segunda-feira, 30 de abril de 2018

sintra


espancam-me os horizontes
a pele da árvore ainda a latejar o corte
o musgo ainda fresco que sangra a morte
está a cair água do céu
as ruínas do desagravo do mundo
a coluna dorsal o culminar da lágrima
rondam albinas aves de exércitos de azul
olhos glaciais para cabeços de condores espíritas
a angústia trituradora em aguaceiros de belo
a pele citrina para a imperfeição da vitrine
quando passamos a moldura e contemplar
os ninhos de cegonha que a linha segura
os sonos planaltos ou bosques de fantásticos
que a nossa vida nunca há-de refletir
será sempre um refúgio, o nosso refúgio
cilindros de ventos para cerradas míriades
tudo em que acreditamos o nosso deus
tudo movediço efeito de tormenta e memória
paus cornos chocalhos mosquiteiros
um pedaço espelho de chuva poça
tudo é tão tocante quando a auréola se dilui
límpido fresco absorvente
de tão puro entonta a gente
parte do que cresce livre e parte do que destrói
a própria natureza do que ama e dói
ecos de deuses que por ali deambulam sem fé
porque a fé não abate o som concórdico da dor
morrer de sono nem sombra nem alarme
o acender do fósforo das luzes da aldeia
onde nunca habitaremos sem fome em tectos
a cabeça histérica as mãos suspensas atmosféricas
carrega-se no pedal a fundo engole-se o mundo
uma noite mina a solidão ás escuras
apóstolos de versos que ardem no braseiro
vítimas da guerra do afecto que mata por dentro
e colateralmente se espalha como vento e cinza
o comboio regressa-nos sempre à babilónia
parte de nós fica insone por lá hibernando
nos depósitos e quedas de água, tanques de sangue
e prantos guardados pelo cão negro que nos espia
calcar o tabaco com os dedos ritos de fim de passeio
calcar o coração de paredes mortalhas
para levitar em contra luz nos contrastes da barbaridade
que nos rebenta o crânio à pedrada
o raio que não nos quebra em dois e as lagoas
que não transbordam em depois
o caminho dos malditos humano animal
dente de alho sal ungento de lamas ossos moídos
traz por dentro a malícia o mirrar emagrecida
a curva da folha a fúria a revolta da palavra
a morte fluía fluída para ser servida a garfo e faca
a dentes e língua...
espancam-me os horizontes de
fortuna mistério e morte

esta noite não partiremos esta noite não partiremos




sexta-feira, 27 de abril de 2018

conserto a quatro mãos



a aflição viva dos tectos
de quem se opera de fios de seda
pendurado de ganchos braços
o impulso de nos partirmos
agora por dentro os uivos gritos
no soturno mutismo próximo de nada
de quem se opera de fios de cabelo
a obsessão da moldura do imagético
esses tectos lâminas redutos
o pêlo depilado de dedos agitados
os campos livres de cores violentas
estrelas de metal íman de peso mortal
nos azedos da boca de anjos vagabundos
o roçar de lábios que se desdobram
do renovar robótico de línguas agulhas
o estilhaçado transversal do chão
em subterfúgios no corpo soturado
se confunde de enjoos e plenos
o fundamento da mortificação
acolher o fim da insónia uma flor aberta
tudo testemunha a fúria violenta da vida
as horas debilitam-se sem resistência
mordaça  de campos blindados
roço em jardins de cor de rosas
jardins de campas de mármore rosa
coleccionado-me de vidas
nas marés sucessivas da urgência
poisa-me no peito a mão
as unhas cravam o ritmo do rasgar dos pontos
penduram-se garrafas nas paredes
e peles arrancadas a dentes
respiro findo respiro-me de vidro
quero do espírito desabrido desabrigo
a longa lenta letargia das veias
beijam-me no pescoço
chagas de velhos traumas
as tuas mãos
eléctricos campos de ventosas
resta sempre a imagem
de amarelos laranjas enjoos de luz
havia os olhos de riso
de horizonte condutor carburante
o tempo abrindo-se de certas horas sísmicas
e cinzas cobrindo de auroras as crateras da vida
a aflição bruta dos tectos que nos espiam
para quem se opera e cose de fios de morte
para sempre voltar a imergir na tua boca
pelos interstícios da roupa



sexta-feira, 20 de abril de 2018

âncoras de clausura



o carcereiro envolve o rosto na neblina
para o choque violento do descolar
dos pontões de ferro
marujo das vibrações do quebranto
olhando demoradamente num rogo
a vermelhidão dos céus
o lume do pensamento sossega no embalo
a respiração insone do atravessar das coisas
que têm pressa em partir
na perpetuação das ventosas do pentagrama
o desgaste do profundo caudal
as algas mortas nas encostas
no postiço da plataforma humana
a margem que o liberta nunca dizendo adeus
ofegante galgando passos na vastidão inesgotável
no esforço de se reter no alheio
olear a proa que comanda a fagia
a carne quente para as águas frias
nas costas a ferida dos bichos diurnos
o sacrifício dos nervos da vigilância
o puxar da âncora por entre o cardume de índios
donos das margens do sol ao sal
a costa enfurecida talhada a pique
caniços de ossos no abandono das antigas estruturas
ainda as vozes, os corpos hologramas por ali divagando
num canto mordido quase inaudível
quase balbucio de peixe fora de água
no atordoamento do desaparecimento
a sedução panorâmica do vazio
uma aldeia marinha de almas marginais
enfatuada de presságios e jangadas primitivas
bichos que se atravessam todos os dias
o desdobrar lento do azul em chumbo
o voo astuto dos animais de consumo
gozando do absurdo do triunfo
de sondar as nuvens de cabeça invertida
com o embevecimento hipnótico de um deus
que já voara por ali nas nervuras nos tendões
vestindo a pele grade da agonia
como pássaro destravado da íntima obscuridade
a vaga lenta da respiração dos estilhaços
bandos de asas agora repousam nas areias
podres cinzentas leitosas citadinas
a muralha erguida a pique nas falésias
emergem das nuvens conversas pardas
a casa o incêndio a cratera do cristo extinto
espelham-se horas forradas a musgo
no cativeiro do imaginário em passeio
não se cheira não se apalpa só se cobra
o tempo mitológico das hidras
esse caudal ilustrador da dureza das águas
mantas que nos cobrem de romantismo
o eco retardador do fim para o princípio
varrem os sinais de uma infância feliz
como abandonam as mãos um barco de papel
palavras que partem e se afundam
com o peso, a lonjura
as mãos agora rugas de marujo embriagado
sem força para içar as cordas
para o vibrar das cordas das palavras
que todos os dias vê partir e atracar de novo
como um poema cabeça de hidra
ferida nunca cauterizada


sexta-feira, 13 de abril de 2018

cante negro


o peão divaga na escuridão
belisca-se para se saber acordado
os olhos desaguando no instante
fundem as ervas na penumbra conspirada
uma gaiola de vidro a carência do ar
as geometrias tropeçam nas horas
no restolho da infância
porque tudo é distância e perto
a paragem deserta de beira de estrada
o altar da senhora do abandonado
a bica seca o cão que dorme o silêncio da morte
as flores murcham no crepúsculo
carnívoras segredadas na moldura
trepando pelos telhados cobertos de geada
o relógio parado quinquilharia
a inutilidade do gesto dos objetos
espiá-los denunciando a filigrana
do anonimato nas pupilas do terreno
destilam-se gotas de amargura ou solidão
e ás vezes uma paz sem igual
do fundo das costas descolam-se os ossos
o corpo mole procurando já a terra
habitado de miragens antenas rígidas
não existe para lá dos muros ponteiros
larvas de uma fadiga crónica
no intervalo taciturno dos sonos
o silêncio sedado
álibi para tormentas fantasiosas
no ribeiro das renúncias carreiro
gangrenando essa juventude acabada
não se sabe quando
é toda uma paragem na têmporas doridas
da luz cegante do meio dia
o que se esconde na clandestinidade de uma sesta
mordente ardente o sol
o fogo lento da espera
a vida é a vida a morte é a morte
como esperam os animais sem gravidade
minas costuras lavrando a voz uterina
lhe empresta o tronco a solidez
a cortiça o vinco da memória a seiva
o mundo esventrado na barriga do animal
esses instantes de tréguas
o cão beija-lhe a mão
esse áspero que todos comungam entre si
alfinetado grotesco trapos de tricot
ai se as palavras alguma vez violassem
o curso das terras virgens
testemunho de um templo de ninguém
não fosse incêndio perfuração túnel
escapar do seu poiso
das paciências das urgências
das paredes que levantam a terra imensa
o prenúncio da rendição
as mãos passivas névoas do desespero
corre em bicos dos pés entre pedras
despe-se grita rasga-se de peles cripta
que pode a loucura ser-se sem testemunha
masturba-se ama-se odeia-se embriaga-se
a tontura do alheamento
para uma corda ao ramo
um baloiço enforcamento estendal
demora o olhar no enrugamento horizonte
procura o chamamento de desejo algum
raspar com as unhas um nome
cheirar as fezes esfregar-se na urina
as dunas dorso do animal arrepiado
bater com o cajado na cabeça
engolir as ervas as águas estagnadas
calar silenciar as vozes de dentro
a desordem libertina do momento
ginasticar desdobrar o alinhamento
os olhos míopes de ausência
brigar com a tela o espaço a cabeça
as manchas estriadas do céu desabitado
sentir o sangue oleoso sôfrego nas veias
evocação quebranto do impossível
aninhar-se chorar odiar-se solitário
poeta pirueta trapezista inevitável
ave migradora animal parideiro
a mediocridade do desencanto da cadeia
sem crista afogado azedo
sequestrado do dia repetido
da terra um puro sangue pausado
e jurar a pés juntos que nunca teve passado
catando os pêlos brancos do peito

quinta-feira, 12 de abril de 2018

O espaço do tempo



os pés no fecundo mistério
uma baforada de sonhos na tarimba
túmulos úlceras do inferno
tonturas de gasolina
roer por dentro as mágoas
brasas de cigarros fumados
do tampo de uma sala vazia
a lâmpada explodindo do lado esquerdo
a sombra do clima avivando-se
conquistando espaço na língua animal
há um remoínho de espasmos
do tampo de uma sala vazia correr cortinas
a repulsa do domador sodomizado
devorar goladas de sangue humano
acústicas de pânico
um pássaro antes livre na linha
agora uma mosca do lado de dentro do vidro
um peão atravessa o quadro limpo
sente-se o acariciar das palmas na tela
tons de cinza para a calvice do tempo
a cabeleira das árvores desmazelada pelo vento
vindimadores presos aos ciclos
a paisagem despida aqui da noite caem bagos
querer partir com o gesto do fastio
a sorte muda como os carreiros do rio
para o corpo no sítio das almofadas
estático no fundo das pupilas
a imagem dela desvanecendo-se
o desmaio da felicidade a seu lado
ou das coincidências de pincelas de acaso
refresca ao relento o corpo nu
velado por uma cascata desejo que cresce
a rocha que protege a investida das margens
engoliu-se
o grande lenço branco das nuvens
o homem peão que vive no trovão
uma ventoínha no vácuo
escravo dos cemitérios do agora
o círculo encolhendo de estranhos que o choram
uma balança de pratos palmos
nas linhas da pele respira-se o peso
espalhar das alturas os santos do altar
sementes à terra de enterro
depois, tudo é humano
com a mesma cadência das coisas naturais
cálido o vinculo aos tombos no peito
a ponta do prego a memória
trejeitos esgares emanências
lá em baixo as casas anãs
no limiar de cada instante espelhos lavatórios
os muros vendas fracções
traços póstumos olhos de fogo
estalando o gesto gesso dos espantalhos
o sacudir das cinzas colina abaixo
um gato preto à luz de um acidente
um guizo cauda espeto
oblíquos metais no horizonte
esse caudal mistério de submersos estéreis
o palpar das brasas arrefecidas
procurando-se o agasalho das tripas
o termómetro alvura losangos para uma tela cúbica
radiadores habitáculos torres de altar
tecem as lâmpadas para o rebentar
ligações sem fios de lucidez campo fora
água benta agora Aurora
o aparelho harmónico da paz
os estendais adormecem bem fundo
à margem dos ventos das chuvas
água e barro para as mãos do impulso
vagas esvaziando-se da rudez
um galo negro anunciando a hora da morte
dentição de pedra manobras chocalhos
a giesta o leite a massa espessa do nevoeiro
cantam as searas sepulturas por nós procurando
o peão imagina-se fora dos castelos, da cidade, do pedestal
saúdam-no as árvores ancestrais bifurcadas
as náuseas do tempo da vida amordaçada
a fome o grão a aceleração
em resina ossos emanados
fora da cisterna fossa céptica do corpo
que não reconhece como mais seu
os campos as telas o cantar dos galos
fecho os olhos e procura-los
para levantar os pés do fecundo
Mistério