o diabo fez nascer
o sonho harmónico eu sentiria
se os meus pés pudessem sentir de verdade
o chão lavrado pela morte
seriam raízes e a vida fluiria
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