terça-feira, 30 de outubro de 2018

III vozes



a manhã fresca do orvalho parte dos nossos olhos
olhos que o tempo deixa distantes e opacos
auroras boreais em paredes brancas de hospital
as gotas circunspectas da observação das plantas
os relógios em passos miniaturas e ligaduras de sangue
obsessa a terra que nos engole nesse cerco de assédio
uma gaiola de pássaros lugar sitiado de horas
túnicas arteriais e mágoas presentes nos objectos
o peso do corpo cada vez mais leve para o aconchego
dos mistérios que nos despedem e despem
os anjos estáticos no topo das colinas esperam
a voracidade de tudo o que nos transcende
o fogo que nos arde para sermos memória de pó
e todos esses anos como um livro folheado ás recuas
perguntar-se pelos derivados e bifurcados veios
sabe deus e os deuses maiores ao que veio cada um
da nascente à foz do grito de fome ao grito demente
porque todos os dias nasce e morre gente
e a terra continua no seu processo melancólico giratório
um carrossel de aluguer para as voltas psicotrópicas
da sagacidade da efemeridade da ilusão profunda
de cá andarmos com posse de controlo e de aceleramentos
encurtar o tempo abreviar antecipar apressar
e nos entretantos das pausas dos momentos de quebra
no voo estático da alma a cura breve a luta cessa

ás vezes sento-me num banco de jardim
senta-se comigo uma alma velha e gasta
pergunto-lhe quando se processou essa mudança
ela diz que não sabe mas que veio para ficar
a menos que eu possa inverter a marcha inverter a ira
e converte-la de novo em esperança
ela diz que enquanto cá andar a ira estou de saúde viva
que me agarre a essa energia e a converta na obra
ela diz que apesar de nunca o ter dito, que gosta
que muitas vezes não entende mas que é assim mesmo
que para concreta já basta a hora que nos leva
agora hoje agora depois a ida é certa
eu escuto e observo-lhe os jeitos dos cabelos brancos
escuto-lhe o coçar das orelhas o piscar dos silêncios
e pele negra das nódoas das dores das cicatrizes
de tudo o que fica sempre por cumprir
e depois diz que o que importa é seguir
é encontrar a paz de estar a caminhar
é abrir os olhos para a beleza que já lá está
a cada nascer de cada nova gota de orvalho
que inaugura uma nova manhã de quem cá está
ela diz coisas tão simples que nem parece poesia
e eu vejo em gotas tão simples a complexidade
e ela ri-se

a manhã fresca do orvalho parte dos nossos olhos
traduz na pele das folhas o brilho do nascimento
embala com espinhos esclarecida de segundos
as constantes do atraso dos momentos impossíveis
comover-se da sensibilidade eterna da terra
a morte espalhada em tudo espelhada no mundo
mistura-se com essa dor de perda e esquecimento
com essa ausência da decomposição do céu
sem colheitas e dormente a pele da urgência
de tudo ser tradução e rigidez e alucinação
a estrada recta atravessada pelos gritos da demência
rasga-me de dor de impotência de triste
um baixo céu austero no ronco da morte
e a toda a velocidade despenhar-me
a qualquer momento
sinto a vida como morte iminente
as paredes do quarto prensa desencanto
como se me varressem do chão
a qualquer momento


sexta-feira, 19 de outubro de 2018

de passeio em distorção



ao limbo âmbar de raios oblíquos quentes
o salto do unicórnio o sangue fresco do cisne
à equação do fim do tempo a alma portuária
o cenário fluído prismático que trago comigo
sobre um parapeito debruçar-me
baloiço de ataques da melancolia
 o vento mutante dos pântanos de alcatrão
répteis desaparecidos dos pontões
o tráfego das raízes  relâmpagos bifurcando
de quartos de contenção em fuga planador
grandes rochas deslocando-se no efeito fluído da dor
cobrir-me de distância erguer-me de uma colina
e esse coração península controlando a respiração
um corpo serpente de escamas e juba
a água corrente apertando o gatilho
linhas reptilíneas escapam-me da língua
a cabeça na trajectória do horizonte instável
deito-me ao chão desaparecido de beira de plataforma
as pessoas passam como notas de rodapé
partem do hangar de sopros cintilantes na água cobalto
a foz da vida a deslizar-me sobre o rosto
emergido de um buraco ventral colidindo emergindo
no alumínio de uma bacia de espectros
do aparelho monolítico esfoleado selvagem
pedras maiores de uma simples molécula
respiro para me brotar das fendas
e cruzar-me com a planície das sombras
e suportar o peso da besta nas costas
e soberbo sentar-me num banco de nuvens
no hábito arbitrário
de me sentir vivo



quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Dínamo


no quebranto da manhã submersa
a chuva fina ou saliva arrefecida
o vinco de uma cama vazia sem fôlego
o carimbo, o selo, a gaveta mecânica
os degraus desse postal em espiral
ou só corpo que caminha despido pela rua
o enxofre que transpira do subterrâneo
numa redoma de espirais cósmicas
veias que rebentam de estrelas púrpura
imprimir a própria alma nas paredes
de encontro de bocas mosaicos
labirintos de encaixes perfeitos e
consciências subnutridas
homens que rosnam aos cães
na caligrafia de uma língua qualquer
para a acção retardadora da morte
a pele arrancada em golpes de rendição
a cidade fria e cinza depois de ardida
a febre luciferina que nos perdura
a lucidez invertida nas luas de Júpiter
nos anéis de soturnos dias que nascem
para serem separados da noite
como a água que me corre pelo corpo
para ser escoada de dentro
ás vezes lágrima ou apenas chuva ácida
bebedeiras do choro dos deuses
cálice de sangue que me bebes
para me cuspir ao espaço com a secura da vida
por pequenos gestos de adeus
depois com os olhos acesos
procura me a luz nos lábios apertados
turbo oceânicos do mal
e tudo é manhã e subversão
porque partes sem me deixar alívio




domingo, 14 de outubro de 2018

Pardesha


o hóspede do tempo do sonho
revolto de tonturas labirínticas edémicas
caminha pelos mosteiros da memória
o homem verde, o xamã, o selvagem
bebe das fontes da tentação
no arrasto do granulado das paredes
o corpo procurando pelos fins do muro
do rasgar dos céus
e a aurora do tempo
musa consorte abençoando os mortos
tudo é abolição do caos e da terra interior
transe extático semeador de purgas
penitências do sangue e da carne
de esqueletos mirrados de olhos vazados
onde a alma presta vigilâncias de aramaico
na tortura da solidão de anjos alados
de não se encontrar nos cantos do mundo
ou pela linguagem do voo
e estes são os senhores da loucura
da nebulosa memória do éden
onde sopram os ventos do norte
uma barca de espelhos, gansos selvagens
o monte acima do poiso terreno
ponteado de formas híbridas e totémicas
do decalque, da desfiguração do homem
onde a fraternidade angelical e a constelação do dragão
adormecem no jardim cerrado
o homem fóssil que hoje carregamos nas arcadas do peito
das fronteiras do invisível
e do cosmos livre
para o voo extático
rasante essa dança de asas sobre brasas
ardentes




terça-feira, 9 de outubro de 2018

o copo vazio


o vento a uivar pelas falhas
pelos compartimentos vazios da casa
o arrepio no braço e alguém
matutinos os pés descalços
acompanham o odor dos cabelos
violetas à beira do abismo
a linha rupestre a lâmina o candeeiro
o fundo pantanoso do rio
nos limites e da extremidade da sala
na tormenta de um céu cinzento
um pássaro encurralado na janela
do lado de dentro das garras dos objectos
bate-se irado contra as paredes
a realidade ruminando-se
no rosto de um deus morto
as linhas descritas em orgias
de corpos escapados de tumbas abertas
os silêncios estáticos combinados de íntimo
e o pássaro de demónios e horror
o músculo peitoral extasiado
fixo de verdades incondicionais
e simbioses de telha e cal e teias
mudo numa carícia pacífica
procura pelo corpo deitado no chão
para lhe adormecer na completa falta do coração

nos profundos vales dos pés da montanha
essa casa segue de arrasto
pelos flancos do sonho acima das brumas
sem vestígio de vigília
para os infernos e o sol que aniquila
são os olhos negros das gentes
e toda a vida física
que no primeiro impulso
abandona o leme

a casa segue de arrasto e o pássaro a dentro
das velas envidraçadas a vida segue lá fora
véus de vagas e o homem dorme sobre as tábuas
a chama tamborilando nos telhados
juncos de outrora que caem de cansaço
pelas linhas sedutoras da alma

e aterra para distinguir o sabor da terra
a lama granulada a escorrer-lhe pela boca
o rasgar das raízes pelos caninos
a máquina gástrica que o engole
as sementes sendo sepultadas nos intervalos dos dentes
nas bacias de chumbo para sarar a podridão
as palavras soltando-se da língua dos mortos
e todas as penas cuspidas por indigestão

está um pássaro caligrafado agora nas paredes
e um homem que dorme de intestino entrançado
a casa desaparece no alívio de queda alguma
e a chama cessa nas descargas do silêncio

e a chama cessa nas descargas do silêncio